Como é que você avalia este quase um ano à frente da Missão do Brasil na CPLP em Lisboa? .Eu vinha de quatro anos no Brasil, onde trabalhei assessorando o vice-presidente. Então, quando terminou esse momento ali, era já o meu momento de ir para o exterior. Na carreira, temos esse ciclo, surgiu a oportunidade e eu falei que tinha interesse. Nunca tinha trabalhado nessa área multilateral, sempre fiz trabalho um a um e bilateralmente. Eu não tinha muita ideia do que era esse convívio de vários países ao mesmo tempo. Mas a CPLP é um multilateral muito especial, porque além de ser pequeno, são nove países - você não tem, por exemplo, grupos de interesses que agrupam alguns países. Aqui na CPLP, a gente não tem isso, o que nos associa é uma identidade comum. Então, a gente tem de procurar pontos de associação, e eles são naturais, estão na nossa cultura, estão na nossa História, estão na nossa língua. O grande produto é a cooperação: onde é que a gente pode dar um pouco aqui, pegar um pouco dali e construir um modelo de desenvolvimento que seja bom para todos. E por mais que você diga: “Mas Brasil e São Tomé e Príncipe, a escala é absurdamente desproporcional.” Mas, ao mesmo tempo, o Brasil, por mais doador de cooperação que seja, a cooperação sempre acaba sendo uma via de mão dupla. Por exemplo, sempre que você está doando algum curso técnico, uma capacitação, de alguma forma aquilo vai retornar, seja no aprendizado daqueles técnicos que foram lá, passaram duas semanas lá em Cabo Verde e, de repente, aprenderam uma coisa que podem aplicar no Nordeste do Brasil, porque o regime de chuvas é semelhante. Esse pilar, a cooperação, é muito interessante na CPLP. E tudo é feito por consenso, é algo que nos distingue. Não tem votação: ou todo mundo concorda ou não vai..Isso exige muito trabalho de diplomacia....Sim, sobretudo quando um ou dois países estão desconfortáveis com alguma questão, você tem outros sete que querem fazer. É questionar o que te deixa desconfortável e tentar ajudar para poder embarcar também. Por isso, a tendência é sempre ser uma coisa cooperativa. Isso é muito estimulante, porque você não está competindo, não tem uma desigualdade. Ah, mas o Brasil é... ah, e os Estados Unidos, nada disso. O nosso denominador comum nivela, não tem uma competição. Temos o compromisso da promoção da língua portuguesa, hoje em dia um pilar fundamental, porque você tem o crescimento do português na internet, que é uma coisa impressionante, exponencial, que é muito impulsionado pelo Brasil, aí justiça seja feita. Essa democratização do uso da internet, das ferramentas do mundo virtual, da digitalização, isso no Brasil tem uma dinâmica muito poderosa, então impulsionamos isso - pensamos: como é que você vai interagir com aquele mundo de informações da internet se você não tem a possibilidade de ter essas informações em português? Então continua sendo um grande desafio, continuar a promoção do português..E qual aspeto considera negativo?.O que eu acho de não tão positivo é que a CPLP tem muito pouca visibilidade. As pessoas não sabem o que é, não sabem o que a CPLP faz ou até sai um conteúdo distorcido. Por exemplo, quando começou o Visto CPLP, começou a bater gente aqui, dizendo: “Vê aí o meu visto, você aí, que é da CPLP, como é que eu faço?” O Visto CPLP foi um apelido que foi dado à modificação que Portugal fez na sua legislação para acomodar os imigrantes dos países da CPLP, como forma de ratificar o acordo. O Brasil só foi fazer isso no ano passado, quando o Ministério da Justiça e o Itamaraty [MNE brasileiro] consolidaram uma portaria que realmente avançou na direção do acordo de mobilidade. Mas alguém chama aquilo de Visto CPLP? Não. Então, essa confusão, às vezes, não é muito produtiva para a CPLP e, ao mesmo tempo, a gente não consegue dar visibilidade às coisas realmente produtivas e interessantes que acontecem ali, que muitas vezes trazem benefício direto para a sociedade dos países da CPLP e não sabem que a CPLP está por trás disso..Agora todos associam a CPLP ao visto….Exato. Acho que essa questão do visto, como todo o grande movimento de marketing, porque criou uma marca Visto CPLP, ele tem um lado positivo e um lado negativo. Positivo, porque a marca CPLP realmente começou a ser identificada. Mas, ao mesmo tempo, tem um lado negativo, porque ele identifica uma política portuguesa com uma organização internacional na qual Portugal participa, mas não é exclusivamente português. Então, aí houve uma confusão não tão positiva nesse sentido. .Como avalia a participação do Brasil na CPLP atualmente?.Primeiro voltámos a participar na CPLP como gente grande. O Brasil saldou as dívidas que tinha com a CPLP. Estávamos em dívida há quase três anos. O Brasil é o principal contribuinte da CPLP. Então, na hora em que o Brasil fica três anos sem pagar a sua cota, a CPLP fica em apuros. Não estamos falando de zilhões de dólares. Estamos falando de uma cota que é um pouco abaixo de um milhão de dólares, uns 750 mil. Agora, em 2026, devemos aumentar um pouquinho essa contribuição, chegar a uns 900 mil dólares. Mas uma organização cuja maior cota é a do Brasil e que vive com dois milhões de dólares ao ano. Você descapitaliza o grupo? Você tem dois anos sem pagar, a organização não consegue avançar. Além disso, o Brasil hoje tem uma presença muito mais dinâmica na CPLP, é uma presença onde o Brasil é muito mais propositivo. O Brasil era reativo e um reativo ruim, em que eu não tinha a menor condição, nem interesse em participar. A gente passou a ser propositivo e... “Gente, olha, tem um espaço aqui onde a gente pode cooperar e pode ser bom para todos, querem?” O Brasil tem condições de propor. Então propusemos, fizemos uma rede de Direitos Humanos, fizemos uma rede de escolas para ensino de Português, temos uma rede de pesquisa científica. Tudo isso foram propostas muito recentes e que avançaram em uma área muito interessante. Tivemos também a proposta de uma rede de cooperação e prevenção na Área de Saúde Epidemiológica, sobretudo de maneira a que você consiga antecipar surtos e eventuais epidemias que podem comprometer a população. Portanto, o nosso papel na organização mudou: a gente passou a ter um papel muito mais proativo, muito mais propositivo do que a gente tinha. Tanto que o Brasil mal participava das reuniões. A organização estava sem recursos humanos, recursos para operacionalizar mesmo as suas funções - então, recursos financeiros a zero; recursos humanos conseguimos agora. Inclusive, em breve, a gente deve ter o lançamento de um edital de vagas para aumentar o corpo da CPLP..Em Portugal discute-se muito o preconceito linguístico, especialmente nas escolas e universidades. Qual acha que deve ser o papel da CPLP?.Essa hierarquização é muito perigosa. Esses tempos li um artigo de uma senhora que assinava como psicóloga infantil, falando da influência do português, da influência nefasta do português brasileiro nas crianças portuguesas. O sentido da matéria que essa senhora publicou era como você fazer seu filho voltar a falar português europeu. Esse tipo de reação é a mais perniciosa possível, porque aí você está com uma suposta autoridade académica, científica, que está dizendo que aquela influência de uma vertente do português, que é diferente da vertente portuguesa, ela é prejudicial. Esse tipo de discurso é inconcebível. Nós temos de conscientizar as pessoas de que não há prejuízo, não há hierarquia, não há superior, inferior. Nós falamos a mesma língua. Ela só tem, vamos dizer assim, polos de radiação diferentes. E com suas características. Lutar contra o preconceito é uma bandeira que a gente não pode deixar de erguer sempre..Voltando ao acordo da CPLP, como avalia a implementação?.O acordo foi um passo ambicioso. Eu acho que naquela época, quando ele foi negociado, em 2017, teve muita ambição ali, naquele momento, e acho que o acordo reflete isso. Reflete essa ambição no sentido de que a gente vê um futuro de Espaço Schengen, um espaço CPLP, onde a circulação é absolutamente livre, o espírito do acordo é esse. Só que o acordo, ao mesmo tempo, dá muita liberdade e autonomia individual para cada um dos Estados. Acima dessa ambição, vamos dizer assim, maior, não diria utópica, mas ideal, que seria um espaço de livre circulação de pessoas, você tem mecanismos internos de legislação e tudo o que você precisa adequar pouco a pouco para chegar nesse cenário ideal. Há a liberdade para que cada um, no seu ritmo, nas suas peculiaridades, nas suas normativas, vá criando as condições e avançando. Portugal avança muito rápido, logo na largada, aí que a gente falava do famoso Visto CPLP. Os países africanos, muito preocupados também com a questão documental, de melhorar a qualidade dos documentos e da identificação das pessoas. Nós fazemos um esforço conjunto, coletivo, para evitar fraudes documentais e, pouco a pouco, a gente foi avançando. No Brasil, obviamente, quando o acordo foi lançado, no Governo anterior, havia muita dificuldade em assimilar aquilo, como implementar aquilo dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Isso só foi possível agora, com o Governo atual. Quando se olhou para o acordo de mobilidade, falaram, tem algumas coisas da legislação brasileira que nós podemos adaptar para tornar esse acordo mais dinâmico do lado do Brasil..Portugal saiu beneficiado pela necessidade de mão-de-obra estrangeira....Eu acho que houve um ganha-ganha nos dois sentidos, tanto de Portugal quanto do Brasil. Também houve, de certa forma, vamos dizer assim, uma avidez de Portugal querendo absorver essa mão-de-obra, que talvez foi o que um pouco gerou ruído com a própria União Europeia, que questionou o facto de Portugal ter avançado tão rapidamente com essa legislação. Acho que agora o Governo está dando um ajuste de rota. Não acho que vão fazer uma legislação restritiva, que vai condicionar ou mudar. Eu acho que eles estão ajustando para também mostrar que existe uma dinâmica aí, não é estático. As populações não são estáticas. Então, a legislação também tem de ir se adaptando e se ajustando a esse contexto demográfico e populacional que vai mudando. Tudo aconteceu também em um momento político sensível, como falei - as pessoas ligavam aqui, para a Missão do Brasil na CPLP, perguntando de visto ou de residência, como era o processo para resolver, porque as pessoas estavam tentando qualquer burocracia que pudesse dar uma resposta para ela, estavam tateando e atirando para tudo que é lado, tentando achar alguém que desse essa resposta. E isso custou. Essa transição foi muito difícil. Essa transição burocrática. Acho que agora também isso deu uma estabilizada. Mas a minha perceção é de que a coisa começou a ganhar um rumo mais organizado e menos inseguro para as pessoas..amanda.lima@dn.pt