Pam Alldred é socióloga, professora de Estudos da Juventude e da Comunidade, no Departamento de Trabalho Social, Cuidados e Comunidade, na Universidade de Nottingham Trent, no Reino Unido, e uma investigadora com vasto trabalho nos domínios da educação, dos estudos de género e da sexualidade. O DN entrevistou-a no Porto, onde marcou presença na conferência da Associação Europeia de Sociologia, que reuniu cerca de 4000 sociólogos. É mais fácil agora do que há 25 anos, quando começou a sua carreira, falar abertamente sobre sexualidade e educação sexual, ou continua difícil? É definitivamente muito mais fácil agora. Sem dúvida. Há 25 anos era muito difícil falar de sexualidade e de educação sexual sem que a saúde fosse o foco principal. Se falássemos de saúde, doenças, infeções sexualmente transmissíveis ou gravidez, tudo bem. Agora penso que há um maior reconhecimento de temas como a violência sexual, assédio sexual, violência doméstica. Penso que há uma consciência muito mais forte disso, o que dá um argumento muito mais forte também para falar sobre sexualidades, relações, consentimento. Há muito mais espaço hoje para esses temas tanto no “discurso popular” como na educação. .E, no entanto, continua a ser um tema muito controverso, capaz de alimentar grandes lutas ideológicas... Sem dúvida. Também há novos obstáculos. No Reino Unido, hoje, temos um discurso feminista crítico em relação ao género, que coloca os direitos das mulheres contra os direitos das pessoas trans. E não há necessidade disso. É uma lógica falsa. Os direitos humanos não são um bolo que precisa de ser dividido entre as pessoas. Este é um desafio. Alguns governos de direita ou neoliberais que só pensam na economia, nos resultados e nas prioridades orçamentais nem sempre tomam as melhores decisões em relação ao bem-estar dos estudantes e à sua educação. Isto aplica-se às universidades. Tornaram-se empresas que pensam no resultado final, que pensam na sua reputação. Estão em concorrência umas com as outras. E isso significa que não estão necessariamente a colocar o bem-estar dos estudantes no topo da agenda..Os temas da inclusão, diversidade, liberdade sexual dividiram-se politicamente, sendo classificados como uma agenda woke por setores mais conservadores. Até que ponto é preocupante ver essas questões politizadas? Muito. Há discursos que recebem muito mais crédito e muito mais respeito do que merecem, quando são claramente demagógicos. Ou então ideias de extrema-direita que se tornaram mais centrais. E isso é realmente preocupante. No Reino Unido, há anos que existe uma agenda de igualdade realmente dominante. A igualdade, a diversidade, a inclusão... têm sido uma constante nas políticas públicas. Mas alguns dos seus aspetos estão a ser postos em causa e descurados atualmente. Isso é realmente preocupante. Nos últimos dois anos, as escolas ficaram muito nervosas e sentiram-se muito escrutinadas pelos meios de comunicação social, pelo público, por públicos hostis. Mas o que se entende por educação sexual na escola primária, por exemplo, é muito básico. Não é de facto sexual. Tem a ver com respeito, com corpos, com os nossos direitos, com o nosso direito de decidir se somos abraçados por alguém ou tocados por alguém, etc. Há dez e vinte anos, os diretores das escolas podiam incluir a educação sexual nos programas educativos. O que na escola primária resume-se à ideia de que “a mamã gata conheceu um gato macho e foi assim que teve aqueles gatinhos”. É o que a maioria das crianças já sabe. Não é explicitamente sexual. Mas estes reacionários agem como se fosse, por vezes acusando os programas de serem inapropriados. E isso é absolutamente alarmista. Essa é uma voz pequena, mas que é amplificada, diria eu, por uma comunicação social que quer polémica e fogo de artifício. Assim, as vozes da extrema-direita, dos conservadores e, por vezes, dos fundamentalistas religiosos ganham mais projeção do que os seus números justificam. Os pais podem considerar que é o seu papel falar de valores e da sua cultura familiar, seja o que for. Mas a escola também deve falar dos aspectos técnicos, legais e, provavelmente, dos elementos sexuais mais explícitos da educação sexual, quando chegamos ao ensino secundário. Não deveria haver qualquer conflito..E isso está a afetar a forma como o tema é tratado nos programas escolares? Até que ponto esses programas são eficazes hoje em dia e como é que isso está a afetar a compreensão que os jovens têm da sexualidade e das relações? Sim, acho que as escolas têm medo. Sentem-se nervosas com o assunto. O anterior governo britânico, conservador, iniciou uma revisão de programas antes de deixar o poder. Tentou retirar coisas da agenda. Não abordou as opiniões dos jovens. Foi muito, muito conservador. Esperemos que o novo governo utilize os programas de forma sensata. Não creio que haja qualquer problema em falar com as crianças e os jovens sobre o género. Faz parte do que precisamos de fazer para falar sobre valores, justiça, sociedade, como as normas sociais e as expectativas em torno do género afetam todo o tipo de coisas, afetam a violência, afetam a igualdade... Precisamos de falar sobre isso..Os jovens não deveriam também ser mais ouvidos sobre as suas principais preocupações nesta matéria e participar mais ativamente no desenvolvimento dos currículos? Sim, há uma preocupação curricular com as opiniões dos pais mas quase nunca com as opiniões dos jovens. Quando estamos a falar de jovens de 14, 15, 16, 17, 18 anos, isso é ridículo. Eles podem morrer pelo seu país. Podem casar-se. Mas não têm uma opinião sobre o que o currículo de educação sexual deve incluir. Claro que têm. É a cultura deles. É a vida quotidiana deles..Há grandes desafios que os jovens enfrentam atualmente nesta área, desde a saúde sexual à educação sexual, à diversidade de género, às questões de saúde mental... Como é que todos eles se inter-relacionam e como é que os programas educativos podem apoiar melhor os jovens a lidar com esses desafios? Penso que os programas educativos precisam, de facto, de trabalhar para a agenda dos jovens. Têm de os capacitar a olharem para o mundo de forma crítica. É isso que a educação tem de fazer. Por exemplo: os programas educativos precisam de falar sobre pornografia. Precisam de falar sobre os mitos perpetuados pela pornografia. É preciso falar sobre o uso do estrangulamento como um tema importante na pornografia, que passa a ser visto pelos jovens como uma norma e não como uma prática extrema que necessitaria definitivamente de consentimento explícito. É preciso que haja uma literacia pornográfica crítica. É preciso que sejam alfabetizados sobre isso e talvez chamar-lhe pornografia não seja muito útil. Tem de haver uma literacia sobre as imagens visuais que rodeiam os jovens, que têm de ser lidas de forma crítica. Repare-se, por exemplo, nas aspirações corporais irrealistas que esse universo visual e mediático leva os jovens a ter. Depois precisam de ajuda para as resolver e isso é um problema de saúde mental. A intensificação das preocupações com o corpo, a imagem visual, a apresentação. Penso que os jovens querem falar sobre isso. Ao que parece, segundo alguns estudos, os jovens estão hoje a fazer menos sexo, mas estão mais preocupados com o seu aspeto, com o seu visual, estão mais ansiosos com a aceitação....Em que medida é que as redes sociais estão a exacerbar esses problemas entre os adolescentes? Sim, as redes sociais, os media visuais e a cultura do espelho. A intensificação desses fenómenos levam a que deixemos de saber o que é real e o que é encenado. Por isso, a agenda da saúde sexual e da educação sexual tem de falar da literacia da pornografia, da literacia da imagem visual, tem de falar da orientação sexual, tem de falar dos géneros, tem de falar do aborto. A contraceção e o aborto têm de estar na ordem do dia. E os professores precisam de muita confiança para discuti-lo e dizer “sim, alguns dos vossos pais terão opiniões diferentes sobre isto e algumas pessoas de origem religiosa podem ter opiniões particulares sobre isto”. Outra coisa que penso que tem um grande impacto na saúde mental dos jovens hoje é a crise climática. E não podemos resolver este problema só através de uma boa educação, bons programas escolares. Percebe o que quero dizer? Não podemos acalmar isso. Eles têm todo o direito de estar zangados e preocupados. E isso não é facilmente remediável. Não podemos é culpar as escolas e acusá-las de não estar a fazer um bom trabalho porque a saúde mental dos jovens é por vezes instável. Penso que temos de olhar de uma forma mais abrangente e perguntar: porquê?.Esse não deve ser um fardo exclusivo da escola... Sim, exatamente. A agenda a que as escolas têm de responder é cada vez maior. Certamenteque os professores precisam de saber reconhecer os sinais de má saúde mental ou de recorrer a serviços especializados, mas não são eles próprios os especialistas. Precisam de ter acesso a assistentes sociais ou a conselheiros. As escolas precisam de ter recursos para que possam responder às necessidades emocionais dos alunos ,para que estes possam aprender. Mas acho que hoje os professores se sentem bastante pressionados por todas essas expectativas, que não são necessariamente aquelas para as quais foram formados. Há professores que dizem: “Eu tirei um curso de Física, posso falar sobre isto, e agora esperam que eu seja capaz de falar todas estas diferentes linguagens para responder às necessidades sociais das crianças e dos jovens”. É uma tarefa enorme..A sua apresentação aqui no Porto intitulava-se “O que podemos dizer sobre a sexualidade do pós-humano”? O que podemos dizer sobre isso? E antes de mais, para quem não está familiarizado, de que estamos a falar quando falamos de pós-humanismo? O pós-humanismo é uma abordagem teórica nas ciências humanas e sociais que tenta ultrapassar o modo de pensar arrogante e egocêntrico que coloca os seres humanos no centro da compreensão do mundo e nos vê como os agentes únicos e prioritários. Trata-se de um conjunto de abordagens desenvolvidas por teóricas sociais feministas e outras que tentam substituir a norma assumida de “homem”, que era, na realidade, um modelo eurocêntrico de um homem branco, heterossexual, fisicamente apto e cisgénero, por pessoas diversas e corpos e culturas diversos; e explora estes aspectos sempre em relação com o mundo material que o rodeia e os significados e normas culturais. Esta é uma forma de tentar reconhecer plenamente a ecologia mais alargada em que o “homem” (o humano) é apenas uma criatura, e uma criatura particularmente destrutiva. Assim, o pós-humanismo celebra as conquistas do humanismo, como os direitos civis e os direitos humanos, mas aponta para as arestas onde estes objetivos não foram alcançados: a igualdade ainda não foi alcançada e há trabalho a fazer para criar igualdade tanto num sentido material (como economicamente, para muitos que vivem na pobreza) como num sentido simbólico (para os racismos, sexismos, discriminações de classe que ainda existem mesmo nas “sociedades mais iguais”). A minha comunicação, “O que podemos dizer sobre a sexualidade do pós-humano?”, centra-se nos problemas de homogeneização das pessoas e no reconhecimento pleno da diversidade entre nós, pelo que a principal resposta a esta pergunta é que não é possível descrever um grupo. No trabalho que publiquei com o Professor Nick Fox, dizemos que provavelmente não devemos falar do coletivo de pós-humanos, uma vez que isso pressupõe que somos um grupo que pode ser descrito em comum e reduz a nossa capacidade de ver a diversidade entre nós. A sua sexualidade, as coisas que ela significa para si e os efeitos que tem no seu corpo, na sua mente, etc, podem ser completamente diferentes dos meus. O outro ponto principal era sobre o que se chama essencialismo. Se realmente virmos a sexualidade (ou qualquer outra coisa) como relacional, então ela é contingente e não é a mesma ao longo do tempo ou do contexto. Talvez, por isso, devêssemos tentar não pensar na sexualidade como uma qualidade duradoura que vem do interior de uma pessoa. Sabemos que o contexto é muito importante para a expressão e a vivência da sexualidade. Assim, a questão desmorona-se sobre si própria. As sexualidades pós-humanas são sempre construídas a partir de corpos que se movem através dos seus contextos sociais e naturais mais alargados e, por isso, são sempre fluidas e em fluxo. Por conseguinte, não podemos falar de verdadeiras essências ou sexualidades como autênticas “no fundo” e não devemos ficar surpreendidos com as mudanças ao longo do tempo ou com o contexto.