Pedro Foyos em 2009, na sua Casa das Rosas forrada de livros.
Pedro Foyos em 2009, na sua Casa das Rosas forrada de livros.João Girão / Arquivo Global Imagens

O jornalista que criava letras (e tartarugas)

Em 1960, com 15 anos, foi o “pimpolho” do jornalismo nacional; em 1975, no Verão Quente, fez reportagem armado. Ex-chefe de redação do DN e autor de, entre outros livros, O grande jornalzinho da rua dos Calafates, sobre os primórdios deste jornal, Pedro Foyos morreu esta sexta em Lisboa.
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“Não quis antes dizer Pedro Fotos?” É assim que o Google responde, neste sábado, à pesquisa do nome tão peculiar. Não, Google, é mesmo Pedro Foyos. O Pedro Foyos jornalista e escritor e fotógrafo, ex-chefe de redação deste jornal, que na manhã desta sexta-feira deixou, aos 78 anos (nasceu a 18 de junho de 1945), viúva a também jornalista, poetisa e igualmente ex-DN Maria Augusta Silva.

E, mesmo que o Google (e a maioria) não dê disso conta, mais um vazio nessa longa cadeia de desaparecimentos e esquecimentos que é a história do jornalismo nacional, uma cadeia que ele, jornalista historiador do jornalismo - publicou, precisamente sobre o DN e nos 150 anos deste jornal, em 2014, um relato dos seus primórdios, O grande jornalzinho da rua dos Calafates, como antes publicara em 1986 Grandes Repórteres Portugueses da I República  - conhecia bem.

Um vazio que a jornalista, escritora e ex-DN Ana Marques Gastão diz dever ser honrado: “Ele foi importante no seu tempo, temos de fazer justiça às pessoas. Recordar o trabalho que um jornalista como ele fez pela memória do jornalismo é ainda mais importante neste momento em que o próprio DN e o seu arquivo estão em risco.”    

Tentemos então fazer justiça a Pedro Foyos.  Que, incrível, começou no jornalismo aos 15, no famoso diário República. Aos quinze? Não é o Google agora a perguntar, é mesmo o senso comum, mas oiçamo-lo da sua boca: “Tão novo, que fui obrigado a esperar pela idade sindicalmente estatuída para poder para o ingresso ‘oficial’ na profissão”. Acumulava com os estudos e, conta em entrevista inserta no livro  Memórias Vivas do Jornalismo (2004), esgotava-se tanto que “nos dias de folga fazia hibernação reptiliana, conseguia dormir 20 horas consecutivas.” 

Esse miúdo a quem a “Dona Vanda do Sindicato” chamava “pimpolho” acumulava no liceu a precocidade na profissão com a política, numa associação de estudantes que acabaria proibida. “Modéstia à parte, conseguimos ser mais ativos e lestos que os universitários”, explica na mesma entrevista. “Na peleja urbana, então… era só verem-nos quando tínhamos de correr os dez metros livres com a polícia de choque a morder-nos as canelas…”

Ter-se iniciado no jornalismo antes da idade da tropa - o serviço militar, recorde-se, era obrigatório para os mancebos, e a guerra colonial começara em 1961 - permitiu-lhe descobrir outra paixão, a da fotografia (o Google não errou assim tanto, afinal): “Os jovens incorporados que na vida civil exerciam profissões relacionadas com a comunicação social eram remetidos para os Serviços Cartográficos do Exército onde se aprendia não só cartografia mas também fotografia, cinema e técnicas audiovisuais. O nosso epíteto jocoso era o de ‘atiradores foto cine’, um desempenho arriscado na guerra colonial, à semelhança dos repórteres de guerra. As fotos e filmes que vemos hoje, reportando terríveis cenas, foram realizadas, em grande parte, pelos militares com esta especialidade.” No seguimento dessa descoberta, não mais largaria a fotografia, organizando exposições, publicando livros - por exemplo A Vida das Imagens (1990) -  fundando publicações - seria até, durante 12 anos, presidente da Associação Portuguesa da Arte Fotográfica.   

“Era uma figura anormal na redação”

Mas voltemos ao início: ter começado tão novo permitir-lhe-ía, em 50 anos de ofício, passar por “três idades da comunicação escrita, a começar no manuscrito, passando pela máquina de escrever, finalmente (por enquanto) o computador” - e poder recordar quem foi o primeiro a profanar “o silêncio da redação do República”, atordoando “os inocentes colegas com o atroz matraquear do teclado de uma máquina de escrever”: Baptista Bastos (1934/2017).

Haveria também Foyos de introduzir uma outra maquineta nos instrumentos da profissão: o revólver ou pistola que levava no tablier do carro quando, na sequência do atribulado fecho do República, em pleno Verão Quente, andou com Vítor Direito (que viria a fundar o Correio da Manhã) pelo país a imprimir edições clandestinas de o Jornal do Caso República. “Tempos inquietantes, andávamos armados. Com o seu humor característico, o Vítor dizia que éramos pioneiros na modalidade de ‘jornalismo armado’.”

Nesse mesmo verão é co-fundador de um jornal diário com nome apropriado ao momento - A Luta - e depois, em tempos já mais calmos, passa pelo Século Ilustrado e A Vida Mundial, chegando depois ao DN, onde seria chefe de redação e onde ficaria, como a mulher Maria Augusta Silva (que conhecera no República) até ao início do século XXI e ao final da sua carreira nos jornais. É daí que o recorda Ana Marques Gastão: “Era casado com o jornal. Um homem que se fosse preciso trabalhava 24 horas ali e ninguém dava por isso. E um especialista do jornalismo, conhecedor da história toda e do que acontecera aos outros jornais.”

Outro jornalista e ex-DN, João Céu e Silva, que entrou no jornal no mesmo ano que Ana Marques Gastão (1989), atribui a Foyos “uma capacidade literária muito interessante”. E usa o título de um dos livros do ex-camarada para o definir: “Era um criador de letras [romance publicado em 2008], uma das grandes figuras intelectuais que passaram pelo DN. Um lado que muito poucos colegas reparavam que ele tinha - era uma figura anormal na redação, não havia muitos jornalistas capazes de passar da página do jornal para um outro fôlego, o do romance.”

“Tinha aquele lado obcecado da luta pela liberdade”

Além do já mencionado Criador de Letras, este homem de tantos instrumentos publicaria ainda as ficções Botânica das Lágrimas (2009) e Jardim República (2010). E criaria tartarugas. É um auto-designado “amigo improvável”, o mágico e comunicador Luís de Matos, a revelá-lo: “Os meus pais tinham uma tartaruga e ele ficou com ela. E às tantas tinha dezenas, criou um viveiro de tartarugas. E tornou-se uma autoridade mundial em tartarugas.” Ri: “Ele era assim, acontecia-lhe uma coisa na vida e ele transformava-a numa especialidade.”

O viveiro de tartarugas tinha lugar no jardim da Casa das Rosas, a residência de Pedro Foyos e Maria Augusta em Loures. Onde Luís de Matos passou, conta ao DN, muito sábado a preparar, com esse casal “reciprocamente apaixonado”, o seu programa Domingo em Cheio, que a RTP transmitiu em 1996.

Vinte e cinco anos mais novo que Foyos, o mágico viu no jornalista, que conheceu numa entrevista - “Foi a primeira entrevista da minha vida que fez capa, a do caderno de Artes do DN” - “uma pessoa incrivelmente jovem”, com a qual houve uma “empatia instantânea”. “Começámos logo a tratar-nos por tu, o que é incomum, e ficámos amigos. Veio a ser uma das pessoas que me acompanhou mais de perto, e me deu mais conselhos. Toda a sua experiência e o seu lado mais visionário me ajudaram. Ouvia tudo com muita atenção e fazia as perguntas de que não estávamos à espera.”

Para além da amizade e dos conselhos, Luís de Matos encontrou em Foyos “uma pessoa de integridade pessoal e profissional absolutamente inabaláveis. Tinha aquele lado obcecado da luta pela liberdade, a liberdade de imprensa e a individual. Para ele eram obviedades.” 

Talvez por isso, “ambição não era”, diz Ana Marques Gastão, “palavra que o descrevesse”. Isto, claro, se não considerarmos ambição querer ser o que se sonhou. Ou não tivesse, aos oito anos, depois de ler As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, tomado a "inabalável decisão de ser um escritor famoso". Ou não tivesse, com 15 anos e umas reportagens publicadas no suplemento juvenil do República, ao ser desafiado pelo diretor Carvalho Duarte para uma vida “de miséria, que quase não dá para viver, é para passar fome”, dado o salto no escuro: “Fiz aquela parte de ‘ir pensar para casa’. A verdade é que estava a completar o liceu, tinha o projeto de seguir a carreira do meu pai, que era advogado. Mas houve uma transformação radical na minha vida.”

O velório de Pedro Foyos será este domingo às 9H30 na Igreja de Loures e a celebração no mesmo local às 15H30. A cremação ocorre às 16H00 no Cemitério Municipal de Camarate.

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