O leiriense que dá música a bebés, faz da morte celebração e cria ópera com reclusos
Brunch com Paulo Lameiro, musicólogo, pedagogo e coordenador da Rede Cultura 2027.
A chegar ao Moinho do Papel, edifício que ainda honra as funções de produzir folhas de escrever, agora reciclando páginas de publicações antigas, em pleno centro histórico de Leiria, nada faz adivinhar o que me espera. Não é um simples brunch. Nem há nada de vulgar à mesa - nenhum produto que não tenha passado por seleção pessoal e cuidada do convidado, que de mim fez pessoa da casa ao receber-me na sua Leiria e oferecer-me o melhor da cidade. Hoje convertido em museu, aquele que é o primeiro moinho de papel conhecido em Portugal, que serviu também a moagem de cereais e de lagar de azeite, será palco de um espetáculo para audiência de uma pessoa só. Com música de Schubert tocada ao vivo no acordeão de Pedro Santos, dançada pela bielorrussa Inesa Makava, que há 15 anos trocou Minsk por Leiria, e voz do próprio Paulo Lameiro. Os dois são cúmplices do musicólogo e pedagogo em iniciativas como os Concertos para Bebés e também se lhe juntam para me surpreender com um espetáculo fora de palco e cuja coreografia me envolve também, em demonstração à medida do compasso dos diferentes usos das mós medievais.
Antes mesmo de nos sentarmos os dois à conversa num jardim interior com vista para a queda de água que movimenta as pás do moinho, Paulo Lameiro já mostrou do que é capaz. E que vai muito além da música, da técnica e da capacidade de fazer do simples algo extraordinário. É tudo o que entrega e deixa que seja absorvido à medida da experiência de quem tem à frente - o seu público não se limita a assistir, participa na imensidão de sensações que se sucedem.
É assim também que Paulo entretece histórias daqueles com quem se cruza para descrever como chegou aonde está, quando Inesa e Pedro esgotam as peças escolhidas d"A Bela Moleira, percorridas as salas que me foram apresentando nesse bailado em tons de pão e papel cru.
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À mesa montada no pátio requalificado por Siza Vieira, numa manhã de verão refrescada pelo Lis e onde a qualquer momento esperamos ver surgir ninfas e faunos, Paulo Lameiro diz-me que nunca deixou verdadeiramente de pertencer à sua aldeia de Pousos, onde nasceu em 1965. E mesmo tendo vivido 20 anos em Lisboa, nunca aqui teve morada. "Fui com os meus pais assinar o contrato-promessa para aquele que seria o meu apartamento e a minha mãe percebeu que aquilo não era uma alegria para mim. Voltámos atrás e desfizemos o negócio nem 15 minutos depois." Ri-se da recordação desses tempos em que experimentara o que a vibrante Lisboa dos anos 1980 tinha para oferecer, uma segunda vida passada no Bairro Alto, portas-meias com o Conservatório, onde cumpriu o Curso Superior de Canto e de cuja direção viria a fazer parte.
A vida verdadeira, a real - interrompida pelos palcos nessas décadas de aprendizagem -, corre-lhe nas veias que ainda trazem o calor dos banhos de tremoços da infância ao lado da família materna e o ensejo do pescador avô paterno. Mas foi de música que se construiu a sua existência desde que entrou miúdo na filarmónica com o sonho de tocar trompete até à banda da GNR. "Ainda acho que as bandas filarmónicas são a maior instituição cultural portuguesa; são mais de 800 núcleos que juntam amadores e profissionais, erudição e popular, religioso e profano, intergeracional...".
Tinha 9 anos quando recebeu o seu primeiro vencimento, "2100 escudos, o mesmo que todos os outros membros recebiam e que depositei na conta da CGD que mantenho em exclusivo até hoje", conta. Foi a filarmónica que o levou ao São Carlos e essa ambivalência mantém-se-lhe colada à pele e aos projetos que cria e abraça. Mas o caminho não foi fácil. "Aqui achavam que eu era extraordinário e o maestro da banda convenceu os meus pais a mandar-me a estudar para Lisboa; estava convencido que era o maior. Mas quando cheguei ao Conservatório, com 18 anos, rapidamente percebi que havia muitos maiores do que eu."
Sem vaga em trompete, um professor extraordinário empurrou-o para o canto antes mesmo de ter estreado ouvidos e alma na beleza da ópera. O encantamento, porém, ao assistir a O Cavaleiro da Rosa, de Strauss, no São Carlos, foi instantâneo e em cinco anos fazia-se barítono no coro do Teatro. Da ópera bebe até hoje a vida - "Só percebi o que era uma mulher ao cantar Carmen (de Bizet), ao sentir toda aquela energia fabulosa." Ainda assim, foi o Rigoletto, de Verdi, que mais repetiu e ainda se arrepia com a complexidade da história de um pai que sem saber manda matar a própria filha.
O melhor da terra e das gentes
Sorriso rasgado e histórias na ponta da língua, o tempo passa demasiado depressa quando do outro lado da conversa está Paulo Lameiro e para nos fazer o gosto ao dente um retrato comestível da região. À mesa, há pão cozido nessa manhã pela Sandra, que montou o petisco e o cenário com requinte, feito com farinha moída ali mesmo. Os ovos cozidos são frescos, das galinhas que Paulo cria lá em casa; os queijos frescos de cabras da aldeia da Memória; o tomate coração de boi apanhado no quintal do sogro, regado a sal e azeite e coberto de manjericão fresco ("é o meu petisco favorito, o que como todas as noites de verão", confidencia o maestro); a marmelada é caseira, como o "café da avó", e há pêssegos de Cortes a perfumar o ar. Até a água é dali, de Amor, e o sumo roubado às laranjas do quintal.
A opulência faz desconfiar dos verdadeiros motivos que impedem Paulo Lameiro de deixar aquelas terras - ele garante que é o provincianismo que nunca deixou ser conquistado pelo lado mais cosmopolita de quem faz vida entre a aldeia leiriense que o viu nascer e Tóquio ou Barcelona, onde leva os seus Concertos para Bebés e a Ópera na Prisão. Concordamos que a ligação profunda à comunidade, às pessoas, foi determinante para a sua escolha de voltar à terra onde também conheceu a mulher, a quarta a entrar para a sua banda filarmónica - a primeira a abrir-se ao género feminino. Cristiana é professora de música e mãe dos seus dois filhos, Simão, de 19 anos, que estuda oboé em Colónia (Alemanha), e Natércia, de 25, realizadora em Barcelona. São também eles cidadãos do mundo com o coração em Leiria, onde ainda cumprem tradições familiares como as noites em que se juntam para fazer sushi.
Apesar dos tempos em Lisboa, foi no Porto que Paulo Lameiro aprendeu e cantou pela primeira vez profissionalmente. "Sou formado em canto lírico e cantei sete anos no São Carlos, mas já não canto", diz, a contrariar aquilo que eu própria ouvira uma hora antes, ali mesmo no Moinho do Papel. Explica-se ao meu protesto depois de o ouvir interpretar Schubert: "Já não posso fazê-lo em palco, não tenho a qualidade que isso requer. Isto é como ser um atleta de alta competição, é preciso treinar muito. E isso também me ajudou a perceber que o que me fascina mesmo não é o palco, mas as práticas musicais que nos transformam, a arte comunitária, a que consegue tocar as pessoas na vida e no mundo real. É muito importante formar bons profissionais, mas a arte tem lugar maior no nosso dia-a-dia."
Conta que o momento transformador aconteceu quando tocava na serra, na sua banda filarmónica, um dia depois de interpretar uma ópera de Händel em São Carlos, e o prazer visceral que sentiu foi tão avassalador quanto a da véspera. Com diplomas em Ciências Musicais e Historia da Música, pós-graduação em Etnomusicologia e uma carreira no teatro de ópera, acabou por ceder à paixão que o puxava à terra.
"Um teatro de ópera é uma míni sociedade, há desde o divo ao senhor do bar, à costureira, e todos vivem ali. E eu sentia que o mais puro da beleza da ópera enquanto arte total dialogava com o que eu conhecia da minha aldeia." Quando trocou o São Carlos pelo ensino, chorou "baba e ranho", mas nunca se arrependeu. Sobretudo pelas portas que abriu no seu próprio caminho. A começar pelo projeto de uma escola de artes para bebés. "Em 1991, criava o Berço das Artes, um projeto de música, teatro e dança, que hoje começa em grávidas, passa por bebés com algum tipo de necessidade especial, e que depois alargámos a pessoas com dor oncológica, com crónica e por fim em estado terminal. Em Leiria existe o único laboratório de musicoterapia em hospital", orgulha-se.
O seu projeto maior, que o faz correr mundo e que acabou por ramificar também na Ópera na Prisão, arrancou em 1998. "Fizemos os Concertos para Bebés com cantores a sério, orquestra sinfónica e tudo, e conseguimos que as salas os acolhessem na temporada principal; não são programação à parte, menor, para crianças." Descreve o que estudou, o que leu, os especialistas que ouviu para entender em pormenor como a música podia impactá-los, a influência da reação dos pais e dos bebés - a baba é indício de prazer, a suspensão de respiração sinal de encantamento e a reação de um recém-nascido ao canto de um profissional não se compara à que tem quando é um aluno que ouve, por muito bom que seja.
A ópera transformadora
E como é que dos bebés se passa para as celas que acolhem jovens de todo o país que cumprem pena em Leiria? Paulo explica que o projeto começou em 2004 e que rapidamente revelou o poder do teatro de ópera. "Lembro-me quando apresentei o programa que houve um recluso que largou um palavrão cabeludo: "tudo menos ópera", disse ele. E um ano depois estava a cantar o Dom Giovanni." Os programas que vem desenvolvendo duram três anos cada e até 2019 era Mozart que levava à prisão, juntando reclusos e profissionais, não descurando o profissionalismo e empenhando-se em estabelecer relações pessoais e ouvir os que guiava. "Foi transformativo para todos nós que contactamos com eles: familiares, guardas, músicos", assume, frisando que "não há drama wagneriano que se aproxime às histórias daqueles rapazes".
O processo é longo porque há todo um primeiro ano para construir uma relação, dar-se e escutar os rapazes e as suas famílias, de mente aberta. O segundo ano é dedicado à montagem da ópera e o terceiro uma espécie de desmame em que usa a música e a experiência conjunta para tentar apontar-lhes caminhos de saída de um destino padrasto que lhes foi traçado pela vida. O que agora tem em mãos é uma criação original, moderna e tem dimensão europeia. "O Traction é um original que envolve o Liceu de Barcelona e a Irish National Opera, envolve técnicas de realidade aumentada, criação contemporânea, etc. Com um género erudito, conseguimos sentar à mesma mesa quem nunca teve sequer mesa para se sentar. É este o poder da ópera!"
Não se julgue porém que este que se diz ex-cantor lírico e dedicado criador de carpas KOI - uma das razões de peso para optar pela vida no campo - pôs ponto final a projetos novos. Inovar tem sido a sua trave mestra também na candidatura de Leiria a Capital da Cultura, com Paulo Lameiro a coordenar iniciativas como o Museu na Aldeia - que leva obras de arte valiosíssimas para exposição temporária em minúsculas aldeias serranas, despertando aquelas poucas pessoas para novas realidades - e as mais originalidades que tecem a história da terra e das pessoas da região com as mais diversas formas de expressão artística e cultural.
"Os projetos comunitários sensibilizam a comunidade, têm um efeito transformador, faz-se o clique e as pessoas reconhecem o papel da cultura em pleno." Foi isso que o fez aceitar o desafio de levar Leiria a capital da cultura, enquanto update da relação humana e dos leirienses com a sua terra. "Ao contrário de outros desafios deste território, nenhum tema gerou tanto consenso, mesmo político", diz. "E isso é também revelador."
O tempo que lhe resta, dedica-o aos idosos, sobretudo em estado vegetativo, para quem agora direciona esse bem que começou por levar aos bebés. "Interessa-me muito hoje esse fim de vida, a valorização da experiência, o tempo longo, que não é o da flor ou do animal mas o da pedra", resume, assumindo os desafios dessa vontade de celebrar a partida. "É imperdoável que não a celebremos."Ali à mesa montada no Moinho do Papel também celebramos e fazemos votos de novas viagens por estas histórias, antes de me dizerem adeus de mãos cheias com tudo o que ali saboreei. "É uma merenda que lhe preparámos com o melhor aqui da terra." E vem em cesta regional, feita no Juncal.
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