Ao fim de quatro décadas, o retrato é breve: mais de 150 mil profissionais (151 851, dos quais 50 889 enfermeiros e 32 468 médicos, 22 005 especialistas e 10 463 internos) e o maior orçamento de sempre, quase 17 mil milhões de euros (16,8 mil milhões), mesmo assim, tais números parecem não ser suficientes para darem eficiência a um dos serviços públicos de Saúde que ainda tem como princípio, definido em Constituição, a universalidade dos cuidados, que devem ser prestados a todos os residentes em Portugal e da mesma forma. No mundo, e tal como reconhece Pedro Pita Barros, professor catedrático na Nova Business School, economista e especialista em sistemas de saúde, não são muitos os sistemas que ainda incorporam este princípio, sobretudo pelas despesas que acarretam, mas o Serviço Nacional de Saúde (SNS) português mantém-se assim, sendo este princípio um dos seus “pontos fortes”. O DN pediu a Pedro Pita Barros que olhasse para o serviço público e o futuro que o espera nas próximas décadas, e o catedrático deixou um alerta: "O importante é encontrarem-se soluções realizáveis dentro do país para melhorar a sua situação”. O SNS completa neste dia 15, 46 anos. É considerado como uma das “maiores conquistas de Abril”, em termos de direitos sociais, e é neste sentido que, ao longo dos tempos, e mesmo recentemente, tem recebido “elogios” de especialistas internacionais, como Michael Porter - economista norte-americano, por ser dos sistemas que ainda consegue prestar cuidados a toda população e de forma diferenciada. Mas, a verdade, é que na prática, os portugueses queixam-se deste sistema, tanto utentes como profissionais. Têm motivos para isso? Comparativamente com o que se passa noutros sistemas da Europa e do mundo? Porquê?Vários outros sistemas de saúde que seguem o modelo do SNS têm problemas similares ao nosso, nomeadamente no acesso a cuidados como na pressão de trabalho sobre os profissionais de saúde. Nestes aspetos, Portugal não é um caso isolado. Mas, na minha opinião, a comparação internacional acaba por ser pouco importante, porque os problemas têm de ser resolvidos no nosso país, independentemente do que se passa nos outros. A observação da equipa de Michael Porter acaba por ser natural, pois a decisão de cobertura universal, estabelecida em Portugal, leva naturalmente a mais acesso de cuidados do que em países que não têm este princípio. o que, por exemplo, não acontece nos EUA. O que digo é: Como utentes e profissionais de saúde têm razão nas suas preocupações, é necessário perceber que soluções são realizáveis para melhorar a situação do SNS, mesmo que não se alcance o sistema perfeito.Nestes 46 anos, o SNS tem mostrado os seus pontos fortes? Quais são? Pode dizer-se que ainda dá resposta à maioria das necessidades da população?O SNS tem vários pontos fortes, com diferentes naturezas de origem. Destaco três, por exemplo. Como ponto de partida, destaco o princípio de todos os residentes em Portugal terem cobertura contra as adversidades das situações de doença, com acesso a um leque abrangente de serviços. É claro que essa cobertura tem algumas fragilidades em termos de componente financeira e com implicações diferentes para diferentes grupos de rendimento. Este grau de cobertura universal pode ser melhorado nas suas diferentes dimensões, mas não deixa de ser um ponto forte. Outro ponto forte é a sua dimensão de prestação de cuidados, começando pela rede de cuidados de saúde primários. Esta poderá ser renovada na forma de funcionar, é certo, mas também não deixa de ser o elemento central de apoio do SNS à saúde das pessoas. O terceiro ponto é o sentido de missão dos profissionais de saúde, que têm passado por momentos difíceis. Do meu ponto de vista, o SNS tem vivido nos últimos 15 anos num estado de emergência organizacional, o que significa que muitos profissionais não conheceram outra realidade. Por isto mesmo, o risco de erosão deste espírito de missão existe e deve ser mitigado.A ideia de que “o SNS vive a sua pior crise” tem sido frequentemente passada por profissionais e outros especialistas. Na sua opinião, o que está a falhar? É a forma de se gerir? É uma questão organizacional, de competência ou de subfinanciamento?A discussão sobre a “falência do SNS” é praticamente tão velha como o próprio SNS. Se formos rever o debate público na altura da sua criação, provavelmente encontraremos visões a avisar de que nunca funcionaria. Por isso, não falaria da sua pior crise, e sim da dificuldade do SNS em se ajustar a novas dinâmicas de necessidades de cuidados de saúde, de expectativas mais elevadas quanto aos cuidados disponíveis e à pressão de trabalho sobre os profissionais de saúde. As dificuldades em ajustar a gestão a estes desafios tem sido óbvia, e a questão do financiamento neste momento é provavelmente mais de “mau financiamento” do que de sub-financiamento. A prática desde 2011 (desde que há dados sobre o assunto) é a de criar dívida e pagamentos em atraso, o que depois acaba por levar a verbas adicionais. Por isso, não se pode falar em sub-financiamento no sentido de falta de fundos que possam levar ao encerramento de serviços, isto não ocorre, embora o mecanismo de dar pouco no início para pagar mais no final, como forma de controlar custos esteja a criar disfuncionalidades na capacidade de gestão. E isto leva também a pior organização dos serviços, acentuando mais depressa o problema que se pretendia atenuar. Ou seja, a meu ver, o problema está mais na capacidade de gestão, incluindo também aqui a capacidade de gestão de quem está no topo do SNS, no sentido de dar sinais e instrumentos adequados às unidades para gerirem eficientemente. . A atividade do SNS também tem estado a ser marcada pela falta de profissionais nos últimos tempos, sobretudo de médicos. Pode dizer-se que, ao fim de 46 anos, este é o pior problema do SNS? O que pode ser feito para travar a saída de profissionais?Sobre a capacidade do SNS atrair e reter profissionais de saúde, muito tem sido dito e escrito. O meu resumo é simples. É necessário atuar em três dimensões ao mesmo tempo: primeiro, condições de remuneração e de locais de trabalho; segundo, flexibilidade de tipos de contrato; terceiro, oferecer perspetivas de desenvolvimento profissional e conciliação de vida pessoal com profissional (que necessita de usar a flexibilidade de tipos de contrato). Não é apenas uma questão de oferecer mais salário para se trabalhar em áreas geográficas que sejam consideradas carenciadas (solução que tem sido tentada e que não tem resultado, pelo menos na medida esperada).A carência de profissionais levou os anteriores ministros da Saúde a apostar no trabalho por prestação de serviço. A ministra Ana Paula Martins está a preparar um diploma para travar este tipo de contratação. O Estado tem mais vantagens em pagar mais aos médicos dos quadros e em reduzir o trabalho à tarefa?Creio ser evidente que é melhor reduzir o trabalho à tarefa para cobrir atividade permanente das unidades de saúde, por múltiplas razões, incluindo nestas razões o custo financeiro do recurso do trabalho à tarefa e a menor organização interna do trabalho que acarreta (incluindo aqui a importância da cultura da organização na prestação de cuidados de saúde). No entanto, o proibir administrativamente poderá vir a resultar em formas criativas, que não consigo antecipar quais sejam, mas que prevejo que sejam procuradas, de se continuar a manter o recurso à forma de prestação de serviços..Greves de médicos e enfermeiros marcam primeiros dias dos 45 anos do SNS e podem fechar serviços. Indo agora para a organização introduzida no SNS em janeiro de 2024, que o dividiu em 39 Unidades Locais de Saúde, extinguido as cinco ARS. Como economista e especialista em sistemas de saúde considera que esta reforma está a dar resultados?Ainda é cedo para retirar conclusões. A minha perceção, baseada em observação episódica e análise da informação que vai estando disponível, é a de que há um esforço grande por parte das ULS para funcionarem da melhor forma possível, embora estejam ainda longe do que se esperava quando a reorganização neste modelo teve lugar - no entanto, recordo também que, na altura, não foi divulgado qualquer documento orientador que permita agora perceber se as ULS estão ou não a atingir os resultados pretendidos para os primeiros anos de funcionamento.Ao fim de 46 anos, que futuro pode estar reservado ao SNS? Um serviço público ou um serviço cada vez mais de gestão privatizada? Só há estas duas alternativas?O futuro reservado ao SNS, enquanto rede pública de unidades de prestação de cuidados de saúde, é aquele que como sociedade decidirmos que deve ser construído. Creio, pelo que se sente ser ao longo dos anos o sentimento da população portuguesa, também depois refletido pelo posicionamento maioritário dos partidos com representação parlamentar, que o princípio de serviço público não está em causa. A questão é que a utilização da gestão privada em serviços públicos pode ser um instrumento útil quando utilizado adequadamente. Ou seja, não é a privatização, do ponto de vista do cidadão que recorre ao SNS, que vai alterar os seus direitos e deveres. Estes são independentes da natureza da gestão, porque a responsabilidade pública permanece igual. O que penso é que a discussão sobre o uso de Parcerias Público-Privadas (PPP) terá de ser mais com o foco na capacidade negocial destas, na monitorização do SNS e na qualidade técnica dos contratos realizados com a entidade privada de gestão, do que propriamente sobre privatização, porque o que tem vindo a surgir como nova dinâmica no sistema de saúde é o crescimento dos prestadores privados de cuidados de saúde, em que a componente privada é dupla, na prestação e na forma de pagamento, seja por seguros de saúde seja por pagamentos diretos das pessoas. A privatização implicaria que o SNS deixasse de lado atividades, às quais o sector privado teria de dar resposta e satisfação. E não creio que haja a intenção de o SNS reduzir a sua atividade de prestação de cuidados de saúde. .Marcelo defende SNS como “pilar fundamental” e “princípio estruturante” da Democracia.Bastonário dos médicos: “SNS vive uma das maiores crises" da sua história