Recentemente, foram abertas 40 vagas para um emprego, talvez, invulgar: ser espião. Para muitos, a primeira imagem que surge é a do personagem James Bond, criado pelo escritor britânico Ian Fleming, que, aliás, esteve em Lisboa ao serviço da Inteligência Naval Britânica durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de existirem missões secretas no estrangeiro, essas não são a generalidade das funções dos espiões — ainda menos num país como Portugal, que não está envolvido em guerras e é, por norma, pacífico.O site do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) apresenta as definições dos cargos disponíveis, sempre aberto ao envio de candidaturas espontâneas: Oficial de Informações e Técnico Superior de Apoio à Atividade de Informações; Oficial Adjunto de Informações; Técnico Adjunto de Apoio à Atividade de Informações; Técnico de Segurança de Apoio à Atividade de Informações; e Auxiliar de Apoio à Atividade de Informações. O que todas as funções têm em comum é a base da espionagem: a informação.O DN falou com um ex-agente que prefere manter o anonimato, por razões óbvias, para explicar, na prática, quais as atividades por detrás destas descrições genéricas dos cargos e o que é necessário para ser um espião português hoje. Há, digamos, dois serviços distintos — o interno e o externo — e, em ambos, duas categorias de profissionais: os analistas, dedicados ao trabalho de análise da informação, e os operacionais, que realizam, por exemplo, operações de vigilância e contra-vigilância. O Sistema de Informações da Segurança (SIS) concentra-se em ameaças à segurança interna. O SIED é o serviço externo — SIED significa "Serviço de Informações Estratégicas de Defesa" e, apesar da palavra "defesa" no nome, não se trata de um serviço militar: preocupa-se com as ameaças à segurança externa de Portugal. "São questões que têm a ver com interesses estratégicos de Portugal. Por exemplo, pode não ser uma ameaça direta a Portugal, mas se houver uma ameaça às populações portuguesas que vivem na Venezuela, na África do Sul ou no Brasil, essa área interessa particularmente a Portugal, porque coloca em risco cidadãos portugueses no estrangeiro", detalha o ex-agente. "O SIED preocupa-se, igualmente, com ameaças indiretas aos interesses estratégicos do país. Temos interesses estratégicos em países fornecedores de hidrocarbonetos, como a Nigéria e a Argélia. Portugal depende, ao nível do petróleo e do gás, desses países; o que se passa lá é importante para nós". Acrescenta, porém, que isso não significa que "Portugal desenvolva ações ofensivas agressivas para recolha de informação nesses países". O trabalho passa por "estudar tudo o que se passa nesses Estados, de modo a antecipar eventuais ameaças aos interesses estratégicos de Portugal".Dentro dos serviços — tal como nos filmes que retratam a CIA — existem departamentos dedicados a áreas geográficas específicas, que podem mudar de foco consoante os acontecimentos. Nas Américas, atualmente, uma fonte aponta a Venezuela como um dos principais locais de interesse; na Ásia, a China; na Europa, a Rússia; no Médio Oriente, um conjunto de países árabes; e, em África, Angola e Moçambique. Existem ainda departamentos transversais, que tratam de temas temáticos e não geográficos. "Os meios são alocados em função dessa lógica de prioridades", explica o ex-agente. E quem define as prioridades? Conforme a lei, cabe ao primeiro-ministro, de acordo com os dados fornecidos pelo Conselho Superior de Informações, o órgão que aconselha o chefe do executivo em matérias de inteligência. E, no caso das ações operacionais, aquilo que mais se aproxima do imaginário de James Bond, é a atividade analítica que determina as ações no terreno.O livro Ao Serviço de Portugal, de Jorge Silva de Carvalho, antigo diretor do SIED, traz algumas dessas histórias e revela operações realizadas no estrangeiro, algumas descritas como "hipotéticas", mas que dão uma noção prática do trabalho. Numa passagem, o autor narra que os serviços podem enviar um agente com cobertura de jornalista para o sul do Líbano. Com o "disfarce" de jornalista, era habitual usar um telefone por satélite com GPS (outros tempos tecnológicos), o que permitia localizar, por exemplo, uma patrulha do grupo Hezbollah. Há também situações semelhantes aos filmes no território nacional. .No mesmo livro relata-se uma operação de vigilância num hotel no Algarve, em parceria com um serviço estrangeiro, cujo alvo era um "elemento do aparelho militar de uma organização terrorista, com vista ao seu recrutamento ou, pelo menos, à sua intimidação". A cena descrita é quase cinematográfica: estar no quarto da frente na tentativa de tirar uma foto — sem tripé, por falta de meios —, revezando-se para não perder o momento e a tentar capturar o rosto da pessoa vigiada. "Em cada verão, poderíamos ter três ou quatro operações semelhantes a esta", escreve o autor. Ou seja, quem passou férias no Algarve pode ter-se cruzado com um agente sem o saber, porque estes têm de parecer apenas mais um português em agosto.Parecer "normal"Para esses disfarces, o ex-agente entrevistado pelo DN conta que os aspetos físicos são levados em conta no recrutamento, porque as pessoas precisam parecer "normais", especialmente em operações de contacto e vigilância. "Algumas pessoas dificilmente integrarão as equipas, porque o aspeto também é importante na medida em que gera empatia e simpatia. Por muito que queiramos recrutar alguém com um estilo alternativo, um brinco, uma tatuagem visível, isso pode dificultar a versatilidade. O disfarce fica complicado e são facilmente identificadas. Procura-se, normalmente, que as pessoas se enquadrem e desapareçam no meio da multidão", detalha.No livro Inteligência — Fundamentos e Elementos Essenciais, de António Freitas, ex-elemento do SIED, constam características padrão: "altura mediana, entre 1,65 m e 1,80 m", "aptidão física para desempenho operacional" e "postura física adequada, designadamente manter o corpo em posições socialmente convencionadas, andar de forma natural sem chamar a atenção e ter uma gesticulação harmoniosa e sem tiques". A obra funciona como um manual sobre as competências procuradas pelos serviços e, até, sobre como ser um espião: inclui modelos, métodos e táticas de vigilância.Conhecimento teóricoPara além do aspeto físico, as habilitações académicas são essenciais. "Hoje em dia o mestrado é, basicamente, o nível mínimo necessário", afirma o ex-agente ouvido pelo DN. Com a profissionalização dos serviços, "pelo menos metade dos analistas já são doutorados em alguma área de especialização", acrescenta. Essas áreas tornaram-se cada vez mais diversas e orientadas para novas tecnologias, como a inteligência artificial (IA). Porém, algumas das características mais importantes não se aprendem nas universidades. "As condições de base são simples, mas difíceis de encontrar: bom senso, cultura geral, formação de base, equilíbrio emocional, mais do que inteligência puramente cognitiva, inteligência emocional. Pessoas com equilíbrio social, curiosidade pelo mundo e pela vida", aponta.A capacidade de gerar empatia e simpatia, necessária para recrutar fontes, por exemplo, também está na base do recrutamento. "É preciso ter uma grande capacidade de relacionamento interpessoal, capaz de gerar simpatia e empatia. Essas são condições fundamentais", complementa.Em Portugal há um detalhe específico quanto à recolha de informação: os serviços portugueses são os únicos na Europa que não podem usar determinadas técnicas, nomeadamente interceções de comunicações (como metadados) para localizar telemóveis, por exemplo. A proibição está na própria Constituição, e existem especialistas que defendem a sua revisão, alegando que os tempos mudaram. Softwares muito sofisticados, como o israelita Pegasus, uma das ferramentas de vigilância digital mais avançadas do mundo, e o FinSpy também são proibidos. "A nível eletrónico é complicado, mas as open sources (fontes abertas) ajudam bastante hoje em dia", admite o ex-agente.. Os espiões estrangeiros em PortugalO livro A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz — 1939-1945, de Neill Lochery, descreve a presença de espiões de várias partes do mundo em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial. "Às vezes parecia que quase toda a gente em Lisboa era espiã ou fingia ser (...) Os cafés e restaurantes do Rossio enchiam-se de espiões, tanto recrutados no local como estrangeiros, assim como os bares dos hotéis mais glamourosos da cidade", escreve Lochery. Noutra passagem, é referido que Ian Fleming se inspirou no casino do Estoril (frequentado por espiões na época) para os seus livros do 007. "Agentes aliados e alemães operavam abertamente na cidade, monitorizando cada movimento do inimigo” O seu papel era registar embarques no agitado porto de águas profundas de Lisboa, espalhar propaganda e interromper o fornecimento de mercadorias vitais ao inimigo. Entre os agentes em Lisboa estava um jovem, Ian Fleming, ocupado em arquitetar a Operação Goldeneye e a jogar 21 no casino do Estoril, cenário que mais tarde serviria de inspiração para um filme de James Bond", relata.O país continua a atrair espiões estrangeiros, com a geopolítica a ditar prioridades. Não é preciso ser especialista para perceber que os russos, sobretudo após a invasão da Ucrânia, têm maior atividade. Há provas disso. Recentemente descobriu-se um casal brasileiro que vivia na zona do Porto com uma vida aparentemente comum: na verdade, eram espiões russos com passaportes brasileiros, pertencendo a uma das categorias mais complexas da profissão, os chamados "ilegais", retratados na série americana The Americans.É um método de espionagem amplamente usado pela Rússia há décadas, em que agentes vivem com identidades falsas durante anos. Diversos casos de "ilegais" russos com passaportes brasileiros a viver na Europa foram revelados nos últimos anos. "Com o reacendimento dos grandes conflitos estratégicos, a atividade de espionagem e contra-espionagem voltou a ganhar importância. Os países com serviços de informações mais ativos, que operam em vários Estados, são os que mais dão trabalho — claramente a Rússia e a China à frente", analisa o ex-agente.Se a profissão de espião é, por definição, altamente secreta, a sua imagem tende a ser romantizada pela literatura e pelo cinema. Contudo, algumas agências começam a desmistificar a ideia de James Bond e a mostrar o que de facto fazem. Foi o caso do MI6, o serviço britânico de inteligência, que entrou recentemente para a rede social Instagram. O primeiro post mencionava, claro, o espião de ficção mais conhecido do mundo. Na legenda do vídeo lia-se: "O que quer saber realmente sobre o MI6? É hora de separar factos da ficção", numa tradução literal. .Apesar de o site das secretas portuguesas ser bastante completo em termos de informação, com muitas descrições do que é o trabalho e das ameaças atuais, ainda não chegamos ao nível de um perfil no Instagram ou TikTok que mostre na prática o que é ser um espião em Portugal.amanda.lima@dn.pt.Marinha deteta navio-espião da Federação Russa em águas portuguesas.Reino Unido expulsa três espiões chineses que se faziam passar por jornalistas