E depois do apagão. Podia ser uma canção, a glosar o épico romântico, senha de revolução, E depois do Adeus. Sobretudo no “Quis saber de mim, quis saber de nós, mas o mar não me traz tua voz”: foram muitas horas sem se conseguir falar com quem não estava perto, muitas horas sem se saber se nos esperava uma nova espécie de confinamento, desta vez energético e digital, comunicacional e informativo.“Tivemos o Covid, uma coisa que nunca tinha acontecido e agora isto, que também nunca tinha acontecido, cinco anos depois. E ninguém sabe até agora o que causou — só sabemos que se aconteceu, pode voltar a acontecer. Que conclusão tiro? Que estamos totalmente dependentes da tecnologia e de eletricidade, ao máximo. Há uns anos toda a gente tinha lanternas, fogões a gás, rádios a pilhas. Agora quase ninguém tem. Confiamos nos telemóveis para obter informação e ficámos isolados. Foi um bocado angustiante. Se calhar devíamos voltar há uns tempos atrás, quando se andava na rua a falar, a dar informação às pessoas. A PSP, ou a Câmara Municipal, deveria ter andado a circular em carros a dar conhecimento sobre o que se estava a passar, o que devíamos e não devíamos fazer. Foi muito tempo sem sabermos nada.”Quem fala é Carlos Severo, 52 anos, ao balcão da receção do Hotel Casual Belle Époque, na Rua da Madalena (Baixa de Lisboa). Quando a luz faltou esta segunda-feira tinha o hotel à cunha, e sobravam apenas umas sandes para dar aos hóspedes: “Todos os nossos equipamentos são elétricos, não podíamos cozer um ovo”. Havia luz de emergência, mas, porque dependia de baterias, acabou ao fim de umas quatro ou cinco horas. “A coisa mais complicada para os nossos clientes foi não terem dinheiro: tivemos de emprestar-lhes, porque havia ainda alguns sítios abertos com comida mas eles não tinham como pagar.” Houve também, conta, quem saísse dali para apanhar um avião e tivesse de regressar à casa partida, e quem, com quarto reservado e pago, não tivesse chegado. E o casal de turistas que saiu de manhã cedo para visitar Sintra e não sabia como voltar: sem comboios, tiveram de apanhar um autocarro para Cascais, outro de Cascais para Belém e, daí, por sorte, um táxi para a Baixa.Sim, segunda-feira 28 de abril de 2025 foi o festim do analógico, do dinheiro vivo e também dos oportunistas. Como o taxista que, conta Julia, a jovem russa gerente de uma loja de gelados que prefere não dizer o apelido, apanhou no aeroporto ao fim de muito desesperar na fila. “Estava ainda no ar quando aconteceu a falta de eletricidade, depois o avião aterrou e não nos deixavam sair. Quando finalmente permitiram corri para os táxis — felizmente não tinha bagagem de porão — e percebi que tinham duplicado as tarifas.” Como assim, não usavam o taxímetro? “Não, ele pediu o valor logo mal entrei. Costumo pagar 15 euros, paguei 25. Sei que é ilegal mas nem discuti, só queria chegar à loja para ver o que se passava, estava muito aflita.”O que se passava era que todos os gelados foram para o lixo. Calcula terem sido uns quatrocentos euros perdidos em produtos, seiscentos em vendas não efetuadas. E a necessidade de fazer tudo de novo: “Temos 24 sabores, imagina a trabalheira? Tive de vir para aqui muito cedo esta terça-feira para termos gelados para vender.” Sobre o que se passou, tem o palpite de toda a gente: “Um ataque cibernético, não é? É o que nos vem à cabeça logo.” Com uma diferença em relação ao resto dos palpiteiros: “Não acredito que tenham sido russos.”“Até foi um dia que correu bem em termos comerciais”Do prejuízo Julia não crê ter retorno (“Não faço ideia de se o seguro paga, nem pensei nisso ainda”), tal como José Barbosa, dono do restaurante Velho Macedo, não crê que os mais de dois mil euros que estima ter perdido em refeições não vendidas na segunda e na terça algum dia lhe regressem à caixa registadora. “Felizmente as arcas congeladoras aguentaram a comida, por aí tudo bem, mas foi o dia todo ontem e vai ser, com toda a certeza, o almoço de hoje. Diziam que até às 11:30 da manhã ligavam a fase que nos falta — temos um equipamentos trifásico, a tiragem de fumos, e sem ele o fogão não funciona — depois era ao meio-dia e meia e está-se a ver que não vai ser.” Está a olhar para o relógio quando um casal brasileiro pára a perguntar se podem almoçar. Explica que não, que nem sabe se poderá abrir ao jantar. “Mas a E-Redes [a distribuidora de energia] diz que não se responsabiliza por prejuízos, sabe o que dizem? Que todas as pessoas têm de ter alternativas às faltas de energia. Já viu o disparate?” Talvez não seja bem assim — como depois se virá a perceber, através da intervenção da Entidade Reguladora do Setor Elétrico, a qual alertou para a existência de regras comunitárias quanto à responsabilidade dos distribuidores elétricos. Certo é que batiam já as duas e trinta da tarde quando finalmente a terceira fase “entrou” nos estabelecimentos que dela ainda careciam nesta zona do centro da capital. Atestam-no os funcionários da loja de ferragens G. Lemos, também na Rua da Madalena, que saúdam a pergunta do DN com “Voltou agora mesmo, mais cedo entrasse aqui e perguntasse”. Mesmo sem luz nenhuma, porém, a segunda-feira não correu mal a este negócio: só lanternas venderam-se 43, a quase totalidade do stock, mais quatro fogões portáteis. Que não puderam usar para aquecer o almoço: “Costumamos pôr no microondas, comemos tudo frio. Desde a pandemia passámos a trazer marmita, até porque aqui na zona já não há restaurantes para o nosso bolso. É tudo para turistas.”Houve mais estabelecimentos a contar, neste grandioso apagão, vendas substantivas de produtos insuspeitos de estarem na moda: que o diga a firma Martins, Oliveira e Figueiredo, na Rua da Mouraria, especializada em “artigos religiosos e esotéricos”, que tanto se fartou de despachar velas que, mesmo sem eletricidade, só fechou às sete da tarde de segunda-feira. “Temos uma boa montra e entrava muita luz, não fez falta a eletricidade”, comenta Teresa, uma das empregadas. “Nem sabíamos o que se passava, estávamos um bocado fora da realidade, foram os clientes que nos foram dando notícias: que era um apagão, que atingia Portugal e Espanha. Achámos que era sabotagem, mas não nos afetou grandemente. Até foi um dia que correu bem em termos comerciais.”Um pouco mais à frente, numa pequena loja de telefones e quejandos na Praça Martim Moniz, foram-se todos os rádios a pilhas — que eram só quatro, diga-se. O dono, desconfiado (“Porquê tanta pergunta? Quem é você? Tem cartão de jornalista?”), não quer dizer o nome nem que se identifique o estabelecimento. Também desconfiada, a empregada de outra loja de produtos electrónicos e quinquilharias pede igualmente comprovativo da profissão antes de, convencida, mostrar os rádios a pilhas que sobraram da razia de segunda-feira: são grandes, arrevesados, em estilo vintage farsola, mais caros que os outros, que se vendiam a seis euros. “Esses foram todos, e hoje continua a aparecer gente a pedir.”Aqui o dia da pequena catástrofe durou até ás cinco da tarde, ao som de, precisamente, um rádio a pilhas sintonizado na Renascença. “Estivemos muito bem informados”, garante outro dos funcionários (ou será o dono?), preferindo igualmente não ser identificado. Acede porém a contabilizar: “Foram uns 10 ou 12 rádios que vendemos. E também velas.” “Estamos a chegar ao fim. É o princípio do fim”Ainda na Rua do Benformoso mas noutro estabelecimento, Alice, 68 anos, tem na mão uma caixa com um rádio que carrega com energia solar. O dono da loja explica: “Este é mais caro mas quem saiba pensar gasta mais um bocado para ter algo com autonomia. E tem uma lanterna também.” Alice, moradora em Alfama, está interessada, gosta de produtos a energia solar: passou a noite de segunda com a casa iluminada com “umas lâmpadas que carregam ao sol, parecia que era a única que tinha luz”. Comprou-as, explica, “num direto”. Tem de traduzir: “Na televisão, naqueles anúncios”. Como não tinha rádio, ficou, admite, “um bocado desorientada e nervosa” por não ter informação e não conseguir falar com os filhos. “Só tive luz às 11 da noite, havia quem tivesse antes de mim na minha rua. E só nessa altura consegui falar com eles. Tenho um bocado de receio do que se está a acontecer, não é para brincar.” E pensa que se passa o quê? “Estamos a chegar ao fim. É o princípio do fim.” Como assim o fim? Respira fundo, olhos sérios cravados na interlocutora: “Alguma guerra”.Nos armazéns Pollux, na Rua dos Fanqueiros, dos quais saíram, na segunda-feira, fogões de campanha e pitromax (lâmpadas a gás) em quantidade, mais dezenas e dezenas de lanternas — “Os hotéis vieram cá comprar para dar aos hóspedes” —, a funcionária que fala com o jornal comunga com Alice de maus pressentimentos.Referindo o “tal kit de emergência de que falam, para a sobrevivência nas primeiras 72 horas de um desastre”, admite: “Eu também não estava preparada, não tinha nada destas coisas, e dou-me conta de que fazem falta.” Moradora no Barreiro, não teve problemas no regresso a casa — “Apanhei o barco, estava a funcionar bem” —, mas quando se preparava para fazer o jantar percebeu que não havia água. “Só apareceu lá para as três da manhã. Como é que isto acontece? Nós com as barragens cheias, e não temos energia, não temos nada? Não me digam que foi não sei o quê em França. Não… Isto foi um avisozinho.” Mas um aviso por acaso ou de propósito? “Ai, de propósito.” De quem? “Isso não sei dizer.” .Apagão. MAC teve ventiladores em risco, consultas e cirurgias adiadas e receitas voltaram ao papel.Com mais centrais de arranque o apagão teria durado três horas e não 11