Muitos clientes do Bolhão estendem-se pelo chão do espaço a comer algumas das iguarias confecionadas nas bancas
Muitos clientes do Bolhão estendem-se pelo chão do espaço a comer algumas das iguarias confecionadas nas bancasDR

Bolhão declara guerra à Câmara do Porto

Dualidade de critérios, falhas no projeto de execução da modernização do mercado e gestão duvidosa da empresa municipal responsável pelo espaço emblemático são alguns dos pontos na origem do diferendo. Que motivou queixas à PGR e à ASAE, bem como uma participação à Inspeção-Geral de Finanças.
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A Associação do Comércio Tradicional Bolha de Água (ACTBA), representativa de mais de 50 por cento dos comerciantes do Mercado do Bolhão e da qual fazem parte os chamados “históricos”, avançou com uma denúncia dirigida ao procurador-geral da República contra a Go Porto, empresa municipal responsável pela gestão do mercado. Em causa, lê-se na exposição enviada a Amadeu Guerra e a que o DN teve acesso, está “a prática de atos alegadamente passíveis de ter enquadramento no Código Penal, ou seja, a possível existência de atos corruptos na gestão do Mercado do Bolhão”, pedindo a ACTBA a abertura de inquérito para averiguação.

“Tais atos, alegadamente”, acrescenta-se, “terão sido praticados pela empresa Go Porto, EM, identificando-se na sua execução e responsabilização a vice-presidente do Conselho de Administração, Cátia Meirinhos, e a diretora de Gestão e Exploração, Sónia da Rocha”. A prática que se apresenta como passível de ser “alegadamente irregular e com viés” incide sobre os concursos públicos para atribuição das bancas no interior do Mercado do Bolhão e na gestão da aplicação e fiscalização do regulamento daquele espaço emblemático da cidade.

Mas não só. Esta semana, a ACTBA apresentou uma participação cívica na Inspeção-Geral de Finanças, solicitando a realização de uma auditoria à gestão da Go Porto, visando “a aplicação e fiscalização do Regulamento do Mercado do Bolhão, incluindo a aplicação de coimas, o cumprimento dos contratos de arrendamento das lojas exteriores, a equidade e justiça no acesso aos concursos públicos para atribuição das bancas, lojas e restaurantes, os contratos de serviços externos com ênfase no contrato de “Facility Management” no valor de 3,6 milhões de euros e o contrato de Decoração de Natal 2024”.

Uma terceira queixa foi enviada à ASAE, que em outubro passado procedeu ao levantamento de autos a duas comerciantes históricas, associadas da ACTBA, por falta de condições para a confeção de tripas “quando a responsabilidade dessas condições deficitárias de laboração são apenas e só da Go Porto, a quem há mais de um ano a Associação pediu intervenção”. Sem resposta, lê-se no documento.

“Estas queixas tiveram seguimento depois de esgotadas todas as tentativas de diálogo e de pedidos de esclarecimento e resolução das problemáticas identificadas no Mercado do Bolhão junto tanto do Conselho de Administração da entidade gestora, Go Porto, como da Câmara Municipal do Porto”, diz ao DN Helena Ferreira, presidente da ACTBA.

Ermelinda da Silva Lopes, histórica comerciante do Bolhão, acompanha as decisões da ACTBA. “Esta é uma guerra que não vamos abandonar. Somos tesos e constituímos advogados. Tenho 68 anos e vim para este mercado na barriga da minha mãe, não me vão expulsar daqui. Meteram-me numa banca num canto, mas não vou deixar que transformem isto num monte de restaurantes de comida estrangeira”, diz ao DN, do alto da sua banca de peixes e congelados.

Uns podem e outros não?

Ermelinda Lopes quer que a Go Porto explique por que razão uma atividade histórica, “integrante da cultura gastronómica portuense e autorizada, como a preparação das tripas enfarinhadas”, está na mira da ASAE e, simultaneamente, outras bancas “continuam a cozinhar sem exaustão”. Dá exemplos: “A diretora de Gestão e Exploração, Sónia da Rocha, proibiu-me de ter na banca umas pencas que eram de um cliente, veja o ridículo, mas acompanhou o senhor da ASAE na visita e não lhe mostrou as bancas onde se cozinham massas”.

Helena Ferreira diz “estarmos a falar de atividades que a associação considera ilegais, em colisão com a aplicação dos regulamentos e normas de funcionamento do Mercado do Bolhão e em incumprimento com os termos dos concursos públicos.” A dinamizadora associativa, ela própria em litígio pessoal com o Executivo de Rui Moreira, estranha “as exceções concedidas pela Go Porto para as referidas bancas, uma vez que no objeto concursal consta comercialização de produtos, e não atividades de restauração como as que se confirmam no local”, diz, lembrando que “o regulamento proíbe expressamente cozinhar nas bancas, exceção para as tripas”. “Em nenhum momento e em nenhum documento foram estabelecidas ou comunicadas condições de exceção que justifiquem no Mercado do Bolhão existirem bancas a funcionar como autênticos restaurantes, essencialmente de comida italiana e asiática”.

Ermelinda Lopes garante: “Não queremos virar-nos contra os outros comerciantes, mas sim contra quem manda e permite a uns o que proíbe a outros, os mais antigos, não lhes dando condições de trabalho. Mas vamos fazer-lhes a vida negra.”

A vida negra de Luísa

Luísa Ferreira da Silva tem 65 anos e uma banca de charcutarias. Trabalha no Bolhão desde os 10. “Já a minha avó cozinhava aqui as tripas.” Não contesta a decisão da ASAE. Apenas que essa decisão a obrigue a atravessar o Bolhão com quilos de carnes. “Quem eu critico são as pessoas que não me dão condições para poder cozinhar.” Conta o dia a dia: “Carrego as carnes num carro de mão até às cozinhas, que são no lado oposto ao da minha banca. Tenho de subir escadas até ao andar de cima e até as cozinhas não têm condições. E depois dizem aquelas pessoas que não querem acabar com as tripas. Querem e querem correr connosco”, concluiu, secundada por Fernanda, 76 anos, outra das resistentes. “É cruel o que nos estão a fazer.”

Luísa descreve: “Aqui só cheira a massas a cozer e a queijos derretidos. A estrugido, a fritos nas Air Fryer. Tudo é permitido, menos as nossas tripas.”

Helena Ferreira, eleita presidente da associação há um ano, reforça: “Temos alertado e solicitado intervenção para correção das falhas, mas a situação persistiu e, agora, confirmaram-se os receios desta associação no decorrer de uma ação de fiscalização da ASAE.”

Isto tornou-se uma taberna

“No verão é ver as pessoas a passear pelo mercado de copos na mão. Sentados no chão, a comer e a beber, partem os copos, fazem trinta por uma linha”, repete Ermelinda Lopes, que faz questão de dizer que nada tem contra os turistas. “É uma gente que vem cá comprar, apesar de terem posto aqui perto um Continente a fazer-nos concorrência, de tal maneira que queriam chamar-lhe Continente Bolhão, mas tiveram de arrepiar caminho. Bolhão somos nós”, diz a lojista, avisando: ”Somos um mercado de frescos e continuaremos ser, por muito que a Go Porto queira fazer disto uma praça de restauração”. Helena Ferreira teme que “de uma forma encapotada e ilícita, haja em vista uma hipotética e futura privatização do espaço”, exigindo a Associação que a discussão de novos regulamentos seja feita pelo Executivo camarário que vier a resultar das próximas autárquicas, pretensão que segundo o DN apurou já foi reconhecida por Rui Moreira.

Go Porto reage

“A Go Porto encontra-se disponível para colaborar com qualquer investigação que se venha a verificar necessária, na certeza de que manterá a sua tranquilidade e que de tudo fará para servir o interesse público e a cidade do Porto no que respeita ao Mercado do Bolhão”, afirma ao DN a Go Porto, em respostas enviadas por escrito, recordando estar em causa “um edifício extremamente complexo, de um imóvel classificado como de interesse público que foi sujeito a obras profundas de reabilitação e de modernização”, havendo “situações impossíveis de antecipar em fase de projeto e que só com o seu funcionamento e ao longo do tempo vão sendo detetadas”.

No entanto, garante, “todas as circunstâncias que eram suscetíveis de imediata resolução, assim o foram”. Sobre a inspeção da ASAE, a Go Porto afirma que esta não “deu lugar à interrupção da atividade de preparação das tripas”, ainda que não justifique “o calvário” que é fazer chegar as carnes às cozinhas, com instalações de gás impróprias, garantindo que a questão técnica ficará “sanada na próxima semana”.

Quanto à acusação de dualidade de critérios, a Go Porto justifica-se com “as novas realidades”. “Os próprios comerciantes foram-se adaptando, procurando e criando novas oportunidades de negócio que, em muitos casos, extravasaram algumas das regras que foram inicialmente pensadas”. E garante que “a direção do Mercado, ao longo do tempo, sempre procurou sensibilizar os comerciantes para as limitações existentes, o que nem sempre é fácil quando o regulamento ainda em vigor é omisso em relação a muitos aspetos”. Por último, a Go Porto rejeita a acusação de que pretenda transformar o mercado numa praça de alimentação. “A génese do Bolhão será sempre salvaguardada e essa é a missão central da entidade gestora do Mercado.”

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