Nome de crime: homossexualidade. O longo (des)caminho da descriminalização
"Aqueles que, por forma habitual, se dediquem a práticas sexuais com qualquer indivíduo, a troco de remuneração ou de outro provento económico, ou independentemente de intenção lucrativa, se as práticas forem de homossexualidade, são equiparados aos vadios, para efeitos de aplicação de medidas de segurança."
Passam quatro anos do 25 de Abril, a Constituição e o seu princípio da igualdade e de não discriminação já estão em vigor quando esta proposta, com a assinatura de José Dias dos Santos Pais, ministro da Justiça, é publicada no Diário da República a 31 de maio de 1978.
Governa a coligação PS/CDS, é primeiro-ministro Mário Soares. O executivo, que tomou posse em janeiro desse ano e cai a 29 de agosto, visa, de acordo com a exposição de motivos, "atenuar o fenómeno da prostituição e atividades com ela relacionadas, tais como o aliciamento de menores, o escândalo público, a homossexualidade (...)".
Aceitando que "a pessoa prostituída é mais vítima de uma situação para que foi arrastada por força de fatores exógenos do que culpada do seu estado de degradação", e dizendo querer acentuar antes a repressão nas "formas organizativas de prostituição", o diploma aprestava-se no entanto a punir comportamentos que considerava terem sido esquecidos pela lei vigente, "na perspetiva estreita de fazer coincidir na mulher o exclusivo da virtualidade de se prostituir". Tratava-se das "práticas homossexuais, de igual modo passíveis de censura."
Assim, propunha-se "ampliar o conceito de prostituição", dispensando "a intenção lucrativa para as práticas de homossexualidade". Isto, porque, argumentava-se, "é sabido que as mais das vezes é a pessoa prostituída quem, aí, remunera o seu parceiro" - uma frase cujo sentido é difícil de decifrar para quem tenha da prostituição a ideia de comércio sexual, e que parece fazer antes equivaler o prostituir-se a um posicionamento passivo no ato sexual que corresponderá, no espírito do texto, à noção de aviltamento e degradação.
Esta proposta de lei (197/I) recuperava assim o espírito de legislação predemocrática sobre homossexualidade. Mais exatamente a lei da Primeira República de 10 de julho de 1912 que punia quem se entregasse "à prática de vícios contra a natureza" e as disposições integradas pelo Estado Novo em 1954 no Código Penal de 1886, que impunham medidas de segurança - internamento em manicómio criminal, caução de boa conduta, liberdade vigiada ou interdição do exercício de profissão - àqueles que se entregassem à citada "prática habitual de vícios contra a natureza". Os vícios em causa eram qualificados como "práticas que agredissem o princípio básico da moral sexual" e "o primado da sexualidade genital e da reprodução".
Criticada duramente pelo PCP e PSD - em cuja bancada era então deputado o penalista Manuel Costa Andrade, o qual se manifestou veementemente contra um direito penal "guarda-noturno de uma concreta moral", defendendo que "toda atividade praticada livremente entre adultos e em privado não deve ser objeto de repressão penal" - a proposta seria rejeitada; apesar de terem maioria, PS e CDS não garantiram a aprovação. Não se assistira porém nessa sessão parlamentar de junho de 1978 - longe disso - ao fim da criminalização da homossexualidade em Portugal.
Bem podia Costa Andrade (que viria a ser presidente do Tribunal Constitucional em 2016/21) invocar, nessas suas intervenções de há 44 anos, o facto de estar em preparação um novo Código Penal que apontaria, "e bem, no sentido moderno da descriminalização destas matérias (...) sendo certo que em toda a parte se reconheceu o fracasso brutal da punição dos chamados crimes sem vítima, tais como o aborto, a prostituição e a homossexualidade (...), em que as pessoas se encontram entre si não na posição de agredido e agressor, mas numa posição de pessoas que transacionam livremente entre si (...)."
A verdade é que o anteprojeto de Código Penal de 1966, que, não chegando a ser aprovado na ditadura, seria a base da primeira codificação de Direito penal da democracia, e estava já em 1978 a ser alvo de revisão por comissão nomeada pelo I Governo Constitucional, previa, no número 2 do artigo 253º, cuja epígrafe era apenas "homossexualidade" - o nome do crime, portanto -, pena até dois anos de prisão para "quem habitualmente" cometesse "atentado ao pudor com pessoa do mesmo sexo" (atentado ao pudor era, na legislação penal, toda e qualquer prática sexual que não a cópula peniano-vaginal).
Disposição que, ao contrário das expectativas de Costa Andrade, se encontraria, com praticamente o mesmo texto, no projeto de revisão do Código Penal aprovado em julho de 1979 pelo IV governo constitucional. Com a diferença de que nesse projeto o crime estava tipificado no artigo 212º, com um título distinto - "Homossexualidade com menores" (em contradição com o número 2, que criminalizava a "homossexualidade habitual" entre adultos) - e pena máxima duplicada para quatro anos.
É ministro da Justiça do Governo Mota Pinto (o segundo de três governos da iniciativa do então presidente Eanes), que aprova tal versão, justamente o autor do anteprojeto de 1966, o jurista e académico coimbrão Eduardo Correia.
Por paradoxo, a mesma pessoa que, nos trabalhos da comissão de revisão da parte especial do CP (a referente à tipificação dos crimes e determinação das penas) que decorreram ainda em ditadura, entre março e junho de 1966, frisava "a necessidade de aquele ser especialmente parcimonioso nas suas intervenções na vida íntima das pessoas", considerando que esta só devia "cair nas malhas da lei" quando as suas manifestações adquirissem "uma significante relevância social".
Assim, prosseguia o então presidente da comissão, "o ato isolado de homossexualidade" (ao contrário da "prática habitual") não seria punível, exceto nos termos do número 1 do artigo 253º: "Quem, sendo maior de 18 anos, desencaminhar menor de 16 anos do mesmo sexo para a prática de ato contrário ao pudor, consigo ou com outrem do mesmo sexo, será punido com prisão até dois anos".
Da comissão revisora, que aprovou por unanimidade o artigo 253º, faziam parte, além do autor do projeto, o juiz conselheiro Fernando Bernardes de Miranda (do Supremo), o procurador António de Almeida Simões, o académico Jorge Figueiredo Dias, então assistente da faculdade de Direito de Coimbra, Fernando Lopes, representante dos advogados, e Boaventura Sousa Santos, como secretário de Eduardo Correia (três anos após terminar o curso de Direito e, explicou ao DN, sobretudo porque "sabia alemão"; solicitado para relembrar essa sua experiência, não acedeu ao pedido do jornal).
A crer nas atas, nenhum dos presentes apresentou qualquer objeção à tipificação do crime naqueles termos. O debate ocorrido em 1978 no parlamento vincara contudo que existia já quem no meio jurídico-penal se opusesse. E certo é que no projeto apresentado em 1982 pelo Governo Balsemão, e aprovado, constava o crime de "Homossexualidade com menores", mas sem o número 2, ou seja, sem a criminalização da "prática habitual" entre adultos.
Previsto no artigo 207º, rezava assim: "Quem, sendo maior, desencaminhar menor de 16 anos do mesmo sexo para a prática de ato contrário ao pudor, consigo ou com outrem do mesmo sexo, será punido com prisão até 3 anos." Esta disposição contrastava com o crime de "estupro" (204º), que punia com pena até dois anos a cópula "com maior de 14 e menor de 16 abusando da sua inexperiência ou mediante promessa séria de casamento".
Traduzindo: no caso de cópula (que, relembre-se, neste CP admitia apenas a formulação peniano-vaginal) com alguém de 15 anos, e de sexo diferente do agente, só se considerava haver crime se se provasse haver abuso - e portanto inexistir consentimento "verdadeiro". Já no caso do artigo 207º, para haver crime não era preciso provar-se abuso nem, atentando à redação, tinha sequer de existir "atentado ao pudor": bastava o "descaminho".
Fixava-se assim uma idade de consentimento para as relações sexuais entre pessoas de sexo diferente - 14 anos - mais baixa que para entre pessoas do mesmo sexo (16).
O contraste não ficava por aí. Não estando previsto o abuso sexual de menores no CP de 1982 (só surge no de 1995), a violação, que era punida com pena de dois a oito anos e só admitia vítima mulher, englobava a "cópula ou ato análogo" com menores (meninas) de 12 anos.
Sendo a vítima masculina, a lei não admitia que fosse violada; só alvo de "atentado ao pudor com violência" (com pena até três anos). Caso, feminina ou masculina, tivesse menos de 14 anos, prescindia-se da violência para impor a mesma pena; esta descia para até um ano se a vítima tivesse entre 14 e 16 anos e o atentado ao pudor não fosse praticado com violência.
Ou seja: o artigo 207º, que não pressupunha violência nem sequer abuso de inexperiência e talvez nem implicasse a prática do tal "atentado ao pudor", tinha a mesma moldura penal que o atentado ao pudor com violência - a violação anal por exemplo - sobre vítimas maiores de 14. E uma moldura penal muito mais alta que a do atentado ao pudor sem violência com vítimas dos 14 aos 16. Não estava pois em causa o ato em si, mas a natureza do agente - a sua "homossexualidade".
Isso mesmo conclui a análise que o juiz José Carmona da Mota faz no artigo Dos Crimes Sexuais, em 1983. "O ato homossexual, desde que contrário ao pudor, não necessita da qualificação (...) de atentado ao pudor (...). A razão da diferença acentuada das sanções correspondentes ao atentado ao pudor sem violência contra menor de 16 anos e o descaminho homossexual de menor de 16 anos reside", escreve este magistrado, que esteve no Supremo Tribunal de 2000 a 2013, "por um lado, no elemento típico adicional deste último (o descaminho) e, sobretudo, no facto de o primeiro ser livre e em regra heterossexual (e, por isso, destituído de "dignidade criminal" na opinião de Figueiredo Dias) e de o outro ser ou não livre e, sempre, homossexual (e, por isso, culturalmente contra naturam, isto é, perverso ou pervertido e, eventualmente, perversor." Mais à frente, o magistrado fala mesmo em "crime de desvio homossexual de menores".
Ainda assim, Costa Andrade, como deputado do PSD, faria o louvor deste projeto, proclamando "a índole saudavelmente inovadora da secção dedicada aos crimes sexuais", onde via apenas "a tutela jurídico-penal da liberdade e autenticidade da expressão humana em matéria sexual, e não de quaisquer cartilhas moralistas".
Afiançou até o penalista (em resposta a um parlamentar do MDP/CDE, António Taborda, que sinalizara "o abrandamento da punição da homossexualidade"): "O projeto não estabelece um abrandamento em matéria de homossexualidade, pelo contrário, elimina completamente a sua punição. (...) Apenas se incrimina, e bem segundo o nosso modo de ver, a homossexualidade praticada entre adultos e menores, e apenas em relação aos primeiros, o que é coisa completamente diferente."
Seria "completamente diferente"? Apesar de neste debate parlamentar, ocorrido a 19 de julho de 1982, não se fazer disso menção, nove meses antes o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tinha considerado a criminalização de "atos homossexuais" - na verdade, de atos sexuais - consensuais entre adultos do mesmo sexo uma interferência injustificada no direito ao respeito pela vida privada consagrado no artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, aprovada pelo Conselho da Europa, do qual Portugal fazia parte desde 1976.
Esta decisão do TEDH de outubro de 1981 é a primeira de um órgão internacional a estatuir que as leis criminalizadoras da orientação sexual violam os direitos humanos e deveu-se à queixa apresentada em 1976 por um súbdito britânico residente na Irlanda do Norte, Jeffrey Dudgeon, contra a proibição total de "atos homossexuais" entre homens que vigorava naquele território (contrastando com a descriminalização em vigor desde 1967 em Inglaterra e Gales).
16 anos depois também a distinção na idade de consentimento seria considerada uma violação da Convenção pela Comissão Europeia dos Direitos Humanos, em resposta à queixa apresentada em 1994 pelo britânico Euan Sutherland, de 17 anos. Sutherland queixava-se de que a idade do consentimento no seu país para relações entre pessoas do mesmo sexo estava fixada nos 18 anos, enquanto para pessoas de sexo diferente era 16. Em 1997, a Comissão deliberou que tal era discriminatório e não existiam motivos válidos para a discriminação.
Esta decisão, que seria reiterada pelo TEDH em 2001 e 2003, não teria porém efeito em Portugal.
O crime que no CP de 1995 passou a "Atos homossexuais com menores" (artigo 175º), deixando cair o "desencaminhar" e o "atentado ao pudor", baixando a pena para até dois anos de prisão e adotando uma nova redação - "Quem, sendo maior, praticar atos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que estes sejam por este praticados com outrem..." - não desapareceu na revisão de 1998. Ou sequer, como chegou a ser proposto, foi alterado para impor o abuso da inexperiência como condição de incriminação (proposta que viria a cair por responsabilidade do PS, sem que fosse apresentado motivo para tal). Manteve a pena e a definição, mudando apenas o nome para "Atos homossexuais com adolescentes".
E, sendo o crime de estupro substituído, no 174º, pelo de "Atos sexuais com adolescentes" ("Quem, sendo maior, tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor entre os 14 e 16 anos, abusando da sua inexperiência..."), fez-se ainda mais cristalina a discriminação.
Espírito do tempo, dir-se-á. Nem por isso. Em 1978, no ano anterior àquele em que governo Mota Pinto aprovou a criminalização da sexualidade no projeto de Código Penal, Espanha, que dava também os primeiros passos na democracia, revogava no parlamento, quase por unanimidade, a lei que criminalizava os atos sexuais entre adultos do mesmo sexo, equalizando na mesma altura a idade do consentimento..
Aliás na década de 1970, de acordo com a página do Human Dignity Trust (organização internacional que combate a criminalização da homossexualidade), também a Áustria e a Finlândia (em 1971), a Noruega (1972) e Malta (1973), entre outros países não europeus como por exemplo a Costa Rica, fizeram o mesmo. Antes, ainda segundo a mesma fonte, várias nações europeias, e não só, tinham descriminalizado - por exemplo a Dinamarca em 1933, Suécia em 1942, Grécia em 1951.
Em 1957, no Reino Unido, a Comissão Wolfenden - nomeada, para examinar a questão, por um governo do partido conservador na sequência da detenção de vários homens famosos (incluindo um lorde e o ator John Gielgud) pelo crime de atos homossexuais - recomendava a descriminalização: "O comportamento homossexual consentido entre adultos devia deixar de ser crime".
A comissão, que incluía dois clérigos e dois médicos, um dos quais psiquiatra, declarava ainda que "a homossexualidade não pode legitimamente ser vista como uma doença." Uma década depois, entrava em vigor, em Inglaterra e Gales, a lei de crimes sexuais que descriminalizava os atos homossexuais, referindo apenas os cometidos entre homens (a homossexualidade das mulheres era pelos vistos tabu), desde que consentidos e que ambos os envolvidos fossem maiores de 21 - em contraste, a idade do consentimento para atos sexuais entre pessoas de sexo diferente estava fixada nos 16.
Em 1969, era a vez do Canadá, cujo primeiro-ministro, Pierre Elliott Trudeau, tinha dois anos antes, enquanto na pasta da Justiça, proposto retirar a homossexualidade entre adultos das leis penais. "O que se faz em privado entre dois adultos, seja com um homem e uma mulher, ou não, isso diz-lhes respeito a eles, não à polícia", disse ao defender a nova lei. "Não autorizamos a homossexualidade. Dizemos simplesmente que não vamos puni-la, não vamos enviar a polícia aos quartos de dormir para ver o que se passa entre adultos, consensualmente, em privado. Não é astrofísica; vamos retirar a ideia de pecado do Código Penal."
França é um caso especial: desde 1791 que o Código Penal revolucionário, seguindo a ideia de que os atos privados não deviam ser objeto de intervenção do Estado, omitira a sodomia (a tendência geral das leis penais era, como já referido, para reconhecer apenas a homossexualidade masculina); o Código Napoleónico, que chegou a vigorar em Portugal por via das invasões francesas, seguia os mesmos princípios.
É porém costume apontar 1982 como o ano no qual França descriminalizou a homossexualidade; foi esse o momento em que o país equalizou nos 15 anos a idade do consentimento para atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo e de sexo diferente. Até aí, a lei francesa previa a punição penal para adultos que se provasse terem práticas sexuais com menores de 21 do mesmo sexo.
Estavam os juristas e políticos portugueses assim tão alheados do que se passava na Europa? Certo é que nem nos debates parlamentares nem nas atas das revisões da lei penal se encontra eco do que se passava noutros países. Mesmo assim, na discussão sobre o novo CP de 1995, alguns membros da comissão revisora demonstram ter (alguma) consciência do que está em causa. Caso de Costa Andrade, que segundo as atas de 1990 diz: "A lógica levaria à eliminação deste artigo."
Mas o presidente da comissão, Jorge Figueiredo Dias, embora admitindo que "a dúvida relevante" estava "na admissão do desvalor especial relativo à homossexualidade", pontifica: "Mesmo nos países em que se reconhece com latitude o direito à diferença, a verdade é que existe algo estatisticamente anormal."
Outro membro da comissão, o procurador-geral-adjunto João Ferreira Ramos, que nas atas não apresenta objeção à manutenção do crime, viria, num texto publicado em 1994, a admitir "uma certa incongruência" na diferenciação nas idades de consentimento.
Malgrado a "incongruência", ou seja a discriminação infundamentada, ter sido denunciada, em textos jurídicos, por vários penalistas de renome - Teresa Beleza, Maria João Antunes (que virá, como juíza no Tribunal Constitucional, a votar pela inconstitucionalidade do artigo 175º), Mouraz Lopes e o próprio Costa Andrade -, só em 2004 é preparada, por Celeste Cardona, ministra da Justiça do Governo Santana Lopes, a eliminação da discriminação do artigo 175º. O executivo cai antes de a lei passar.
Os tribunais continuarão pois a aplicar o artigo 175º, interpretando-o como aquilo que era: uma criminalização da homossexualidade. Ainda em 2003, um acórdão do Supremo afirmava: "Os atos homossexuais sempre foram considerados mais graves do que os heterossexuais, pelos efeitos que causam ao nível da formação da personalidade, da auto-estima, relacionamento social e sexual futuro, integração social, aprendizagem e capacidade de concentração do adolescente; em ambos os casos [artigo 174º e 175º] se trata de práticas não normais à face da lei, porém mais normais os atos heterossexuais quando confrontados com os atos homossexuais. (...) As experiências homossexuais de adultos com menores, independentemente da experiência sexual da vítima, são substancialmente mais traumatizantes, por representarem um uso anormal do sexo, condutas altamente desviantes, por serem contrárias à ordem natural das coisas. (...) O legislador, ao proceder assim, não estabelece diferenciações sem fundamento material bastante, de forma irrazoável, movido por injustificada e arbitrária razão, antes trata de forma desigual à luz de um padrão objetivo o que o deve ser."
Dois anos depois, o Tribunal Constitucional (TC) dizia o exato contrário: "A incriminação não deixa de revelar resquícios de uma opção político-criminal que se não desprende da tutela de sentimentos gerais de moralidade sexual. (...) Não se vê, de facto, razão para se entender que o menor entre os 14 e os 16 anos de idade pode saber o que quer, por que quer e com quem quer relacionar-se, quando consente em práticas heterossexuais, mas nunca quando consente em práticas homossexuais. (...) Não parece racionalmente sustentável que a experiência de relacionamento homossexual, sem abuso da inexperiência sexual do menor, afete mais gravemente tal desenvolvimento (e orientação) do que a experiência heterossexual nas mesmas circunstâncias. (...) Apelar ao efeito "traumático" ou "mais traumático" da prática de atos homossexuais não tem, aliás, melhor préstimo, não deixando até de revelar, mais claramente, um juízo de desvalor, pejorativo, da prática sexual (homossexual) (...)."
O pronunciamento de inconstitucionalidade pelo TC levaria finalmente à eliminação do artigo 175º na reforma penal de 2007 e, aí sim, ao fim da criminalização da homossexualidade em Portugal.
19 anos depois de Espanha, 25 anos depois da França, que em 2022 comemora os 40 anos da descriminalização da homossexualidade. Quando em 1982 os franceses revogavam a discriminação criminalizadora na idade do consentimento, Portugal consagrava-a. Para alinharmos a nossa celebração com a dos franceses, só poderemos fazê-la em 2047.