A morte por eletrocussão de três cães, em dois dias e em dois concelhos distintos, está a levantar sérias questões de segurança pública. No caso mais recente, no Parque das Nações, em Lisboa, a descarga elétrica que matou um cão de porte médio poderia ter atingido uma criança — e os técnicos que estiveram no local confirmam que o chão apresentava 117 volts no momento da ocorrência. O DN teve acesso ao relatório do Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa, chamados pela PSP às 19h04 do dia 15 de novembro de 2025. No documento lê-se que, ao chegarem ao local, encontraram a vítima mortal, Mel, “um canídeo de porte médio com cerca de 7 anos”. Os bombeiros vedaram a área e solicitaram a presença do piquete da E-Redes “para verificar a segurança no local, visto que o poste mostrava alguns vestígios estranhos”. Um representante da Junta de Freguesia do Parque das Nações, entretanto chegado ao local, chamou também o piquete de iluminação pública da Câmara Municipal de Lisboa. “Após ambos os piquetes chegarem, solicitei a verificação do local, pois estava a sair algum vapor de dentro do poste. O pessoal da E-Redes fez a medição do local e detetou-se que a terra estava a mostrar valores de 117 volts, pelo que se concluiu que existia corrente elétrica no chão, possivelmente por um cabo em más condições no subsolo. A área ficou vedada”, pode ler-se no relatório. A tensão de contacto propagou-se ao animal e gerou uma corrente elétrica fatal. E não teria necessariamente de ser um cão a vítima. “Poderia ter sido uma criança e até um adulto”, alerta ao DN José Manuel Freitas, engenheiro eletrotécnico e especialista em Energia pela Ordem dos Engenheiros. O técnico sublinha que as crianças são ainda mais vulneráveis: “Depende da resistência do solo, das condições de tensão de contacto e até do calçado que se leva, mas estamos perante uma tensão capaz de gerar uma corrente elétrica que pode levar ao colapso cardíaco de animais e humanos.” O engenheiro reforça que a situação registada nunca deveria acontecer: “Não é normal haver tensão de contacto ( ou tensão de passo) junto de um equipamento elétrico. Quando falamos de candeeiros públicos, falamos de uma coluna que tem de estar ligada à terra. Se estiver bem ligado, com o elétrodo de terra bem colocado, não é suposto.” E conclui: “A manutenção é fundamental, mas o fazer bem feito de raiz é ainda mais importante.” Câmara de Lisboa assume eletrocussão e investiga falha Confrontada pelo DN, a Câmara Municipal de Lisboa assume o incidente: “Considerando as suas questões sobre o acidente ocorrido no fim de semana, com a eletrocussão de um animal no Parque das Nações, que desde já muito lamentamos, temos a esclarecer os seguintes aspetos.” A autarquia afirma que a responsabilidade pela rede de iluminação pública “encontra-se internalizada nos serviços da Câmara Municipal, que detêm o conhecimento e experiência de largas décadas na gestão de uma rede que é complexa”. São estas equipas que asseguram “a generalidade das ações de manutenção”, seguindo boas práticas e metodologias definidas, garantindo "periodicidade contínua". Sobre o caso concreto, a Câmara confirma que está a decorrer uma perícia “conjuntamente com a E-Redes” para determinar as causas do acidente. “Não temos a reportar situações similares”, assegura a nota enviada ao DN. A posição da autarquia contrasta com a prática de Odivelas, onde a E-Redes é responsável pela totalidade da manutenção da iluminação pública. Aliás, fonte da empresa já havia dito ao DN que no caso de Lisboa, “de acordo com a informação recolhida pelo piquete, o problema tem a ver com o equipamento”. No entanto, o relatório dos bombeiros aponta para “corrente elétrica no chão, possivelmente por um cabo em más condições no subsolo”, contradizendo parcialmente essa versão. Mais: de acordo com José Manuel Freitas, o facto de os dispositivos de proteção contra contactos diretos, colocados no dispositivo, não terem sido acionados, pode significar que o problema - "muito provavelmente a entrada de um condutor ativo no solo"-, se deu a montante da coluna. Ainda assim, são várias perguntas a que a Câmara da capital ainda não respondeu de forma cabal e detalhada, atendendo à gravidade do ocorrido.. - A CML está em condições de garantir que se trata de um episódio isolado? - Recebeu outras denúncias semelhantes? -Em que consiste exatamente a manutenção prevista? -Com que periodicidade é realizada? -As boas práticas estão a ser integralmente cumpridas? Odivelas: E-Redes já contactou tutora dos dois cães mortos Um dia antes da morte de Mel em Lisboa, Luna e Ozzy morreram eletrocutados em Patameiras, Odivelas. A E-Redes, responsável pela manutenção da rede de iluminação pública naquele concelho, interveio no local logo no dia seguinte. A tutora dos animais vitimados, Soraia Silva, recorda que não havia poças, mas o chão estava molhado. O candeeiro situa-se num parque infantil rodeado de obras da Câmara Municipal de Odivelas. No local estiveram Proteção Civil, PSP, Sapadores Bombeiros e o piquete da E-Redes. Soraia teve de ser assistida por uma ambulância após entrar em colapso emocional. Na quarta-feira, dia 19, recebeu contacto formal da empresa. “Comunicaram-me as condolências, que lamentavam muito o sucedido, iam averiguar e voltavam a telefonar daqui a uns dias.” A E-Redes assume investigação e garante assunção de responsabilidades Em declarações enviadas ao DN e publicadas na edição de 18 de novembro, a E-Redes confirma “duas situações na zona da Grande Lisboa que vitimaram três cães”, lamentando profundamente as ocorrências. A empresa afirma ter mobilizado equipas técnicas “com vista a averiguações e à garantia da segurança da rede”. “Os processos encontram-se atualmente em análise interna com vista ao apuramento das causas. Eventuais responsabilidades apuradas serão assumidas pela empresa. A E-Redes trabalha diariamente para garantir a distribuição de eletricidade em segurança”, assegura a empresa distribuidora de energia elétrica das redes de alta, média e baixa tensão. Queixas apresentadas e autópsias a caminho Nos dois casos foram apresentadas queixas formais e os autos já seguiram para o Ministério Público. Os tutores dos três cães já pediram a autópsia veterinária. Enquanto as perícias prosseguem, os donos dos animais e especialistas alertam para um ponto essencial: o que matou Mel poderia ter matado uma criança. Exigem que as causas sejam identificadas - e corrigidas - porque até lá nada garante que não volte a acontecer.