Operações com agentes da Polícia Municipal de Lisboa (PML) encobertos, fazendo-se passar por turistas, a surpreender, perseguir e algemar, de forma vigorosa, vendedores ambulantes na Baixa de Lisboa e a forçar a entrada, sem mandado judicial, num alegado restaurante clandestino, foram exibidas em reportagens no Now, naquilo que parece constituir uma colaboração muito estreita entre aquele departamento da Câmara Municipal de Lisboa e o canal de TV. As reportagens têm meses e vários peritos em segurança interna têm vindo a manifestar ao DN a sua estranheza por uma polícia administrativa, sem poderes de investigação criminal (como sublinha um recente parecer da PGR, homologado pelo Governo), exibir tais comportamentos, que podem, segundo os mesmos peritos, constituir crimes como abuso de poder, usurpação de funções -- as funções de polícia criminal que a PML não tem -- e outros. Os mesmos peritos também foram estranhando o facto de algo tão público e notório como reportagens de televisão não ter resultado em qualquer ação averiguatória dos vários órgãos com competência para tal. Mas só esta quinta-feira, após ser questionada pelo jornal desde 24 de julho sobre essas condutas da PML, a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou a abertura de um inquérito-crime.“Confirma-se a existência de inquérito a correr termos no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa. O inquérito, no qual se investiga a atuação da Polícia Municipal de Lisboa, foi instaurado na sequência de reportagens jornalísticas”, respondeu este órgão judicial ao jornal.A resposta da PGR, que surge no mesmo dia em que o parecer do respetivo Conselho Consultivo sobre as competências das polícias municipais foi (em virtude da homologação pelo Governo) publicado no Diário da República, não esclarece nem quando foi aberto o inquérito nem que crimes considera poderem estar em causa. PSP não tem competência para aferir da legalidade?Este anúncio da PGR segue-se ao da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) que, igualmente questionada pelo DN, assumiu ter “instaurado processo administrativo para a respetiva averiguação” — tendo depois clarificado que a averiguação versava sobre as reportagens da Now cujos links o DN lhe enviara, e que não recebera, até ao momento, qualquer participação em relação às condutas da PML nelas retratadas. Um processo administrativo, frise-se, não é um inquérito, mas algo bastante mais leve, que pode ou não levar a um inquérito disciplinar. Ainda assim, este anúncio da IGAI, o órgão que tem a incumbência de fiscalizar as polícias, permite à PSP, igualmente questionada pelo DN em relação às condutas dos agentes da PML (que são agentes da PSP em comissão de serviço na PML, mantendo vínculo profissional e disciplinar àquela polícia, a qual pode inclusive determinar o fim da dita comissão de serviço), descartar-se de qualquer ação em relação a este assunto.“De acordo com informações oficiais, relativamente ao caso em apreço e exposto no Diário de Notícias e em outros Órgãos de Comunicação Social, a Inspeção Geral da Administração Interna instaurou um processo administrativo, que corre os seus termos”, respondeu a PSP ao jornal. “Nesse sentido, no respeito pela autonomia e independência daquela Inspeção-geral e pelos mecanismos legais em vigor, a PSP acompanha com a devida atenção o desenvolvimento deste processo, não tendo mais quaisquer comentários a fazer neste momento.”E acrescenta, naquilo que pode ser entendido como uma remissão para o Ministério Público (MP): “Quanto a qualquer situação que suscite dúvidas no que diz respeito à legalidade da atuação em causa, a mesma deverá ser analisada pelas entidades competentes, dentro dos instrumentos previstos no nosso ordenamento jurídico.”Esta última asserção soa algo inusitada, já que a Inspeção Geral da PSP tem evidentemente competência para ajuizar e fiscalizar a legalidade de atuações de agentes sob o seu poder disciplinar -- devendo, em caso de considerar que existem indícios de crime nessas mesmas atuações, notificar o Ministério Público.ERC recebeu 11 queixas contra reportagens da NowAo contrário do que se terá -- de acordo com as informações prestadas pela PGR e IGAI -- passado com a conduta dos agentes da PML nas operações alvo de reportagem, que não terão suscitado participações a estas duas entidades, a ação da equipa do Now mereceu queixas à Entidade Reguladora da Comunicação Social.Mais precisamente 11, de acordo com a resposta deste órgão ao DN: “A ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social confirma que recebeu 11 participações a respeito de reportagens emitidas no programa “Repórter Sábado” no serviço de programas Now”. Estas participações, prossegue a comunicação, “encontram-se em apreciação pelos serviços da ERC.” . "Estou e estarei sempre ao lado da Polícia Municipal", diz MoedasContactado pelo jornal, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, reagiu assim ao anúncio de que a PGR vê indícios de crime nas atuações da polícia da qual é o responsável hierárquico máximo: “Estou e estarei sempre do lado da Policia Municipal e de todas as forças de segurança. A Polícia Municipal pauta a sua atuação pelos princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade. Continuarei sempre a incentivar qualquer força de segurança a fazer cumprir a lei e a impor a ordem em nome da proteção de todos os cidadãos.” Uma das principais conclusões do parecer do Conselho Consultivo da PGR -- ao qual o edil da capital reagiu esta terça.feira, aos microfones da TSF, afirmando-se "incrédulo" -- sobre as competências das polícias municipais é de que estas não são "forças de segurança". O que são, explica o parecer, é corpos de polícia administrativa que dependem hierarquicamente dos presidentes de câmara.A 16 de julho, o DN enviou à Câmara Municipal de Lisboa e à respetiva Polícia Municipal uma série de questões relativas os procedimentos dos seus agentes, e respetivo fundamento legal, retratados nas reportagens do Now. Também perguntou se tinham sido instaurados procedimentos disciplinares aos agentes envolvidos nas operações retratadas. O jornal ainda aguarda resposta.Igualmente sem resposta ficaram as perguntas enviadas ao ministério da Administração Interna, dirigido pela ex-provedora de justiça Maria Luísa Amaral, sobre se as condutas da PML exibidas nas reportagens da Now se coadunam com a lei e se revestem de proporcionalidade, e se a ministra vai ordenar um inquérito.Também a Provedoria de Justiça foi questionada pelo jornal sobre a mesma matéria, mas limitou-se a certificar que não recebera queixas a ela relativas. .Ministério Público abre inquérito à atuação da Polícia Municipal de Lisboa