É fim de semana de Carnaval em Sesimbra. Tiago, de 24 anos, sai de um bar já após as três da manhã, com a namorada, Carolina, um ano mais nova. Vão a caminho do carro quando lhes surgem pela frente dois jovens. Um deles, conhecido de ambos, e com quem Tiago tivera uma altercação horas antes, empunha uma faca. “Há bocado ficaste-te a rir”, diz o da faca. Pensando que o outro indivíduo está desarmado, Tiago crê que conseguirá enfrentá-lo e escolhe dirigir-se a ele. Mas é atingido com uma pedra no rosto, enquanto o da faca (de nome Miguel) o golpeia por trás, duas vezes, entre a omoplata e a axila direita. Cai. Carolina, em pânico e julgando o namorado morto, foge em busca de auxílio; os agressores (um dos quais, o da pedra, nunca responderá perante a justiça, por não ter sido possível identificá-lo) desaparecem.Tiago, no entanto, não morreu. “Apagou por uns segundos” (é assim que descreve esses momentos ao tribunal), levantou-se e correu atrás da namorada, sem sequer se dar conta de estar a sangrar. Pouco depois da cinco da manhã de domingo 11 de fevereiro de 2024, já após a GNR tomar conta da ocorrência, dava entrada no hospital. Aí percebe que teve sorte: malgrado o local atingido — o “hemitórax posterior” — as facadas não perfuraram o pulmão.É sobretudo esse facto, aliado ao número de facadas, que leva o Tribunal da Relação de Évora, num acórdão de 14 de outubro, na apreciação do recurso de Miguel (com 21 anos à data dos factos e em prisão preventiva desde maio de 2024), a alterar a qualificação do crime que lhe foi imputado. Se a primeira instância — o Tribunal de Setúbal — o condenara em 15 de maio deste ano a seis anos e meio de prisão por homicídio simples na forma tentada, mais um ano por ameaça agravada (já lá iremos), num cúmulo jurídico de sete anos de prisão efetiva, o coletivo da Relação condena por ofensa à integridade física qualificada, por não vislumbrar nas facadas intenção de matar.Isto porque, explica o acórdão, ao qual o DN teve acesso, “no que toca à utilização de armas brancas”, a intenção de matar “não se revela com um único golpe (…). Nas situações mais comuns, o agente acaba por desferir vários golpes, animado que está da intenção de tirar a vida. (…) Cremos que se o arguido estivesse animado pela intenção de matar, seguramente não se quedaria por aqueles dois golpes.”Essa ausência de intenção terá sido também notória, para o tribunal superior, no facto de os dois agressores se terem afastado depois de Tiago cair — quando nada os impediria de continuar a agressão.Acresce, prossegue a decisão, que “do evento não resultaram quaisquer consequências permanentes para o ofendido” e “o relatório médico e os demais elemento clínicos, ao descreverem as lesões resultantes da agressão, não as qualificam de molde a serem aptas a produzir o resultado morte. Atente-se nomeadamente no tamanho das duas feridas que não teriam mais de 3 cm, sendo as demais lesões superficiais ou condizentes apenas com a pancada com a pedra que o ofendido terá sofrido.”Nota ainda o acórdão, do qual foi relatora a juíza desembargadora Renata Whytton da Terra, que “durante os cinco minutos que [Tiago e Carolina] andaram a pé até chegarem junto de socorro, ninguém fez pressão sobre as feridas no sentido de tentar estancar o sangue, como afirmaram inequivocamente a vítima e a sua namorada. Assim, apesar de ter sangrado abundantemente das feridas, as feridas não podiam ser muito fundas e graves, pois de outra forma o agredido não teria conseguido fazer todo aquele percurso a pé sem qualquer auxílio. Os autos atestam que não foi necessário o ofendido receber sangue (por meio de transfusão).”“Tem de haver sinais inequívocos de que se queria matar”Os mesmos factos — ou as mesmas facadas — foram assim vistos pelo Ministério Público, na acusação, como homicídio qualificado (o mais grave tipo de homicídio) na forma tentada, pelo tribunal de primeira instância como tentativa de homicídio simples e pela Relação como um crime de ofensa à integridade física qualificada. Num contexto internacional no qual os chamados “crimes de faca” têm vindo a ganhar grande expressão, nomeadamente entre os jovens (levando a campanhas específicas de prevenção em vários países europeus -- caso de França e Reino Unido, onde em Inglaterra e Gales se verificou um aumento de 64% de março de 2016 a junho de 2025 nos crimes registados pelas polícias com uso de facas ou objetos cortantes), esta decisão poderá surpreender leigos e até menos leigos — como é decerto o caso de quem no MP deduziu a acusação e dos juízes da primeira instância autores da condenação revogada. Perguntar-se-á: então usar uma faca, e desferir facadas no tórax, não implica pelo menos que o autor ponha a possibilidade de causar a morte? Não, respondem penalistas ouvidos pelo DN, que consideram acertada a decisão da Relação de Évora. “A intenção de matar decorre do tipo de agressão e do tipo de arma utilizada, porque não estamos na cabeça dos arguidos, e a identificação do dolo é uma visão interpretativa da realidade baseada em dados objetivos. Nem sequer é muito relevante o que o arguido diz. Porque pode dizer que tinha intenção de matar e concluir-se que não tinha, ou dizer o contrário e ter intenção de matar. Tem muito a ver com as circunstâncias objetivas, mensuráveis, da prova”, explica ao jornal um dos referidos juristas, que prefere não ser identificado. E prossegue: “Não se sabe que faca foi usada no crime, só se sabe a medida das facadas e que não pode ter sido usada muita intensidade. E mesmo a escolha da localização não indicia a intencionalidade homicida. É no tórax, certo. Mas quando se esfaqueia por trás e se quer matar, geralmente atinge-se mais abaixo.”Aliás, sendo dois os agressores, conclui este penalista, “se quisessem matar, matariam à vontade, nem que fosse com a pedra na cabeça. Aqui, in dubio pro reo [expressão latina que significa “na dúvida, a favor do réu”], não se consegue retirar a intenção de matar.”Mesmo um dolo eventual implicaria, ainda de acordo com a mesma fonte, que “fosse previsível, para a pessoa em causa, que a forma como estava a atuar causasse o resultado morte e ela se conformasse com esse resultado”. Outra especialista, apesar de considerar que não está muito bem esclarecida a profundidade das facadas deferidas por Miguel, concorda: “Para se condenar por tentativa de homicídio tem de haver sinais inequívocos de que se queria matar.”Levanta porém outra questão: “O Tribunal de Setúbal afastou a hipótese de homicídio qualificado, que é agravado em função de um catálogo de circunstâncias elencadas no número 2 do artigo 132º do Código Penal [o que tipifica esse tipo de homicídio], que se considera revelarem "especial censurabilidade ou perversidade do agente", mas a Relação condena por ofensa à integridade física qualificada, o que pressupõe que alguma, ou várias, das agravantes do elenco do artigo 132º estiveram presentes. Só que não diz qual ou quais.”Efetivamente, o acórdão refere que "a motivação, relacionada com a contenda anterior, afigura-se especialmente censurável, com laivos de proximidade ao motivo fútil, posto que se apresenta completamente injustificada”, e ainda que Miguel “revela laivos de frieza de ânimo” (por, após uma contenda ocorrida horas antes, esperar até atacar). Diz também que se está ante uma atuação “inusitada e cobarde”, pois o arguido quis surpreender a vítima quando esta menos esperava, tendo-lhe desferido “as facadas cobardemente pelas costas”, quando esta “acabava de ser agredida com uma pedra na cabeça, diminuindo drasticamente as suas possibilidades de defesa”. Mas se a generalidade destas circunstâncias pode ser remetida para alíneas do artigo 132º que definem a qualificação do homicídio, e servem também para qualificar outros crimes (como é o caso da ofensa à integridade física), seria necessário, frisa a segunda penalista ouvida pelo jornal, apontar no acórdão a alínea ou alíneas em causa. Coisa que não sucede, e que poderá excecionalmente permitir que a defesa de Miguel recorra (ou tenha já recorrido) para o Tribunal Constitucional.“Não tou fixe sabendo q estás a pensar q ia fazer isso do nada”Malgrado ter baixado consideravelmente a pena — de seis anos e meio por tentativa de homicídio para três anos e meio por ofensa à integridade física qualificada, os quais resultam, com a manutenção da condenação a um ano por ameaça agravada, num cúmulo jurídico de quatro anos, pena que permitiria a suspensão —, o acórdão da Relação de Évora mantém a prisão efetiva. Fá-lo invocando as elevadas necessidades de prevenção geral (aquela que diz respeito à sociedade, devido “à repulsa e enorme censura que este tipo de crime causa na sociedade, sobretudo pelo uso de arma branca, impondo-se reforçar a censura sobre os mesmos, por forma a dissuadir a sua prática”) e de prevenção especial — o facto de considerarem que o arguido pode ainda constituir perigo, por possuir “uma personalidade desviante e vingativa”, não ter demonstrado arrependimento (nunca admitiu ter sido ele o autor das facadas) e ter, no momento do crime, abandonado o local “sem prestar auxílio à vítima” nem “se ter apresentado às autoridades policiais”.Este retrato da personalidade de Miguel, que quando foi detido tinha duas facas no seu quarto (vivia com a mãe, uma irmã e a avó), nenhuma das quais foi possível ligar ao crime, advém desde logo dos acontecimentos daquela noite, que se terão desenrolado a partir de uma contenda entre o grupo onde estava Miguel e aquele no qual se encontravam Tiago e Carolina, contenda essa que “envolveu socos e pontapés recíprocos” (um desses pontapés, como Tiago admitiu em tribunal, terá sido desferido por ele sobre Miguel), e se “desenvolveu em dois momentos distintos, tendo sido cessada em ambas as vezes com a intervenção da GNR”. Tendo o grupo de Tiago e Carolina entrado num bar e o de Miguel sido impedido de os seguir, este último terá ficado cá fora, em espera. Espera que terminou quando Tiago e Carolina saíram, tendo Miguel e o outro indivíduo seguido o par, surpreendendo-os quando estavam quase a chegar ao respetivo carro. A conclusão de que Miguel esperou para se vingar parece, de resto, atestada por uma SMS que enviou para a irmã de Tiago e que foi uma das provas mais relevantes para a sua condenação (afastando, do ponto de vista dos dois tribunais, a possibilidade de, como afirmava, não ser ele o autor das facadas): “Espero q um dia me perdoes — mas ñ tou fixe sabendo q tu estás a pensar q eu ia fazer isso do nada teu irmão me deu espancamento mais os amiguinhos dele na mm noite afrente de toda a gente e pode perguntar a quem lá esteve q vão te confirmar o q eles me fizeram’.Tal pedido de perdão ter-se-á no entanto compaginado com a persistência na intenção vingativa, já que a 11 de maio de 2024, três meses após o esfaqueamento, perseguiu e ameaçou Tiago quando este se dirigia, com Carolina, para casa da mãe — ação que valeu a Miguel a condenação por ameaça agravada e contribuiu decerto para que o coletivo da Relação se decidisse por prisão efetiva, apesar de se tratar de um “primário” (um arguido sem condenações prévias).Lê-se no acórdão: “Deixa transparecer um desejo manifesto de prejudicar e ofender Tiago, pelo que a mera suspensão da execução da pena, sem cumprimento efetivo, inculcaria provavelmente um sentimento de impunidade e um desejo de nova vingança agora agravada pelo facto de a vítima ter feito queixa dele. É manifesto que a simples censura dos factos e a ameaça de prisão não asseguram de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tanto mais que o arguido não reconheceu a prática dos factos e não revelou qualquer arrependimento.”A penalista ouvida pelo DN suspira. “Este é um caso em que faria sentido haver uma tentativa de mediação, de reconciliação, por parte do sistema. Para tentar certificar que isto acabou aqui.”Primeira década do século com recorde de crimes com arma brancaComo referido, os "crimes de faca" têm sido uma preocupação crescente em vários países europeus, nomeadamente no Reino Unido. Em Inglaterra e Gales, estes crimes aumentaram 49% entre 2011 e 2019, ultrapassando, nesse último ano, 50 mil ocorrências. Após os confinamentos, quando se registou naturalmente uma descida na criminalidade, aquela que faz uso de arma branca recrudesceu, aproximando-se, em 2023, dos números de 2019.Entre março de 2024 e março de 2025, 49% das tentativas de homicídio em Inglaterra e Gales envolveram facas ou outros instrumentos cortantes, os quais estiveram presentes em 40% dos homicídios consumados e em 28% dos roubos. Em Portugal não existem dados tão completos, mas segundo os que se encontram na página das Estatísticas da Justiça (cujos quadros se iniciam em 1993), 2006 foi o ano em que se registaram mais crimes cometidos com recurso a arma branca (4429, ou seja mais de 12 por dia), seguido de 2002 (4013) e 2001 (4059). Nessa década, a primeira deste século, foram contabilizados 36498 crimes com essas características, mais do dobro dos 16603 participados na década seguinte. Já entre 1993 e 2000, a soma atingiu 21988 (uma média de 2748 por ano).Na atual década, o ano com mais registos foi 2024, precisamente aquele no qual ocorreu o esfaqueamento de Tiago: contabilizaram-se 1828 crimes com recurso a armas brancas. Trata-se do valor mais alto desde 2014. No entanto, atentando à distinção entre crimes contra pessoas e crimes contra o património — a qual tem que se lhe diga, pois a utilização de uma arma pressupõe sempre violência contra pessoas — que é a estes últimos, com o "roubo na via pública" à cabeça, que respeita a esmagadora maioria das utilizações de faca ou similar. E é em 2006 que o roubo na via pública com recurso a arma branca tem o seu auge, com 3492 ocorrências. Até 2009, estas manter-se-ão anualmente acima de duas mil, passando, a partir de 2017 para menos de mil. Assim se mantêm até 2024, quando se contabilizaram 1216.No que respeita aos crimes de faca contra pessoas, foram mais numerosos no período de 1993 a 2000, numa média de 287 por ano (ou seja quatro crimes a cada cinco dias).Na década atual, 2023 é o ano com mais registos (205) de uso de arma branca contra pessoas, seguido de 2022 (192). Em 2024, quando Tiago foi esfaqueado por Miguel, houve outros 189 crimes contra pessoas com arma branca. Trata-se, na maioria, de ofensas à integridade física. Quanto a estas, 2008 é o ano com mais registos (281), seguido de 1994 (278), sendo 2016 aquele no qual se contabilizaram menos casos (115). A partir de 2012, o registo anual das ocorrências deste tipo reportadas às polícias tem estado sempre abaixo de 200. Desde 2020, 2023 é o ano com mais casos registados: 177.Quanto a crimes contra a vida usando faca ou similar, o ano com mais casos é 1994 (54), seguido de 1993 (49). Já 2016 é aquele que, desde o início da série, regista menos crimes contra a vida com arma branca (13). Em 2024, foram registados 23 homicídios voluntários consumados com essas características — 25% dos 89 homicídios verificados nesse ano. .“O que vais fazer com uma faca?” Crimes juvenis com arma branca estão a crescer.Aluno de 13 anos ameaça colegas e professores com faca em escola de Sintra