Nesta segunda-feira, 11 de agosto, uma mulher de 28 anos deu à luz numa rua do Carregado, nos arredores de Lisboa, depois de ter ligado para a Linha SNS24 e lhe terem dito para ir de carro particular para o hospital. A ministra da Saúde pediu de imediato à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) que averiguasse os factos da ocorrência, bem como o atendimento desta grávida na sua Unidade Local de Saúde (ULS) Estuário do Tejo, e o procedimento foi instaurado de imediato também. Os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), organismo que gere a Linha SNS24, abriram igualmente uma averiguação interna e horas depois anunciavam ter concluído que houve um "erro humano" na aplicação do algoritmo no caso desta grávida que acabou por não ser transferida para o INEM. A investigação da IGAS vai continuar, mas a circunstância de uma mulher ter dado à luz na rua, com a ajuda dos próprios pais, torna o caso inédito, se não mesmo único no país. A questão é que ao longo deste último ano - embora o problema das urgências de Ginecologia-Obstetrícia não seja de agora, mas de há vários anos - o número de partos em ambulâncias tem vindo a aumentar, até fim de julho já tinham sido registados 36, segundo dados dos bombeiros. A esta situação há a acrescentar a morte de três bebés depois de as mães terem percorrido vários hospitais até encontrarem vaga para internamento ou depois de terem de aguardar tanto tempo por uma resposta que já nada havia a fazer. Foi assim no mês de julho e em pouco mais de uma semana. O cenário, vivido sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo, e mais propriamente na Península de Setúbal, tem colocado a ministra da Saúde debaixo de fogo, com a oposição parlamentar a pedir a sua demissão, mas Ana Paula Martins já disse que “não atira a toalha ao chão” e que continuará a resolver os problemas até que o primeiro-ministro assim o entenda. . Mas desde a semana passada que há um elemento novo: o Presidente da República quer que o Governo resolva o problema das urgências até final do verão, dizendo que guardará a sua avaliação para essa altura. Na terça-feira, e depois da notícia sobre a grávida do Carregado, Marcelo Rebelo de Sousa, de férias em Monte Gordo, voltou a enviar novo recado ao dizer que não se fará de "morto" por estar de saída. Marcelo quer uma avaliação e justifica-a com as próprias palavras de Ana Paula Martins no verão de 2024, que "esperava que no ano seguinte (2025) estivessem [as urgências] a funcionar melhor".Para a oposição e para alguns sindicatos do setor está tudo pior. O DN ouviu o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH) e os bastonários dos enfermeiros e dos médicos sobre o repto de Marcelo Rebelo de Sousa e estes concordam que uma “avaliação é necessária”, embora nem todos percebam “o objetivo do Presidente ao anunciar esta sua posição”. Os interlocutores do DN defendem uma avaliação, mas “profunda e não uma que seja na base de quantas urgências fecharam no ano passado ou há dois anos e quantas fecharam este ano”, porque este tipo de avaliação não os deixa "tranquilos”. Tanto mais porque “os problemas de há um ano mantêm-se”. E, sublinham, por isso mesmo "o pedido do presidente Marcelo não é exequível”. Aliás, é mesmo “impossível” resolver o problema até ao final do verão, senão houver mais médicos..Administradores hospitalares criticam "falta de estratégia" do Governo para captar médicos no SNS. Para todos, o motivo principal do fecho das urgências “é a falta de médicos” e “estes não se conseguem arranjar nem contratar num mês ou dois”, afirmam o representante dos administradores e o bastonário dos médicos, argumentando: “O problema não é de agora, mas de há vários anos e o Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS), lançado no ano passado pelo Governo, e que criou muitas expectativas, também não o veio resolver”. Os representantes das principais classes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), no que diz respeito a quem gere as unidades e a quem cuida dos doentes, o problema do funcionamento das urgências e do próprio SNS só mudará quando “houver coragem” para se assumir que “é preciso concentrar serviços de urgências e os seus profissionais” e fazer “um ajustamento de tarefas entre médicos e enfermeiros”, para que os primeiros fiquem mais livres para prestar outros cuidados, defende o presidente da APAH. O bastonário dos enfermeiros concorda e o dos médicos aceita que seja feito com naturalidade, mas "sempre com a supervisão de um médico”.Esta mudança nas tarefas é uma das medidas que integra o PETS, mas que ainda se mantêm no lote das que estão em curso. Ou seja, "continuam na gaveta". Recorde-se que o PETS, anunciado por Luís Montenegro na campanha de 2024, foi apresentado nos 60 dias seguintes à tomada de posse do seu primeiro governo, a 29 de maio, tal como tinha sido prometido e com o compromisso de cumprir as 54 medidas que dele constam até final de 2025. 31 medidas do PETS concluídas, mas estruturantes são só trêsUm ano depois, e a quatro meses do fim do prazo, só 31 medidas foram concluídas, segundo indica a monitorização do próprio governo - a maioria delas no grupo das urgentes e prioritárias, porque no grupo das estruturantes só três foram concluídas. Por isto, concordam também que “algumas medidas do PETS podem ter tido algum impacto”, mas, "pouco ou nada mudou", precisamente porque nas medidas definidas "não há uma que consiga trazer mais médicos ao SNS". O presidente da APAH diz que "faltou ousadia e coragem no PETS para se avançar com medidas disruptivas”. E quanto mais tempo passar, “mais tempo se perde na reforma do SNS” e mais a sua atividade se “continuará a degradar”, afirma, destacando que os números dizem alguma coisa: “Ainda há 35% da população que não consegue ter acesso a cuidados de saúde”.. Concentração de urgências e mudanças nas tarefas médicas pode ser solução para ter mais médicos no SNSO presidente dos administradores começa por dizer ao DN que não fará “considerações políticas” em relação ao “ultimato” do presidente ou ao timing definido por este para uma avaliação. “Somos uma organização de técnicos e de dirigentes do SNS e só nesta perspetiva é que posso comentar, mas tenho algumas dúvidas sobre a utilidade ou o objetivo concreto desta posição assumida pelo Presidente da República e de que forma é que esta poderá contribuir para a solução do problema”, porque “quem avalia o Governo são os eleitores”. No entanto, acrescenta, “posso dizer que uma avaliação é necessária, até para se poder adaptar o PETS, mas mudar as urgências até ao fim do verão não será possível". E argumenta: "Os problemas que existiam no ano passado mantêm-se, em larga medida. Portanto, uma comparação com base em se estamos melhor ou pior do que há um ano, no número de serviços encerrados, é muito pobre. A Direção Executiva já o fez, percebo que o tenha feito, mas precisamos de uma avaliação mais profunda, para que se perceba que resposta estamos a dar à população". Para Xavier Barreto "o impacto de se fechar uma maternidade no centro de Lisboa é diferente do impacto de se fechar uma ou mais que uma na Península de Setúbal. Portanto, acho que a discussão e a avaliação devem ir mais no sentido da resolução do problema da carência dos recursos médicos". .Plano de emergência da saúde com duas medidas urgentes e seis prioritárias por concluir. A verdade é que "não temos médicos suficientes no SNS para as escalas de urgências. Isto tem sido dito repetidamente, mas não há uma única medida no PETS que permita resolver esta carência”. À questão do DN sobre se as dez medidas que integram o Eixo 2 do PETS, dedicado aos Bebés e Mães em Segurança, como a Linha SNS24 para Grávidas, a atribuição de incentivos aos profissionais e até o reforço de convenções com os setores privado e social, nada mudaram no funcionamento das urgências, o administrador não tem dúvidas de que algumas podem ter mudado “a forma como tratamos as grávidas, mas nenhuma dessas medidas evita o encerramento de uma urgência. Nenhuma”. Segundo refere, isto mesmo “foi transmitido à tutela quando a APAH foi ouvida no âmbito da discussão do plano”, porque "o fecho das urgências, sobretudo na área da Ginecologia-Obstetrícia, de forma constante na área da Grande Lisboa, poderia já ter sido resolvida com duas medidas", defende. Ou seja, “reduzindo o número de maternidades abertas e criando urgências regionais com a concentração da atividade e de profissionais. E com a mudança no número de profissionais médicos em cada equipa e respetivo ajustamento de tarefas entre médicos e enfermeiros". Para o administrador, estas “medidas são ambiciosas, mas só assim seria possível termos mais médicos no SNS para assegurar escalas das urgências no imediato”. E exemplifica: “Em cada urgência de Obstetrícia temos de ter entre dois a cinco especialistas, consoante a diferenciação da urgência, mais internos. O rácio é fixo. O que acontece é que se temos escalados quatro médicos e um falta, a urgência encerra. Esta intensidade de recursos médicos é praticamente exclusiva de Portugal. Não se passa noutros países, porque os enfermeiros têm muito mais tarefas, nomeadamente nos partos de baixo risco, que são quase todos”.Portanto, "se nada disto foi alterado durante este ano, não é e nem era expectável que os resultados fossem diferentes”, sublinha. "Para os resultados serem diferentes, deveríamos ter tomado medidas mais corajosas, com base na evidência e num plano que não seria só para a área da obstetrícia, mas com um plano estratégico a longo prazo, focado na prevenção, na inteligência artificial e no ajustamento de tarefas entre profissionais. No fundo, bastava olhar para o que está a ser feito em toda a Europa, porque a falta de médicos é um problema de todo o mundo”.. Se se utilizasse mais a competência dos enfermeiros, urgências não fechavam, diz Luís Filipe BarreiraO bastonário dos Enfermeiros, Luís Filipe Barreira, concorda que a “preocupação evidenciada pelo Presidente da República no âmbito da saúde é importante”, mas o problema das urgências de Ginecologia-Obstetrícia “não é deste ano, nem do ano passado", reforça. "Tivemos encerramentos no ano anterior e nos outros anos também”, relembra, defendendo que a questão dos encerramentos também "se deve a um problema de gestão e de planeamento de recursos". Ao DN, Luís Barreira destaca que "todos os anos tem havido um agudizar dos encerramentos de urgências nos períodos de férias e feriados”, havendo situações que “já são permanentes”, como as que se verificam na região de Lisboa e Vale do Tejo. Portanto, “se já é assim durante o ano inteiro, não é possível obter resultados diferentes de um ano para o outro ou resolver o assunto até ao final do verão”.E é com alguma desilusão que assume: “Enquanto país ainda não conseguimos criar políticas de saúde que fossem estruturais e que resolvessem de uma vez por todas a questão do encerramento das urgências ou outros problemas do SNS”. O bastonário diz mesmo que a sua Ordem já apresentou ao ministério propostas que vão no sentido de se resolver a falta de recursos humanos e evitar o encerramento destes serviços, as quais passam por se "utilizar mais as competências dos enfermeiros especialistas, nomeadamente na área da saúde materno-infantil, uma medida que até está no PETS, mas que continua por concretizar", afirma, avançando com números que para si são suficientes para sustentar esta mudança. “Atualmente, os enfermeiros especialistas já asseguram 70% dos partos normais nas maternidades. Portanto, não faz sentido fechar-se urgências porque não há médicos ou andar-se a deslocar grávidas de hospital para hospital à procura de uma unidade disponível. Os enfermeiros podem assegurar esta tarefa, têm competência ara isso e os médicos ficam livres para as parturientes de risco”, argumenta. Luís Filipe Barreira reforça que a proposta levada ao ministério contempla mesmo “a criação de centros para assistência a gravidezes e partos de baixo risco, dentro das maternidades ou em áreas alocadas a estas, o que permitiria que 70% das grávidas pudessem dar à luz nas unidades da sua residência”.Para o bastonário dos Enfermeiros, a adequação das tarefas médicas e de enfermagem é uma das medidas urgentes para se melhorar a atividade nas urgências de obstetrícia, mas volta à carga: “Quem fala da área da obstetrícia, fala também dos doentes crónicos. Os enfermeiros especialistas têm competências diferenciadas para acompanhar estes doentes e até para prescrever determinados dispositivos técnicos. Esta foi outra proposta que fizemos ao ministério, que colocasse a diferenciação dos enfermeiros ao serviço de país, garantindo a qualidade e a segurança dos cuidados, permitindo que os médicos se dediquem a outras funções, como a de diagnóstico, onde são mais necessários”.Em relação ao PETS, assume que só o facto de existir “é importante” e que este “teve impacto na área cirúrgica e oncológica”. Contudo, salvaguarda, ao fim de um ano “precisa de ser reestruturado à luz do que é a realidade no SNS. E o ministério tem de desenvolver esse trabalho”.Luís Filipe Barreira espera “verdadeiramente” que estas propostas já feitas à tutela possam vir a integrar um próximo plano de emergência.. Carlos Cortes não tem dúvidas: "sem médicos, andamos de plano para plano" sem mudançasO bastonário dos médicos diz que compreende “a preocupação do Presidente da República sobre a questão das urgências”, mas relembra também que “não é uma matéria nova”. “As urgências não começaram a funcionar mal este verão, neste inverno ou no ano passado. Aliás, a resposta do SNS tem vindo a agravar-se nos últimos dez a 15 anos, mas as urgências são sempre a área com maior expressão pública e assim que uma encerra há notícias”. No entanto, salvaguarda, “não sou defensor dessa contabilidade, porque o mais importante não é saber se houve menos ou mais urgências fechadas este ano ou no ano passado;no mais importante, e o que é verdadeiramente grave, é o facto de serem um serviço que não deveria encerrar e que está a encerrar, e de forma permanente nalgumas regiões”.Carlos Cortes diz mesmo: “Não fico mais descansado se me disserem que fecharam menos 10% das urgências, a questão é que temos urgências de obstetrícia, pediatria, ortopedia e até de cirurgia a terem de encerrar por falta de médicos. E a urgência deveria ser o último serviço de um hospital onde o encerramento tivesse que acontecer, porque isto significa que uma boa parte da população de uma região não tem acesso aos cuidados de urgência que deveria ter”.E deste ponto de vista, o bastonário concorda com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, quando diz que “tem de haver rapidamente uma solução para que tal não continue a acontecer”. Contudo, alerta: "tendo em conta o histórico dos fechos das urgências e o que está a ser desenvolvido pelo Ministério da Saúde, nomeadamente no que toca ao PETS, não acredito que o problema fique resolvido em setembro. Até pode atenuar, porque os médicos voltam das férias, mas não se resolve”.E porquê? Porque, afirma, “este problema tem por base um problema que não se resolve de um dia para o outro, que é a falta de médicos no SNS”. Carlos Cortes insiste em dizer, como muitos outros especialistas do setor, que “não há falta de médicos no país, há no SNS. E é isto que o ministério tem de mudar, encontrando soluções de atratividade para os contratar e fixar, e isto não acontece num mês”.Sobre a hipótese de poder haver mais médicos na área da obstetrícia se algumas das funções fossem assumidas pela enfermagem, o bastonário diz que tal “tem vindo a ser discutido entre classes e já é aceite tranquilamente, mas não pode nunca acontecer sem a supervisão de um médico”. Mas também defende que não é com medidas como as que estão no PETS, separação das especialidades de Ginecologia e Obstetrícia, que “vamos conseguir mudar alguma coisa na resposta na área materno-infantil. Em primeiro lugar, porque isto não vai acontecer, esta separação é contrária às regras internacionais”.Carlos Cortes salienta que “o que se tem visto é que, apesar de haver um plano de emergência e de transformação da saúde, a situação da saúde em Portugal não melhorou em nenhum parâmetro. As dificuldades na resposta das urgências mantém-se, os atrasos nas consultas e nas cirurgias também”.Na altura em que foi anunciado, a Ordem dos Médicos entendeu que a existência de um PETS era positivo apara a melhoria do SNS. “Era uma prioridade e isto mesmo tivemos a oportunidade de dizer à tutela, mas criaram-se grandes expectativas e, infelizmente, apesar de algumas medidas que considero positivas, nada melhorou”. Quando perguntamos porquê, Carlos Cortes não hesita na resposta: “Qualquer plano para o SNS só funciona se houver médicos, não havendo médicos, e independentemente das questões remuneratórias, as situações clínicas que existem não são resolvidas. Por mais planos de emergência que existam, não é possível garantir a sua execução sem médicos. Já o dissemos à tutela e na Assembleia da República. Este é o problema de base, nem sequer é um problema de modelo e organização, embora também seja, e enquanto este não for resolvido a situação do SNS continuará a degradar-se”.No final, os três representantes destas classes concordam que a Saúde não pode ser uma arma de arremesso político e que o seu futuro é um problema de todos. “A discussão e as medidas a tomar têm de ser em conjunto, entre partidos, senão não acredito que seja possível qualquer mudança”, conclui ao DN Xavier Barreto.