Paulo Pinto de Albuquerque: “Os tribunais portugueses ainda não aplicam a Lei de Imprensa à luz do direito europeu dos Direitos Humanos”
O desafio que fez ao DN para organizar esta obra surgiu num momento muito especial - 160 anos do DN e os 50 anos da Democracia em Portugal. De que forma estas datas históricas lhe serviram de inspiração?
O 25 de Abril é uma data memorável da história do nosso país, entre outras razões, por ter reposto a liberdade de imprensa. Ora, o DN foi e é um campeão da liberdade de imprensa na nossa democracia cinquentenária.
Por isso, é de louvar a iniciativa conjunta do DN e da Universidade Católica Editora de celebrar estes dois aniversários com uma obra que estude a correlação entre a democracia e a liberdade de imprensa. Esta obra pretende discutir a liberdade de imprensa em Portugal e na Europa à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).
Os julgamentos escolhidos são comentados por jornalistas, profissionais do foro e académicos. É muito importante sublinhar que os comentadores representam um grupo plural e heterogéneo de pessoas que dedicaram as suas vidas à defesa e à promoção da liberdade de imprensa nos jornais, na rádio, na televisão, na imprensa digital, nos tribunais e nas universidades.
Deste modo, a obra visa conciliar uma visão prática e uma reflexão teórica sobre os fundamentos, o âmbito e os limites da liberdade de imprensa.
É possível saber quantas queixas foram feitas por portugueses (jornalistas e outras entidades) ao TEDH?
Portugal assinou a Convenção Europeia dos Direitos Humanos dia 22 de setembro de 1976, tendo esta entrado em vigor em relação ao nosso país em 1978. Desde então o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem contribuído significativamente para a melhoria da administração da justiça em Portugal, decidindo centenas de queixas portuguesas por ano. Em relação ao artigo 10 da Convenção, que protege a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, Portugal já foi condenado 33 vezes, tendo o Tribunal concluído em 14 casos que não houve violação do artigo ou a queixa não era admissível.
A que conclusões se pode chegar? Têm aumentado? Há algum padrão? As características dos casos têm mudado de que forma?
O contencioso português foi muitos anos caracterizado pelos casos de atraso da justiça, de indemnização insuficiente das expropriações posteriores ao 25 de Abril e de alegados abusos de liberdade de imprensa. Ora, há que reconhecê-lo sem rebuço.
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos é muito mais rica do que este contencioso mostrava e os portugueses tiravam um proveito muito limitado do sistema da proteção europeu dos direitos humanos. Hoje já não é assim.
Durante o meu mandato colaborei, vezes sem conta, com o Conselho Superior da Magistratura (CSM), a Procuradoria-Geral da República (PGR), o Centro de Estudos Judiciários (CEJ), a Ordem dos Advogados (OA)e as Universidades portuguesas em iniciativas para divulgar o trabalho do Tribunal Europeu e os meios de a ele aceder.
Lancei a newsletter mensal sobre os casos mais importantes do Tribunal em língua portuguesa, que era divulgada pelo CEJ, pelo CSM, pela PGR, pela OA e pelo corpo docente das maiores faculdades de direito públicas portuguesas, circulando também no Brasil, em Angola e em Moçambique. Publiquei no site do Tribunal Europeu as traduções para a nossa língua dos acórdãos mais importantes proferidos contra Portugal, para que possam estar disponíveis para toda a comunidade jurídica lusófona.
Este esforço produziu frutos. Durante o meu mandato, o Tribunal Europeu recebeu queixas contra Portugal em matérias novas, como por exemplo, por violação do direito à vida nos hospitais públicos, por tratamento desumano nas prisões, por prisão preventiva excessiva, por rapto internacional de crianças, por falta de equidade de processos disciplinares movidos contra juízes, por discriminação das mulheres e, em particular, das mães solteiras, entre outras.
Estas matérias não são apenas do interesse dos portugueses, elas são do interesse de todos os europeus. Portugal contribuiu assim para o progresso da jurisprudência europeia em áreas sensíveis e relativamente a matérias novas.
Selecionou 30 casos para esta compilação. Quais foram os critérios?
Foram escolhidos vinte e três casos portugueses e sete casos estrangeiros para ilustrar a pluralidade e a complexidade das questões jurídicas submetidas ao conhecimento do Tribunal de Estrasburgo.
A descrição dos factos sujeitos a juízo e a análise das decisões proferidas pelas instâncias nacionais, por vezes envolvendo os tribunais supremos e constitucionais, revelam cabalmente a importância de conhecer e divulgar esta jurisprudência.
Deste modo, poderemos evitar a ocorrência de violações de idêntica natureza das obrigações internacionais do Estado português.
De todos eles, qual o que teve mais impacto para si?
O caso mais importante que decidi foi o caso Big Brother Watch e outros c. Reino Unido. Nesse caso fiz parte da composição da Grande Câmara do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que é a mais alta instância jurídica europeia.
O caso é relevantíssimo porque analisou a política de serviços de inteligência europeus de interceção em massa de comunicações eletrónicas, incluindo comunicações de e para jornalistas, e partilha dessas informações com serviços de inteligência de outros países não europeus não submetidos à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como os serviços de informação americanos.
O caso teve e tem um impacto muito importante na delimitação dos poderes dos serviços de inteligência europeus, na definição do controlo judicial da interceção em massa e na defesa do segredo profissional dos jornalistas.
Houve casos em que esteve em desacordo com a decisão final do TEDH. Quer recordar o que lhe causou maior desânimo?
Sim, estive em desacordo com os meus colegas por vezes, mas fi-lo com a máxima retenção e a maior ponderação, quando por razões imperiosas e inarredáveis a minha consciência jurídica me impedia de votar a favor da opinião maioritária.
Gostaria de sublinhar que considero a colegialidade um valor fundamental nos tribunais superiores, sejam eles nacionais ou internacionais. Por isso, fiz sempre um esforço por conciliar as diversas opiniões em confronto.
Lembro um caso em particular em que a minha consciência jurídica me ditou que votasse contra a maioria. No caso Garib c. Países Baixos votei a favor de uma mulher pobre e mãe solteira de três filhos que se viu impedida de mudar para uma casa maior, devido à política urbanística de gentrificação aprovada pelas autoridades da cidade de Roterdão.
No meu voto dissidente, defendi o direito à habitação condigna desta mulher e critiquei a política urbanística da cidade de Roterdão que discrimina os mais pobres e as minorias étnicas.
A que países se assemelha mais Portugal na forma como os tribunais julgam este tipo de casos?
Os problemas de Portugal no tratamento dos casos de abuso de liberdade de imprensa são semelhantes aos de outros países próximos, como a Espanha, que viveram muito tempo privados da democracia e da liberdade de imprensa.
A Lei de Imprensa em Portugal defende a liberdade de imprensa?
Sim, mas é necessário que ela seja aplicada de acordo com os critérios da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O número elevado de condenações de Portugal nesta matéria é indicativo de que os tribunais portugueses ainda não aplicam a lei nacional à luz do direito europeu dos direitos humanos.
O que pensa da afirmação de Elon Musk de que a liberdade de expressão está em risco?
É uma afirmação verdadeira. A liberdade de expressão e, em especial, a liberdade de imprensa, confrontam-se com novos e velhos perigos, em todos os continentes.
Por exemplo, a independência jornalística depende hoje mais do que nunca da garantia da sustentabilidade financeira dos meios de comunicação.
Estamos a entrar em 2025, que antevisão pode fazer sobre os maiores riscos para a liberdade de imprensa e de expressão?
O maior risco para a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa é o da sua manipulação antidemocrática. A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não podem ser instrumentalizadas como meios para destruir os fundamentos da democracia.
O problema das notícias falsas e da distorção propositada da informação divulgada nos meios de comunicação social e nas redes sociais é gravíssimo e deve suscitar uma reação dos poderes públicos, nos estritos termos e limites impostos pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
A este propósito é fundamental um caso húngaro em que intervim: o caso ATV ZRT c. Hungria, que é objeto de estudo na excelente obra ora lançada pelo DN e pela Universidade Católica Editora.