MP arquiva denúncia de violação de “incapaz” em hospital psiquiátrico
"Se se conseguisse ultrapassar esta dúvida sobre o que se passou e se concluísse que a ofendida prestou o seu consentimento e que este não é esclarecido, não se extrai dos autos qualquer elemento de facto apto a suportar a conclusão de que o arguido sabia que ela era incapaz de prestar esse consentimento, e, como tal, que o mesmo não era válido, ou que o arguido tivesse tirado partido dessa incapacidade ou da incapacidade da ofendida em se opor à sua proposta de teor sexual.”
Estas asserções fazem parte do despacho de 27 de julho de 2023 no qual o Ministério Público (MP) arquiva inquérito, datado de 2019, relativo a uma alegada violação da qual teria sido vítima uma mulher de 30 anos com deficiência intelectual – chamemos-lhe Maria – internada no hospital psiquiátrico Magalhães Lemos (HML). O perpetrador seria outro internado, um homem de 37 anos, sem deficiência intelectual diagnosticada, ao qual daremos o nome de José.
Malgrado dar como “suficientemente indiciada na investigação” a existência de relações sexuais – vaginais e anais – entre José e Maria numa casa de banho da instituição, e de Maria ter, nos momentos seguintes ao ocorrido e em várias ocasiões depois, acusado José de violação, o MP considerou, como resulta do excerto citado, não terem sido “recolhidos elementos indiciários suficientes para concluir que a alegada vítima não consentiu nos atos sexuais praticados e que o arguido atuou contra a sua vontade”.
Aponta como um dos motivos do arquivamento o facto de Maria, devido à sua “situação clínica” e “fruto das suas fragilidades”, não ter conseguido “fornecer, quer em sede de inquirição, quer de declarações para memória futura, um relato concretizado e circunstanciado do que se terá passado, ao contrário do arguido que apresentou uma outra e sustentada versão dos factos.”
E justifica: “Ao invés da ofendida, o arguido disse que os atos sexuais foram praticados com o acordo da ofendida, que inclusivamente esta a dada altura queixou-se que tinha dores e que nesse momento parou e mudaram para sexo vaginal. Que mais uma vez a ofendida queixou-se, o arguido parou, mas depois, por acordo, prosseguiram com o ato. De notar que esta versão coincide com o relato da ofendida quando esta refere que houve sexo anal e vaginal e que teve dores. (…) Face à fragilidade dos indícios de que ora se dispõe, não é possível concluir pela suficiência de indícios da prática do crime.”
Esta decisão de arquivamento é tanto mais interessante quando o MP reconhece a incapacidade de autodeterminação sexual de Maria – ou seja, que esta não é capaz de “consentir” ou “não consentir” numa relação sexual. Baseia essa conclusão no “Relatório Final de Perícia Psicológica Forense” constante no processo: “[Maria] padece de alterações psicopatológicas com organização borderline da personalidade, assim como perturbação esquizoafetiva do tipo bipolar, com uma postura néscia e pueril com um comprometimento cognitivo, compatível com a degradação do seu estado mental, não possuindo capacidade de autodeterminação sexual, apresentando uma desadequação na interação sexual, intensiva e desinibida no contacto, o que a pode expor a situações abusivas, uma vez que apresenta muitas fragilidades na leitura e na análise das interações, não se conseguindo proteger de eventuais situações de risco.”
É incapaz de consentir mas pode ter consentido
De resto, nesse mesmo despacho de arquivamento o MP funda nessa incapacidade de autodeterminação sexual de Maria o afastamento da possibilidade de se estar perante um crime de violação (artigo 164º do Código Penal). Fá-lo argumentando que, sendo a violação definida como um crime contra a “a liberdade de determinação sexual (…) por via da força ou do constrangimento”, não poderia verificar-se tendo como vítima alguém incapaz dessa “determinação sexual”.
Assim, passa a examinar a hipótese de ter existido um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165º do CP) – crime que, sublinha-se no despacho, visa proteger o bem jurídico liberdade sexual. Mas, como já referido, o MP não considera que se possa concluir que, por ser incapaz de formar a sua vontade, Maria tenha sido “vítima de crime sexual por aproveitamento dessa sua incapacidade”, ou seja, que “o agente com a sua atuação” tenha “tirado partido da incapacidade da vítima”. E decide que não existem indícios suficientes para acusar José, ou seja, para o levar a julgamento.
Um dos argumentos aduzidos pelo MP nesse sentido é colhido no penalista Jorge Figueiredo Dias, nas respetivas anotações de 1999 ao Código Penal: “O tipo legal [de crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência] não pretende evitar que as pessoas que sofrem de uma anomalia mental sejam privadas de toda e qualquer atividade sexual. (…) Sempre que [a pessoa] seja capaz de formar e exprimir a sua vontade no sentido de anuir ao ato, inclusivamente de tomar a iniciativa dele, não há aproveitamento para efeito do tipo [ou seja, não existe crime].”
Ouvida pelo DN, uma psiquiatra que prefere não ser identificada franze o sobrolho ante a argumentação do MP: “Se uma pessoa não tem capacidade de autodeterminação sexual, não pode anuir a um ato sexual, dar consentimento. Não está capaz de dar consentimento. É isso que quer dizer incapacidade de autodeterminação.”
Recorde-se que é por não ser reconhecida a crianças até aos 13 anos capacidade de autodeterminação sexual que qualquer interação sexual que se tenha com elas é crime (artigo 171º do CP, “Abuso sexual de crianças”): porque não estão em condições de “consentir”, “anuir ao ato” ou “tomar a iniciativa dele”.
Também a investigadora da Universidade do Minho (UM) Maria João Lourenço, autora do artigo Reflexões em torno das dificuldades probatórias no crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência praticado contra indivíduos com deficiência intelectual (2022), exprime perplexidade face ao resumo que lhe é feito pelo jornal de uma situação em que simultaneamente se dá como assente a incapacidade de autodeterminação sexual e se coloca a possibilidade de ter existido “prestação de consentimento”.
A existência ou não de capacidade de autodeterminação sexual, como esclarece esta assistente convidada da Escola de Direito da UM no artigo citado, é essencial para ajuizar sobre se teve ou não lugar o crime em causa.
Trata-se, sublinha a investigadora, de “um dos pontos probatórios mais complexos, e por isso exige um diálogo próximo entre o tribunal e os peritos forenses. Tal decorre precisamente do facto de o determinante não ser que a vítima padeça de uma doença, deficiência ou incapacidade em termos abstratos, mas que essa doença, deficiência ou incapacidade a impedisse de, no caso concreto, formar e/ou exprimir a sua vontade relativamente aos atos praticados pelo agente.” E se “a resposta a este requisito do tipo objetivo deve ser dada pelo tribunal” – ou seja, é ao tribunal que compete decidir se existiu crime –, “apenas uma análise interdisciplinar do quadro cognitivo da vítima o poderá auxiliar.”
Assim, declara Maria João Lourenço ao DN, “se existe uma perícia que diz que uma pessoa é incapaz de se autodeterminar sexualmente, nesse caso essa pessoa seria incapaz de decidir ou resistir ao ato sexual. Se é afastada a capacidade de autodeterminação, parece um caso claro. Os tribunais devem seguir o resultado das prova periciais ou então explicar por motivo divergem desse juízo.”
Além disso, prossegue, “há uma necessidade especial de proteção destas pessoas à qual a magistratura não pode ser indiferente. Se houver discriminação tem de ser positiva”. Até porque, como sublinha no artigo referido,“estima-se que a prevalência do crime de abuso sexual sobre portadores de deficiência intelectual seja de quatro a dez vezes superior à da população em geral.”
De facto, lê-se no mesmo artigo, entre os “dispersos e escassos trabalhos de investigação desenvolvidos sobre o abuso sexual de pessoas com transtornos do desenvolvimento intelectual”há conclusões inquietantes: “49% das pessoas com deficiência intelectual vive 10 ou mais episódios de abuso sexual durante a sua vida, mais de 90% das pessoas com deficiência de desenvolvimento sofre de abuso físico ou sexual pelo menos uma vez na sua vida e 70% das mulheres internadas em estabelecimentos de psiquiatria sofre de abuso físico ou sexual” (voltaremos a este assunto).
Capaz de autodeterminação sexual mas não de testemunhar
A aludida decisão do MP foi alvo de vários recursos hierárquicos por parte da família de Maria, a qual pede a reabertura do inquérito e que a alegada vítima seja, porque os seus testemunhos anteriores foram considerados não credíveis ou “inaudíveis”, de novo ouvida – o que tem sido sempre recusado.
Na última recusa, datada de 4 de março, o MP, curiosamente, altera a argumentação: Maria tem afinal capacidade de autodeterminação sexual. Apesar das suas muitas “dificuldades cognitivas e emocionais”, escreve a procuradora e dirigente de secção no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto que assina a decisão, a alegada vítima “é capaz de se autodeterminar sexualmente, sendo capaz de consentir, ou negar, a prática sexual de terceiro”.
Estas afirmações são extraídas de um “relatório psiquiátrico” constante no processo, (e que, datado de junho de 2020, é anterior ao mencionado “Relatório Final de Perícia Psicológica Forense”, de novembro desse ano). Neste relatório psiquiátrico, que atribui a Maria um “atraso mental ligeiro a mediano”, a certificação da capacidade de autodeterminação sexual é temperada pela “puerilidade”, que “a coloca num estado de diminuição da capacidade de opor resistência a atos de natureza sexual ou resistir a solicitações/sugestões de natureza sexual da parte de terceiros.”
Diagnóstico que parece encontrar-se com o que se lê no “Relatório Final de Perícia Psicológica Forense”: “A examinada não possui capacidade para interpretar situações de risco, nem de se auto-regular, bem como antecipar eventuais situações de vitimação, encontrando-se exposta a essas situações, uma vez que o seu juízo crítico possui muitas fragilidades, quer na interpretação de si quer dos outros, com muitas dificuldades na gestão de conflitos (…), o que poderá ser compatível com a situação abusiva descrita.”
A existência de dois diagnósticos distintos no processo é sem dúvida relevante (e reitera a já mencionada dificuldade de avaliação da capacidade de autodeterminação sexual). Porém o despacho que a 4 de março recusa a reabertura do inquérito não menciona essa discrepância – limita-se a citar um dos diagnósticos, não mencionando sequer que o primeiro despacho de arquivamento dava o contrário como “suficientemente indiciado”.
Em comum com o primeiro despacho, a decisão de 4 de março menciona a falta de capacidade da alegada vítima para uma narração credível e baseia nisso a desnecessidade de voltar a ouvi-la, ou de ouvir as várias testemunhas cuja primeira audição, a pretexto de trazer novas provas (o inquérito nesta fase só poderia ser reaberto existindo “novas provas”), a família requer.
Conclui assim a citada decisão que “as diligências requeridas não são aptas a invalidar os fundamentos do despacho de arquivamento, porque as testemunhas indicadas não presenciaram os factos objeto do inquérito e, por outro lado, considerando a diminuição da capacidade para testemunhar da ofendida, conjugada com a demais prova produzida, tais depoimentos não seriam de molde a alterar a decisão proferida (…).”
“Eu não queria, porque ela tem um atraso, até que não aguentei.”
Vamos então aos factos (ou pelo menos às informações que o DN conseguiu obter, já que a consulta do processo, requerida ao DIAP do Porto, foi repetidamente negada, invocando-se como justificação a privacidade das pessoas envolvidas).
É dia de Natal, 25 de dezembro de 2019. O terceiro dia de Maria na ala de internamento de doentes agudos, denominada de “B3”, do HML. Está ali internada compulsivamente: não é a primeira vez que tal sucede a esta mulher a quem relatórios periciais atribuem, além das já citadas “psicopatologia grave” e “postura néscia e pueril”, também “juízo crítico com muitas fragilidades”, “muitas dificuldades na interpretação de si e dos outros”, com desenvolvimento e funcionamento cognitivo e emocional condicionados que a levam a necessitar de “supervisão contínua”. Há até, como referido, um relatório psiquiátrico que usa a expressão “atraso mental”.
Atraso é precisamente a palavra usada por José, também internado no HML, para, quando é ouvido pela primeira vez no inquérito, caracterizar Maria: “Não tem as faculdades todas, tem um atraso”.
Com 37 anos, diagnosticado como alcoólico e toxicodependente, naquele dia o homem aguarda, na ala B3, colocação numa comunidade terapêutica. Entre as 18 e as 19 horas, de acordo com o relato do próprio, ele e Maria metem-se numas casas de banho. Ali, diz José, Maria fez-lhe sexo oral e ele penetrou-a anal e vaginalmente.
Na narrativa dele, ejaculou “para as nádegas, para evitar uma gravidez”. A seguir, conta, limpou Maria com papel e viu sangue. Isso fê-lo pensar que ela “era virgem, porque também se notava que não tinha muita experiência.” Ainda assim, sustenta, “o que aconteceu, aconteceu com o consentimento dos dois”. Aliás, garante, só ocorreu porque ela o perseguiu e ele “não aguentou”: “Não ameacei, não bati, não obriguei nem agarrei com força ninguém (…). A rapariguinha apaixonou-se por mim e não descansou. Andei fugido dela três dias. Eu não queria, porque ela não tem as faculdades todas, tem um atraso, até que não aguentei.”
“Não sei o nome dele, mas magoou-me no pipi e no rabo”
Maria seria depois encontrada deitada no chão, no corredor junto às casas de banho. Apesar de existirem câmaras de vigilância no hospital (que, de acordo com o relatado ao DN, apenas não filmam nas casas de banho), a entrada dela e de José na divisão dos sanitários não terá sido notada pelos funcionários do HML, nem sequer o estar deitada no chão; de acordo com o que uma das enfermeiras de serviço diz à investigação, foi um paciente que a alertou para o facto.
A dita enfermeira, que informou encontrar-se na sala de enfermagem – onde estão os monitores ligados às câmaras de vigilância – quando foi avisada, dirigiu-se a Maria e perguntou-lhe o que estava ali a fazer. A resposta foi choro. Face à reação, leva-a para um gabinete “para se acalmar”. Malgrado o choro e a necessidade de isolar a paciente para que esta se acalmasse, a profissional, com 11 anos de prática naquele hospital, diz, quando ouvida quase oito meses depois, não ter detetado em Maria “qualquer alteração comportamental ou emocional”.
É nesse gabinete, prossegue o relato, que Maria lhe comunica ter sido violada. “Fui violada. Violada pelo Emanuel”. Quando a enfermeira lhe diz que “não há um Emanuel internado”, Maria responde: “Não sei o nome dele, mas magoou-me no pipi e no rabo”. Dirá também, ainda segundo a enfermeira, que foi para a casa de banho com José “porque quis, porque queria dar apenas uns beijinhos e amassos”, e que nunca gritou ou pediu ajuda. Tudo isto terá sido comunicado “entre choros”. De seguida, acompanhou a enfermeira para identificar o homem. Encontraram-no “na zona dos lavatórios”. A enfermeira falou com ele, que confirmou ter mantido relações sexuais com Maria e disse que ela o tinha seguido até à casa de banho.
Maria é levada para o Hospital de São João, para ser examinada no departamento de Ginecologia, sendo também sujeita a exame médico-legal. O relatório deste hospital confirma sinais compatíveis com relações sexuais vaginais e anais sem proteção e prescreve profilaxia pós-exposição para o HIV-sida e para infeções sexualmente transmissíveis, assim como nova testagem para HIV-sida e hepatite C daí a um mês. No que respeita ao exame médico-legal, Maria é citada como tendo dito que a tinham violado “no rabo e na vagina”, que “não foi consentido” e que “violação é uma coisa muito grave”.
Disse ainda que o homem – cujo nome reiterou desconhecer –, e que lhe havia perguntado junto à casa de banho “Queres fazer sexo?”, ao que ela teria respondido que sim, desde que ele lhe explicasse como, tinha “violado três pessoas”.
Também José asseverará depois, quando inquirido pelas autoridades, ter tido “relações com outras mulheres lá [no HML], até com homens porque sou bissexual (…).”
Questionada pelos técnicos forenses sobre se já tivera relações sexuais anteriormente, Maria respondeu que sim. Disse que fora “no HML”, “mas com outra pessoa, por trás e não doeu nada”, e que “pela frente foi a primeira vez [com José] que aconteceu”. Afirmou também que tinha desmaiado depois da relação sexual com José e que quando acordou estava lá “o pai que é o Patrick Schwarzenegger” (várias das respostas que dá têm características deste tipo, fazendo jus à descrição, constante num relatório do HML, de um “delicado binómio fantasia/realidade”).
“Houve outros casos de relações sexuais entre doentes”
De acordo com a informação recolhida pelo jornal, terá sido o Hospital de São João, e não o HML, a comunicar à PSP a suspeita de crime, e também a avisar a família do que se tinha passado.
O jornal inquiriu o HML sobre esse facto, sem sucesso. Aliás, da lista de perguntas enviadas por escrito à assessoria de imprensa do Centro Hospitalar Universitário de Santo António (CHUdSA)– do qual o HML faz parte desde fevereiro de 2023 – uma boa parte não obteve resposta.
Nomeadamente, não foi respondido quantos pacientes estavam internados naquela ala aquando do ocorrido e quantos funcionários de serviço com a incumbência de os vigiar; que características têm os internados da ala; que condições existem no Hospital para certificar a segurança dos internados; como explica o HML que tenha sido possível a existência de relações sexuais entre dois internados; se o HML está em condições de refutar a afirmação de José de que tivera relações sexuais com outros internados além de Maria; que conclusões foram retiradas pelo HML do ocorrido a 25 de dezembro de 2019, se alguma medida foi tomada para que não se repetisse, e se sim, qual ou quais.
O CHUdSA justificou a falta de respostas invocando a existência do inquérito judicial e respetivo segredo de justiça (o inquérito não estava em segredo de justiça) e a pendência de uma ação contra o HML no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – ação que, colocada pela família de Maria, visa responsabilizar o hospital pelo ocorrido e requer compensação pelos danos causados, não tendo ainda qualquer conclusão.
Informando que o HML “instruiu uma investigação de evento-sentinela [evento grave indesejável que ocorre numa instituição hospitalar], cujo relatório foi enviado à Provedoria de Justiça e ao Ministério Público”, e cujas “conclusões foram transmitidas à família da doente”, o CHUdSA reconheceu que a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde não fora alertada para a situação (esta já o assumira ao jornal, adiantando que iria “interpelar o órgão de gestão do estabelecimento de saúde solicitando informação”) e não deu ao DN qualquer esclarecimento sobre as conclusões da referida investigação, nem se houve quaisquer consequências disciplinares.
Sobre as condições na ala B3, limita-se a assegurar que “respeitavam à época as leges-artis [as boas práticas] para serviços de internamento de Psiquiatria” e que “a dimensão da equipa era a prevista e adequada ao turno em questão”.
Informando que as câmaras de vigilância existentes apenas transmitem, não gravam, o CHUSA admitiu ter conhecimento de que “o HML teve em tempos um outro caso de alegação de violação sexual, que foi investigado, tendo-se concluído que esta não existiu”. Não é esclarecido quando tal terá acontecido, se, como na situação em análise, existiram efetivamente relações sexuais, e quem investigou.
Já a Provedora de Justiça, à qual a família apresentou queixa, abriu, segundo foi respondido ao jornal pelo respetivo gabinete, “um procedimento e prosseguiu com a instrução da queixa a fim de conhecer as medidas internas adotadas na sequência do sucedido e aspetos, de índole genérica, relacionados com a organização, os procedimentos e as práticas seguidas no HLM, em ordem a prevenir futuras ocorrências. Em face das informações então recolhidas, entendeu-se não se justificarem diligências adicionais.” Que informações terão sido essas, o gabinete não quis esclarecer.
Porém, parte das respostas apresentadas pela entidade atualmente responsável pelo HML (CHUdSA)foram contraditadas ao DN por quem conhece o hospital e unidades psiquiátricas em geral.
“Até à pandemia de covid-19 [2020] havia um estado de sobrelotação permanente no HML, porque era o serviço que assegurava o internamento de todos os doentes psiquiátricos que vinham da urgência do Hospital de São João”, diz ao jornal clínico conhecedor do HML que fala sob condição de anonimato. Verificar-se-ia assim um “rácio de enfermeiros/paciente muito abaixo do que era suposto”, incluindo na ala B3: “Devia haver naquele dia duas enfermeiras para 26 ou 28 doentes agudos”. Uma segunda fonte, também familiarizada com o HML, admite que, em regra, haveria na B3 “duas enfermeiras e dois ou três assistentes operacionais para 22 a 24 pacientes”.
Não existindo um standard internacional para o rácio enfermeiro/pacientes em unidades psiquiátricas, refira-se que por exemplo no estado americano da Califórnia esse rácio foi legalmente determinado no início do século XXI em um enfermeiro para seis pacientes. Já no estado australiano de Queensland fixou-se em 2019 em um enfermeiro para quatro pacientes durante o dia, e um para sete à noite.
Assevera a primeira fonte citada: “Ocorreram no HML outros casos de relações sexuais entre doentes, apesar da existência de câmaras de vigilância e de ser suposto estar sempre um enfermeiro atento aos ecrãs. Pergunta-me como podem acontecer essas coisas? Só posso dizer que é por insuficiência de recursos. E claro, o hospital é responsável: não faz qualquer sentido que alguém internado possa ser alvo de uma situação deste tipo. A própria figura do internamento involuntário [ou “compulsivo”] serve para proteger a pessoa.”
“Uma situação como a descrita é indicação de péssima vigilância”
Um outro médico psiquiatra, não afeto ao HML, corrobora: “Claro que tal não deve acontecer num qualquer internamento hospitalar, e muito menos num internamento deste tipo, quando as pessoas estão ali precisamente por não estarem na posse de todas as suas capacidades. A existência de uma situação como a descrita evidencia um problema de vigilância e segurança. É indicação de uma péssima vigilância.”
Há porém quem, sendo também psiquiatra, e conhecendo de perto o HML, veja as coisas de outra forma. “Não há nenhum impedimento físico, apesar de haver câmaras em todos os locais menos nas casas de banho, de que pessoas de qualquer definição sexual se juntem. Não seria aceitável para ninguém impedir que as pessoas se juntem.”
Que se juntem é uma coisa, que tenham relações sexuais outra, não? “Sim, mas não conseguimos prever se atrás de uma árvore, de uma cadeira ou debaixo de uma mesa alguém faz sexo, não é? Há pessoas que se enamoram nos internamentos e depois continuam lá fora vida em conjunto… É muito mais difícil acontecer de forma não consentida. Porque é um espaço muito pequeno, teria, por exemplo, de se tapar a boca da outra pessoa, seria uma violência pouco compatível – falo do ponto de vista de quem conhece bem o espaço, não do facto em si que ocorreu.”
Alertado para a evidência de que a definição penal atual de violência sexual está muito para além dessa noção de exercício de força para debelar a resistência física da vítima (baseiando-se antes, por via da ratificação pelo país da chamada “Convenção de Istambul”, na não existência de “consentimento” para o contacto ou ato sexual), o clínico hesita: “Genericamente… Claro, imaginemos que a pessoa está debilitada…”
Estar debilitado não será uma situação comum em quem está internado numa instituição psiquiátrica? E a existência de relações sexuais entre pessoas internadas em hospitais psiquiátricos, é algo de comum ou de incomum? “Admito perfeitamente que possa ocorrer. Há algum ambiente de desinibição nos maníacos, em que o erotismo está muito desinibido… Depois há disponibilizações de interações mantidas por pessoas muito carentes – há um mundo com algum consentimento e enamoramento no hospital que presumo que tenha alguma frequência. Agora tentativas mais ou menos violentas, mais ou menos abusivas, pode haver, não posso garantir que não aconteçam… E não sou nada uma pessoa que desvalorize isso, todas as situações devem ser investigadas. Mas se alguma vez tive alguma ou algum doente – e tive alguns milhares de doentes na minha carreira – com um problema desse tipo, não, nunca me confrontei com isso, nunca fui convidado a testemunhar sobre nada desse tipo. Tive muito mais problemas entre colegas que com os doentes.”
Embora admita que alguns dos adultos internados neste tipo de hospital não têm sequer capacidade de autodeterminação sexual, o psiquiatra adverte: “Grande parte deles têm. Depende da fase da doença em que estão. Não têm de perder todas as suas capacidades de decidir certas dimensões da sua vida quando estão internadas em psiquiatria.”
Hospital poderia ser acusado de crime?
Certo é que a possibilidade de investigar as circunstâncias que permitiram, no HML, a existência das comprovadas relações sexuais entre Maria e José não parece ter ocorrido ao MP.
Um jurista ouvido pelo DN, e que prefere não ser identificado, crê que poderia estar em causa “o crime de ‘exposição ou abandono" (artigo 138º do CP, que pune quem “colocar em perigo a vida de outra pessoa, abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir”).
Teresa Quintela de Brito, professora de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, não concorda: “O crime de abandono é um crime de perigo concreto para a vida. Não seria esse o bem jurídico colocado em perigo pelo modo de organização e funcionamento daquela ala de internamento, mas sim a integridade física e sexual de pessoa portadora de anomalia psíquica em situação de doença aguda. Inclinar-me-ia antes para o crime de maus-tratos, previsto no art. 152º-A do Código Penal.”
Isto porque, explica a penalista, “o hospital, tendo ao seu cuidado e à sua guarda pessoa particularmente indefesa em razão de deficiência e doença psiquiátrica (em fase aguda), ter-lhe-ia infligido (por omissão de medidas de vigilância e controlo) maus-tratos físicos ou psíquicos, sob a forma de ofensas sexuais. Este crime pode ser realizado com dolo apenas eventual”.
Tanto mais que, como já referido, a literatura científica aponta uma alta prevalência para o crime de abuso sexual sobre portadores de deficiência intelectual – entre dois a oito e quatro a dez vezes superior à da população em geral – e o problema, certifica a mesma literatura, é (ou deveria ser) há muito conhecido nas instituições psiquiátricas. O artigo Sexual assault in the inpatient psychiatric setting/Violência Sexual no Internamento Psiquiátrico (General Hospital Psychiatry, 2023), que efetua uma revisão de toda a investigação sobre o assunto, garante que “a violência sexual é uma séria preocupação” nestas instituições. E cita estudos segundo os quais 40% dos pacientes psiquiátricos não internados foram vítimas de agressão sexual em alguma altura da vida adulta, com entre 5% a 45% a serem alvo de violência sexual durante um internamento.
Acresce, ainda de acordo com este artigo, que tal tipo de agressão em instituições psiquiátricas tenderá a ter altas cifras negras (ou seja, a ser muito pouco reportado), devido a uma série de fatores: “Os pacientes poderão hesitar em denunciar por estigma, culpa, desconfiança, fragilidade, receio de que não acreditem neles ou de que venham a sofrer retaliações, ou medo do perpetrador. E o pessoal pode não o fazer por temer implicações legais, por duvidar das alegações, por corporativismo e cultura de silêncio ou simplesmente não acreditar que algo assim possa ocorrer.”
Quando, adianta outro estudo – Addressing Sexual Violence in Psychiatric Facilities/Acerca de Violência Sexual em Instituições Psiquiátricas, de 2020 –, alegados abusos sexuais são reportados às autoridades, “infelizmente pode não se chegar à fase de acusação, porque as vítimas com doença mental são frequentemente classificadas como testemunhas não confiáveis, mesmo quando existem indícios convincentes do que afirmam. (…) O sistema judicial tem muita melhoria a fazer nesta matéria.”
“Vítimas esquecidas” de “uma realidade escondida, silenciada”
Maria João Lourenço não podia estar mais de acordo. “São vítimas esquecidas”, escreve no seu artigo já citado. “Não são só vítimas mais vulneráveis aos abusos, como são vítimas que têm mais dificuldades em revelá-los. (…) Vítimas que não raras vezes apresentam dificuldades de memória, de concentração, de distinção entre verdade e falsidade e de realidade e fantasia. Vítimas que, por tudo isto, são consideradas pouco credíveis. Este é um lugar comum que merece ser revisitado. Não é em virtude da deficiência intelectual que estas vítimas podem ser esquecidas ou sequer que lhes pode ser negado ou prejudicado um direito reconhecido aos demais. (…) Tudo conflui para que estes indivíduos continuem à margem do sistema judicial (…) Este é um ciclo que dificilmente se quebrará e só esmorecerá quando prestarmos mais atenção a estas vítimas.”
Ao DN, a investigadora assume ter ficado “muito perturbada” quando se começou a debruçar sobre a matéria. “Dei-me conta de que os magistrados têm falta de informação e de preparação para lidar com este tipo de situações. Raramente têm formação para recolher testemunho de crianças, de vítimas, de agressores. E não raro tornam-se muito insensíveis – quanto maior a falta de preparação, mais fechados se tornam.”
Por outro lado, continua, trata-se, pelo reduzido número de queixas e de casos que chegam a tribunal, de “uma realidade escondida, silenciada”: “Quando escrevi o artigo encontrei apenas meia dúzia de acórdãos. Até porque só há acesso às decisões das instâncias superiores [Tribunais da Relação e Supremo]. E sendo poucos não ganham relevo estatístico, não convocam a atenção.”
Sem a atenção que causa o alarme da comunidade e a consciencialização do sistema legal, sabe-se, certo tipo de crimes tendem a ser pouco valorizados. E pelas pessoas com deficiência intelectual não há muito quem fale – tratar-se-á, afinal, da mais excluída e discriminada das minorias.