"Ele vai prestar declarações, e creio que vai levar bastante tempo. Vai explicar passo a passo tudo o que aconteceu.” As palavras são de Ricardo Serrano Vieira, o advogado de Bruno Pinto, o agente da Polícia de Segurança Pública acusado do homicídio de Odair Moniz e cujo julgamento se inicia esta quarta-feira no tribunal de Sintra. Serrano Vieira, cujo estado de saúde levou ao adiamento da primeira audiência, que estava marcada para 15 de outubro, confirma ao DN que Bruno Pinto vai manter a alegação de legítima defesa.Uma vez que não existem dúvidas sobre quem matou Odair Moniz, cozinheiro de 43 anos nascido em Cabo Verde e residente do bairro do Zambujal, naquela manhã de 21 de outubro de 2024 na Cova da Moura, a matéria essencial sobre a qual o o tribunal vai ter de deliberar é justamente a motivação dos dois disparos desferidos por Bruno Pinto. Este deverá manter a versão do auto de notícia relativo aos acontecimentos, que foi registado em seu nome no sistema da PSP, no qual alega que lhe pareceu ver uma faca em poder de Odair. Teria sido por isso que, diz, depois de disparar para o ar, acabou por desferir dois tiros com a arma de serviço, a curta distância, no tronco do cozinheiro. Ao seguir este relato do auto de notícia, Bruno Pinto irá contradizer aquele que a PSP difundiu ao fim da manhã de 21 de outubro de 2024, e no qual se sustentava que Odair Moniz teria tentado agredi-lo, e a Rui Machado (o agente de 21 anos com quem Bruno Pinto fazia “dupla” nesse dia) com uma faca. “Quando os polícias procediam à abordagem do suspeito, o mesmo terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca, tendo um dos polícias, esgotados outros meios e esforços, recorrido à arma de fogo e atingido o suspeito, em circunstâncias a apurar em sede de inquérito criminal e disciplinar”, lia-se no dito comunicado.De resto, as primeiras notícias publicadas nesse dia, incluindo no DN, que citava a CNN, canal que por sua vez citava a TVI, falavam de “um suspeito de furto de viatura” que tinha morrido após ser baleado pela PSP na Cova da Moura. Saber-se-ia depois que não havia qualquer furto, ou roubo, de viatura envolvido, e que Odair Moniz circulava ao volante do seu próprio automóvel quando se iniciou uma perseguição por parte do veículo da PSP onde estavam Bruno Pinto e Rui Machado (perseguição que estes justificaram alegando que o veículo de Odair mudou de direção e transpôs um traço contínuo quando o respetivo condutor viu a viatura da PSP).O que apareceu mesmo foi uma faca, como informa o MP na sua acusação, exarada no final de janeiro, a Bruno Pinto: "Nas imediações do local onde o corpo de Odair caiu, próximo da viatura que ali estava estacionada, e cerca de dois minutos após o corpo ter sido retirado, encontrava-se e foi apreendido [o despacho não diz por quem] um punhal com 25 centímetros de comprimento, 15 centímetros de lâmina serrilhada e cabo de 10 centímetros em plástico de cor preta, com as inscrições na lâmina ‘MACHO’.” Este punhal não tinha, certifica ainda o MP, “vestígios biológicos em quantidade suficiente para obter um perfil de ADN”. Ou seja, não foi possível relacioná-lo quer com Odair quer com qualquer outra pessoa.O testemunho precioso da videovigilânciaNaturalmente, Rui Machado, que estava com Bruno Pinto quando este disparou (tendo até dado uma bastonada em Odair depois de este ser baleado) é testemunha no julgamento — sendo que o Ministério Público (MP) acaba de o acusar, num segundo processo (que foi extraído do principal), do crime de falsidade de testemunho (já lá iremos).Mas, pela primeira vez num caso de homicídio “policial”, o tribunal conta com uma ajuda preciosa para a descoberta da verdade: as imagens captadas por uma câmara de videovigilância colocada na rua onde Odair foi baleado, que “apanharam” a interação entre ele e os dois agentes e permitiram, como o DN noticiou em primeira mão, à Polícia Judiciária (PJ) determinar que não tinha uma arma na mão no momento em que, segundos antes de ser atingido mortalmente, avançou contra Bruno Pinto de braços erguidos.A essas imagens somam-se os vídeos filmados por um morador da rua onde a morte aconteceu, que circularam nas redes sociais nos dias seguintes e foram juntas ao processo. Estes vídeos, filmados do que parece ser uma varanda, de cima para baixo, não mostram o momento dos disparos, mas o que se seguiu: as movimentações de vários polícias junto ao corpo, a chegada, vinte minutos após Odair ser atingido, do socorro médico, a tentativa de reanimação e a retirada do corpo.A faca misteriosa “plantada” na cenaÉ com base nestes últimos vídeos, assim como nos testemunhos de vários dos presentes — entre polícias, bombeiros e médicos —, que o Ministério Público acusou, em despacho de 1 de outubro, quer Rui Machado, o agente que fazia “dupla” com Bruno Pinto, quer Daniel Nabais, outro agente da PSP que esteve no local (estiveram mais de uma dezena de efetivos desta polícia, incluindo graduados e agentes de investigação criminal, na cena), de falsidade de testemunho, por terem dito que viram a já mencionada faca sob o corpo de Odair.No despacho de acusação em causa, que arquiva o inquérito no que respeita a dois outros crimes que estavam em investigação — favorecimento pessoal, relativo à suspeita de que alguém teria “plantado” na cena a faca (para dar, supõe-se, solidez à tese de legítima defesa), e falsificação, por se desconfiar que o auto de notícia registado como sendo de Bruno Pinto não fora por si elaborado e “falsificava” a narrativa dos factos — a procuradora põe em causa, como destituída de credibilidade, a versão dos dois agentes de que, ao mover o corpo de Odair para, alegadamente, tentarem perceber que tipo de ferimentos tinha, viram uma faca mas nem avisaram ninguém nem a retiraram dali. Mas não é só a ausência de credibilidade que leva à acusação: várias pessoas presentes no local, e que tiveram de mexer no corpo de Odair, inclusive para proceder à tentativa de reanimação (que implicou colocar uma placa sob o mesmo), asseguram que não havia faca nenhuma sob o corpo nem perto deste.De acordo com o Público, que teve acesso à análise da Polícia Judiciária aos vídeos, a primeira vez que surge uma faca no local onde Odair caiu é 27 minutos após os disparos, o que torna claro que a suspeita do MP — que ou a faca encontrada não pertencia a Odair Moniz e foi “plantada” no local, ou pertencia ao malogrado cozinheiro e foi “colocada à vista” — tem toda a razão de ser. E que, como o despacho que acusa os dois agentes admite, o inquérito só é arquivado no que respeita ao crime de favorecimento pessoal porque, tendo havido “inúmeras pessoas no local” e não existindo nas imagens disponíveis indícios claros que apontem para uma pessoa concreta, não é possível levar alguém a julgamento por esse ato.Confusão beneficia ou prejudica arguido?Quer isto dizer que, como aponta ao DN um especialista em segurança interna que prefere não ser identificado, “a confusão que foi criada na cena do crime, com polícias por todo o lado a mexer em tudo, em vez de fazerem aquilo que era seu dever, que era preservar os indícios”, permite que não só não seja possível determinar de onde veio a faca (se era de Odair Moniz ou não) como não se saber quem a colocou no local. Lembra, diz este especialista, “o caso de um cidadão que ficou cego após ser espancado por elementos do corpo de intervenção, mas não foi possível condenar ninguém por esse crime, porque nenhum se deu como culpado e os outros não falaram”.Aparentemente Bruno Pinto não poderá pois contar com a presença da dita faca no local como prova de que Odair tinha de facto consigo uma faca, mas o facto de alguém tê-la “plantado” ali também não significa que o arguido esteja a mentir.Aliás, como argumenta um penalista ouvido pelo DN, Bruno Pinto pode conseguir convencer o tribunal que achou que tinha visto uma faca — o que, mesmo que não houvesse uma faca, poderá justificar os disparos, tanto mais que estava numa zona que consideraria “hostil” (o bairro da Cova da Moura) e Odair Moniz resistiu a ser detido, tendo-o agredido com um pontapé.Poder-se-ia assim estar, aventa, perante um caso de "excesso de legítima defesa" (previsto no artigo 33º do Código Penal, no capítulo das "causas que excluem a ilicitude e a culpa"), e que permite que a pena seja "especialmente atenuada" se "houver excesso dos meios empregados em legítima defesa", sendo mesmo dispensada a punição se "o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis".Mas este advogado de Direito penal, que só pode falar do caso não sendo identificado, também manifesta a sua perplexidade com a acusação, que é de homicídio simples com dolo eventual — querendo dizer que o polícia não teve intenção de matar mas se conformou com a possibilidade de que a morte de Odair resultasse dos disparos.“Falar de dolo eventual quando se aponta para o tronco de alguém e se dispara duas vezes só vejo acontecer quando está em causa um polícia; no caso de qualquer outro cidadão que dispare uma arma de fogo duas vezes sobre o tronco de outra pessoa, fala-se de dolo direto, ou seja, de intenção de matar.” .Morte de Odair Moniz: uma faca talvez plantada não se sabe por quem e um auto de notícia a várias mãos.Caso Odair: as perguntas, as respostas e as (várias) dúvidas .De “suspeito de furto” de faca na mão a vítima desarmada de homicídio policial: a fábula de Odair