"As narrativas a preto e branco são falsas e só servem para incendiar emoções"
A invasão da Ucrânia veio pôs fim à ilusão dos europeus de que viviam num continente pacífico?
A chamada longa paz na Europa foi sempre marcada por guerras, umas dentro do espaço europeu (Balcãs), outras levadas pela Europa para outras geografias (Líbia, Síria, etc.). Independentemente dessa contradição, o que sustentou essa paz longa foi a ambição de associar a paz negativa (o silêncio das armas) a um programa de paz positiva: a adoção do modelo do Estado Social, com direitos de proteção social no presente horizonte socioeconómico de futuro ascendente. Foi isso, mais que outra coisa qualquer, que deu suporte à paz na Europa. Ao preterir esse programa de paz positiva por outro de competição e de nivelamento por baixo, a Europa abriu a caixa dos nacionalismos e dos ressentimentos. Sem paz positiva, a paz negativa perde sustentação e a guerra torna-se uma possibilidade.
É conhecendo a guerra que se dá valor à paz, como mostraram os fundadores da União Europeia, todos testemunhas dos horrores da Segunda Guerra Mundial?
Tem sido manifesto que, entre os comentadores mediáticos da guerra na Ucrânia, vários militares se têm destacado pela prudência das suas análises e pelo seu distanciamento da excitação belicista que tem dominado a esfera pública. A razão disso, creio, é que eles conhecem as guerras por dentro, sabem dos seus cortejos concretos de mortes e de destruição, sabem que as narrativas a preto e branco são falsas e só servem para incendiar emoções e para colocar a destruição física do outro como o cenário apetecível. Quem parte desse conhecimento da crueldade da guerra mais facilmente dirá "se queres a paz, prepara-te para a paz".
Citaçãocitacao"A paz não é a antítese da guerra, é a antítese das violências. Das violências no plural, ou seja, não só da violência direta, manifesta, exuberante, mas também das violências latentes, silenciosas, que vitimam a liberdade e a dignidade das pessoas."esquerda
A paz só por si é um valor absoluto? Há situações em que a paz, só por si, não chega?
O que só por si não chega é a ausência de violência física, a paz negativa. Sem a prevenção e a redução da violência estrutural - que resulta da desigual distribuição de poder - e da violência cultural - que são todos os mecanismos que tornam "naturais" as violências - o risco de eclosão de violência física é premente. Isto dito, é óbvio que a paz mínima, a coexistência, é algo de um valor inestimável. As vítimas, diretas e indiretas, das guerras sabem-no melhor que ninguém
Como explica o conceito de paz positiva?
A paz não é a antítese da guerra, é a antítese das violências. Das violências no plural, ou seja, não só da violência direta, manifesta, exuberante (de que a guerra é a expressão mais visível), mas também das violências latentes, silenciosas, que vitimam a liberdade e a dignidade das pessoas. A escola dos Estudos para a Paz faz uma comparação, que me parece muito pedagógica, entre os diferentes tipos de violência e a realidade sísmica: a violência direta é como um sismo, a violência estrutural é como o movimento das placas tectónicas e a violência cultural é como uma falha geológica. São, pois, violências com temporalidades diferentes: a violência direta é um facto, a violência estrutural é um processo e a violência cultural é uma permanência. O conceito de paz positiva decorre deste raciocínio e dá ao conceito de paz uma ambição e um alcance programáticos, porque a paz, assim concebida, é sempre incompleta, é uma exigência permanente. Várias correntes de pensamento, como a Doutrina Social da Igreja, têm perfilhado esta perspetiva ampla da paz, vincando, ao mesmo tempo, a necessidade de se fazer todo o investimento exigido para garantir paz mínima quando a guerra está no horizonte ou deflagra.
Sem tolerância não é possível a paz?
Há dois entendimentos diferentes de tolerância. Um é o que a vê como expressão de poder. O poder de tolerar é também o poder de não tolerar, no quadro de uma relação entre alguém superior - que tolera - e alguém inferior - que e tolerado. Mas há um outro entendimento que é o da tolerância como garantia da diferença. Esta ideia de tolerância como coabitação de diferentes, que mantêm pleno direito de não serem espezinhados na sua diferença e na sua singularidade, é evidentemente uma condição imprescindível para haver paz. Só a tolerância, assim entendida, garante a segurança comum aos indivíduos ou comunidades diferentes. É por isso que essa aprendizagem da tolerância integra o património de conhecimento e de experiência em matéria quer de prevenção de conflitos, quer de reconstrução pós-bélica.