Nos primeiros cinco meses deste ano já foram apreendidas pelas autoridades nacionais cerca de oito toneladas de cocaína, metade do que tinha sido confiscado aos narcotraficantes em 2022, ano em que foi batido o recorde da década. Por isso, o diretor da Unidade de Combate a Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) da Polícia Judiciária (PJ), Artur Vaz, considera que "este ano poderemos atingir dados idênticos ou, inclusivamente, até superá-los".."Temos assistido nos últimos anos a um aumento exponencial da produção de drogas, em especial de cocaína. E também a um aumento muito significativo das remessas desse tipo de estupefaciente para vários pontos do globo, nomeadamente para a Europa. (...) Relativamente à situação nacional, de facto, no ano de 2022 registámos um aumento significativo das apreensões. Já desde 2017, 2018, temos vindo a registar esses aumentos graduais, todos os anos, deste tipo de estupefaciente. No ano passado ultrapassou as 16 toneladas. A tendência, neste momento, e de acordo com os dados que tenho, passados cinco meses de 2023, indiciam que este ano poderemos atingir dados idênticos ou, inclusivamente, até superá-los. Pelos dados de que disponho, teremos cerca de oito toneladas de cocaína apreendida, ou seja, metade mais ou menos do ano passado", revelou este dirigente da PJ no podcast Soberania, uma parceria do Diário de Notícias com o Observatório de Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT)..Ouça aqui o podcast."Não podemos negar nem enterramos a cabeça na areia, temos de estar preparados para tudo", tinha dito Artur Vaz no início do ano, em declarações ao DN, sobre o alarmante aumento da produção de cocaína e o reflexo disso no tráfico para a Europa. "Temos de estar preparados para tudo", afiançou..Presentemente, garante que estão "empenhados" em "exercer uma grande pressão sobre as organizações criminosas para inverter" esta tendência de aumento.."Tem de haver aqui uma cooperação e articulação muito fortes internamente. Isto não é um trabalho só da Polícia Judiciária, é um trabalho em rede, um trabalho dos vários órgãos de polícia criminal, autoridades aduaneiras, serviços de segurança, com outras entidades também da sociedade civil, e com o setor privado. É um trabalho que tem de ser feito muito em articulação. Depois, também há a vertente da cooperação internacional. Cada vez mais a cooperação com as autoridades de outros países e com organizações internacionais é absolutamente determinante. Nesta matéria, nos últimos anos, muito se tem feito, muito se tem evoluído em matéria de cooperação", sublinha..Reconhece que a sua unidade não teve ainda o reforço de meios ao nível da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, a qual, de acordo com o que confirmou o diretor Pedro Fonseca, no episódio 11 do podcast Soberania, aumentou em 40% os inspetores, mas atribui essa situação ao facto de ter havido outras "prioridades nos últimos anos", como o cibercrime, a corrupção e o terrorismo.."Outras áreas foram ficando (para trás) nomeadamente o combate ao tráfico de drogas. Felizmente, ao nível da União Europeia, já há dois, três, quatro anos que, de facto, há uma nova aposta no combate ao tráfico de drogas. A Europa tem problemas muito sérios de tráfico", assinalou..De facto, os recordes nas apreensões de cocaína - que têm acontecido, principalmente nos países com grandes portos, como a Bélgica e a Holanda - acompanham o aumento da produção e venda na Europa, com Portugal na rota dos narcotraficantes..Mais tráfico traz mas dinheiro e mais dinheiro traz mais violência. No coração da Europa, o grau de violência associada ao crime organizado de tráfico de cocaína escalou de tal forma que um alto comando da polícia belga receia que o seu país se possa transformar num "narcoestado".."Se não houver mais meios para as forças de segurança, dentro de 10 anos a Bélgica será um narcoestado. O cenário que nos habituámos a ver na América Latina também é possível na Europa", declarou Kristian van der Waeven, diretor-geral da Polícia das Alfândegas..Artur Vaz acompanha com preocupação este recrudescimento, mas acredita que em Portugal não será assim. "De facto, temos notado e temos registado um aumento de ações violentas associadas ao tráfico de droga, as quais, diga-se que, tradicionalmente sempre existiram, nomeadamente quando existem negócios mal resolvidos entre traficantes. Mas aquilo que temos registado em Portugal não tem nada a ver com o que se está a passar noutros países e não antevemos claramente que isso venha a ocorrer em Portugal. Aquilo que sabemos é que o que move estas organizações são os lucros e procuram fazer esta atividade da forma mais discreta possível. Quando há recurso a atos de violência soam as campainhas e o que essas organizações querem é estar fora do foco das autoridades. Mas, repito e sublinho, não antevemos que a situação evolua para esses patamares", assegura..A especialista em criminalidade organizada e narcotráfico, Sylvie Figueiredo, não está assim tão otimista e faz um retrato preocupante, também do impacto na sociedade em geral. "Em França, só em Marselha em 2023, foram assassinadas 21 pessoas relacionadas com assuntos de tráfico de estupefacientes. Ou seja, os líderes destes grupos estão fora de França, estão nos Emirados Árabes Unidos, recrutam pela internet e há pessoas que não pertencem aos grupos e cuja única função é precisamente encontrarem o alvo e assassinarem o alvo. E estamos a falar de pessoas extremamente jovens, a maior parte, 60%, têm menos de 30 anos", afirma..Por isso, acrescenta, "quando referem as consequências para a sociedade, além da corrupção, e essa corrupção tem consequências económicas - porque já tivemos em Roterdão até empresas com dificuldade em manter trabalhadores, porque eles são ameaçados pelos grupos de crime organizado para lhes cederem cartões ou facilitar a entrada ou saída de um produto - também temos esta questão da violência, especificamente em algumas zonas e por isso não sou tão positiva de que isto não possa acontecer em Portugal. Por uma razão: porque acho que se relacionará com os grupos que estiverem ativos em Portugal e com o papel que Portugal possa ter no tráfico. Porque também não nos podemos esquecer que já detetámos recentemente em Espanha um laboratório de produção de cocaína, ou seja, para finalizar o processo de cocaína. (...) Aquilo que vemos é que os traficantes estão com outros objetivos para a Europa e isto é relacionado com estes outros grupos, que já não são os cartéis clássicos em que havia aqui uma espécie de geografias próprias em que cada um atuava. Quanto mais grupos temos, mais violência penso que poderá existir. Até porque aquilo que nós vemos, nomeadamente nos elementos mais jovens do crime organizado, é precisamente este grande desrespeito pela vida humana, esta desvalorização da vida humana"..Esta perita dá como exemplo o grupo de crime organizado brasileiro PCC (Primeiro Comando da Capital). "O PCC é uma das maiores ou a maior organização criminosa da América Latina e aparentemente já foram identificados indivíduos do PCC em Portugal, além de noutros países europeus. É um grupo que ganhou poder, aliás, como o próprio cartel de Sinaloa, o grande poder dele vem da riqueza que eles conseguem e derivou do transporte cocaína. Ou seja, como o Sinaloa teve quando foi o transporte de cocaína para os Estados Unidos da América, o PCC acaba por tornar-se neste gigante do crime organizado pelo transporte de cocaína que faz desde os países de origem da cocaína até aos portos, nomeadamente o porto de São Paulo e a partir daí a sua exportação para a Europa. E é nesse percurso que ele começa a ganhar poder", assevera..O diretor da UNCTE realça que, nos últimos anos, se têm "infligido danos nas organizações criminosas", designadamente pelo facto de "um conjunto de países europeus, nos quais Portugal se inclui, temos tido a capacidade de fazer muitas intervenções em mar, no Atlântico"..O prognóstico de Sylvie Figueiredo é de que "enquanto tivermos estes níveis de produção elevados e não existirem mercados capazes de adquirir esta produção elevada, a Europa vai manter-se sempre como um mercado preferencial" porque "a rentabilidade é superior na Europa, mesmo com os custos de transporte transcontinental que são superiores, é mais vantajoso para os traficantes venderem cocaína na Europa do que nos EUA". Em segundo lugar, "os EUA têm um mercado saturado e a Europa ainda tem capacidade de crescimento"..Por último, "temos estes novos grupos que estão também a entrar neste mercado, como por exemplo os grupos albaneses, que tradicionalmente estavam mais associados à canábis e que neste momento estão com muita força no mercado da cocaína.".Por isso, conclui, "enquanto estes dois fatores se mantiverem, penso que vamos ter nos próximos anos estes volumes elevados para a Europa"..A recente classificação do tráfico de droga como crime de "investigação prioritária" na proposta do Governo para a nova Lei de Política Criminal é considerada por Artur Vaz um sinal de que se está a ter em conta todo o impacto que pode ter uma escalada do narcotráfico em Portugal.."É muito importante em termos de reforço da capacidade de combate ao tráfico, porque todos os inquéritos passam a ser de investigação prioritária. (...) O que sinto e o que também são as indicações que vêm da União Europeia é que, de facto, o combate ao tráfico tem de estar claramente nas prioridades daquilo que é a atuação das autoridades nacionais, dos Estados-membros e da própria União Europeia, pelo impacto que tem e pela ameaça que representa para toda a União Europeia".