Que conselho ou desafio lançaria aos autarcas para mudar as cidades que temos?Aquilo que sinto como especialista é que se devia recentrar um bocadinho a discussão sobre as questões do território da cidade. Acho que houve uma grande mudança nos últimos tempos. E, sobretudo, depois da covid, houve uma grande mudança ao nível das questões ambientais. E também temos algumas urgências que, entretanto, apareceram como a questão da habitação. E o foco acaba por ser apenas num elemento.Todo o discurso está apenas centrado na crise de habitação...É necessário responder à crise da habitação. Porque é algo que as pessoas sentem no dia-a-dia. Afinal, não temos muita oferta porque há uma nova procura que vem de fora. Sobretudo com os nómadas digitais e as pessoas que deslocalizaram o seu emprego. Isso tudo fez com que nós tenhamos uma falta de habitação, sobretudo para as classes mais pobres e para a classe média E isso fez com que se redirecionassem as preocupações dos autarcas para a habitação e se esquecessem que a habitação está relacionada com outras questões.Quais?Com as questões da mobilidade, do ambiente, da equidade. E que uma política de construir, construir, construir, pode resolver o problema daqui a uns anos, mas vamos criar outros. Portanto, o meu conselho é que se olhe para o território. E quando olhamos para o território, temos que olhar para a questão social, sociocultural, questão ambiental, e depois para a questão da gestão e da governança mais próxima dos cidadãos.Portanto, ao se autorizar mais construção outras questões ficam para trás...Nós temos um planeamento e um ordenamento do país reativo. Não temos nada planeado. Temos planos espetaculares, planos diretores municipais, planos de pormenor, programas da orla costeira, temos um conjunto de instrumentos que estão no território, e muitos deles, às vezes, muito bem feitos. Muitos deles desatualizados, mas bem feitos. Mas depois não se consegue implementar. E acabamos por ter problemas de ordenamento do território...Temos um modelo de ordenamento que, na minha opinião, tem um problema grave. É um modelo ultrapassado, mas que está mais ou menos de acordo com os planos diretores que estão em vigor. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que neste momento nós temos um planeamento muito pouco dinâmico e muito pouco adaptado aos nossos tempos.Qual é a solução?Esta gestão que temos com base em planos e modelos antigos tem de ser alterada.Temos de ter modelos mais dinâmicos, mais estratégicos, que permitam dar uma resposta às necessidades das pessoas, e de uma forma rápida e legal.Entre as necessidades das pessoas está a habitação, como já se referiu. Qual a forma de alterar a atual crise?O que é que se faz a estas casas devolutas nos centros da cidade? Efetivamente, não temos tido grande capacidade de requalificação e de renovação dos centros já construídos, por vários motivos. Tivemos, digamos, um boom de conversão e de conversão dos centros históricos e dos centros mais degradados por via de turismo. E por via de uma situação que tem os seus benefícios, mas também tem os seus problemas: o alojamento local. Qual é o problema? É sempre a questão reativa a uma necessidade e sem planeamento. Este processo foi fundamental para recuperarmos as nossas zonas históricas, mas estas casas não foram para o mercado. E então, o que é que aconteceu às cidades? Começaram a ficar vazias, como em Barcelona, como em Lisboa, como em todo o mundo que aplicou este modelo, que é um modelo de evolução muito rápida e que trata de transformar o nosso território num grande parque turístico.Qual é, então, o caminho?Temos de continuar a garantir que a classe média tem acesso à habitação e que vive na cidade. Porque depois vai ter filhos, que depois vão para escola. Se há famílias, tem de haver consumo. Tem de haver comércio. E esse comércio gera emprego. Portanto, é toda uma construção da cidade que não existe no processo que nós temos agora de turistificação. Não se consegue construir uma cidade sustentável assim.É o caminho para a “cidade dos 15 minutos”?Tem de existir uma inversão muito clara nas políticas. Sobretudo nas políticas de tornar o nosso modelo económico muito dependente do turismo, principalmente nas cidades. Tem que haver uma inversão e tentar encontrar um equilíbrio e voltar a ter pessoas a viver nos centros da cidade e não ser só turistas e os serviços só de turistas. A cidade de 15 minutos, que nasceu em Paris, é um modelo que tem que ser adaptado a cada realidade.E o que é essa “cidade”?É tentarmos ter serviços de proximidade. Se tivermos o serviço de proximidade, o ordenamento do território é decisivo para a mobilidade. Nós estamos a falar de mobilidade, de termos qualidade de vida. O conceito é: temos capacidade de construir uma cidade em que as pessoas não tenham de se deslocar muito, ou que não tenham de usar o transporte individual para ir trabalhar, para ir levar os filhos, ou para ir fazer compras. Que é o que acontece na maior parte da nossa área metropolitana. Refere a mobilidade, mas ainda existem dificuldades no serviço público de transportes...Estou a olhar para alguns números e a ver que, na época pré-pandemia, tínhamos mais ou menos, tendo como referência a área metropolitana de Lisboa, 370 mil veículos a entrar em Lisboa. Neste momento, os valores mais recentes (entre 2023 e 2025) apontam para entre 392 mil e 412 mil.Portanto, as restrições colocadas pela Câmara de Lisboa não resultam...Houve um aumento brutal de entradas de carros em Lisboa, apesar dessas restrições que a câmara foi pondo ao longo dos últimos anos. Mas, depois vimos que a Carris Metropolitana é um o sucesso tremendo. Há carreiras completamente esgotadas. Portanto, quando existem condições, as pessoas não têm desculpa para não tomar a opção. Temos é de criar condições para que as pessoas não tenham de trazer o carroMas todos os transportes públicos cresceram em procura?O transporte fluvial caiu 45% porque há menos barcos. Há aqui uma questão muito interessante que tem a ver com a qualidade e com o acesso a um transporte mais acessível. Foi determinante o passe navegante. Ou seja, o investimento que os municípios fazem não é um investimento em vão. É um bom investimento. Nós temos famílias inteiras que antes vinham de carro e agora não. O passe é 80 euros. Esta mudança é muito importante. Aliás, é tão importante que a Fertagus teve de adquirir composições de urgência, em segunda mão.Perante tanta mudança as cidades também têm de se adaptar...A cidade tem de ser mais caminhável, ter os serviços mais perto, mesmo que o emprego não esteja mais perto, mas os serviços têm de estar, isso é fundamental. Por exemplo, o típico de uma pessoa que não mora no centro de Lisboa, que tenha filhos, é levantar-se mais cedo, levar 10 a 15 minutos, pelo menos, a deixar o filho na escola, se for um, de uma idade, e outro de outra idade. E depois de deixar os filhos, vai para o trânsito para ir para o trabalho. Portanto, normalmente, não leva menos de uma hora. Ora, uma hora é muito tempo para uma deslocação normal, não é? Portanto, o ordenamento do território aqui é essencial para criar estas situações de proximidade. Agora, como é que se muda? É uma questão que se lança e tem que ser colocada e é uma política de governo.É uma situação difícil...Como é que, no centro das cidades, os municípios têm capacidade de interferir no privado? É difícil, não é? E quando o privado já não é a pessoa que nós conhecemos e há uma empresa multinacional que comprou um quarteirão no centro de Lisboa? Não tem rosto. Como é que se trabalha com estas pessoas? Que são bancos, fundos imobiliários? Ou seja, estamos num mundo em que temos cada vez menos capacidade de gerir o nosso tecido urbano. Como é que isto se altera? Com políticas públicas, com alguma coragem política e às vezes custa caro, não é?Voltamos à questão do ordenamento do território...Nós temos um grave problema de ordenamento do território. Seja na cidade, seja na zona rural. E esse problema é agravado pelas alterações climáticas. De repente deixámos de falar em alterações climáticas na cidade. Porquê? Porque foram os incêndios, foram um bocadinho as alterações climáticas. Agora voltámos à habitação, porque as pessoas estão realmente aflitas e tem que se dar uma resposta e depois perde-se esta noção de que vamos... E eu sinto que pode haver algum risco. Eu não tenho os dados, mas qualquer dia pode-se começar a fazer algum levantamento para perceber. Esta emergência, esta liberdade que o Governo atual permitiu às autarquias que avançassem para construção em algumas áreas que haviam reticências em serem construídas. Esta liberdade... Está a falar da lei dos solos?Sim. Vamos ver quais são os impactos. Mais solos impermeáveis? Será que estamos a seguir um modelo de urbanização adequado às alterações climáticas? Elas existem e depois quando ocorrem, morrem pessoas, perde-se património e quem é responsável? Portanto, ou seja, a adaptação às alterações climáticas vem por evidência à fragilidade que nós temos. Temos um planeamento reativo? É realmente difícil a programação e põe em evidência que temos territórios, sejam urbanos ou rurais, muito pouco adaptados às alterações climáticas.Lisboa está a fazer várias obras relacionadas com o plano de drenagem...É um caminho atrasado, mas é um caminho... Bom, é uma solução de engenharia hidráulica extremamente cara, pode ser que seja a solução. É uma solução bastante interessante do ponto de vista das soluções com base na natureza, e ao mesmo tempo é uma solução um bocadinho hidráulica demais, na minha opinião, a concessão é um custo muito elevado. Será que não havia outras opções?As mudanças climáticas provocam vários tipos de pressão...As alterações climáticas colocam em evidência uma coisa muito terrível, que é a falta de equidade. Quem é que sofre com a pobreza energética que tanto se fala? São os mais pobres. São aqueles que não têm capacidade de arrefecer nem aquecer a casa, são os que têm humidade dentro de casa e não conseguem resolver, são, enfim, grande parte da nossa população, infelizmente. O que é preciso fazer para alterar essa situação?Não estamos a fazer a leitura integrada e estamos focados em resolver um problema. Se ele não for resolvido de forma integrada, estamos a criar outro. Eu não sei se, ao resolver de uma forma rápida a habitação, não estamos a aumentar cheias. Sinto falta do foco da gestão integrada, no ambiente, sinto falta dessa discussão. A discussão é sempre para resolver problemas emergentes. O imediato. O imediato, que é o que dá votos, com certeza, e é o que as pessoas sentem, não é?Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer..Se olhar para os meus avós, vivo muito melhor do que eles. Pronto, depende das famílias, mas em geral, a família portuguesa média, os meus avós, que, entretanto, já faleceram com 80, 90 anos, eram pessoas que trabalhavam no campo, que sofriam bastante, que tinham restrições alimentares. Ou seja, quando olhamos para a população portuguesa nos últimos anos, sobretudo em democracia, tem um avanço brutal. Não tenhamos dúvidas, em termos de tudo, de acesso à habitação, à comida, de direitos. Portanto, não vejo isso desta forma tão catastrofista. Nós, na verdade, só tínhamos um ordenamento do território a funcionar, na verdade, desde os anos 80. A Dinamarca tem desde os anos 60. A Inglaterra, sempre teve... Quer dizer, há aqui uma decalagem que leva o seu tempo.É esse o futuro?Tendo em consideração os instrumentos que temos, os recursos que temos, há, efetivamente, e sabendo já a experiência, desde os anos 80 até hoje, que há muitas coisas que estão a falhar e que já estão identificadas porque falham, aí sim, nós temos uma urgência em tornar os nossos planos mais flexíveis. Repare, flexíveis não é deixar construir onde queremos. Pelo contrário, a flexibilidade vai trazer maior responsabilidade. Portanto, se nós queremos ter um território mais adaptado às ondas de calor, mais adaptado às chuvas intensas, trabalhar com as soluções que vão mais à natureza, ter parques mais adaptados para as pessoas poderem circular, andar, ter a agricultura mais próxima da cidade... Nós já temos isso tudo identificado.Um caminho difícil de seguir...Não podemos ter planos diretores municipais, que são feitos pelos municípios, a irem aos serviços centrais e levarem três anos para fazer uma comissão de serviços. É uma coisa que se faz de um dia para o outro. É uma coisa que se faz de um mês para o outro. E para este caminho existir, nós temos que verdadeiramente envolver as pessoas, torná-las mais interventivas no espaço público, na cidade, no território.Referiu a questão dos resíduos. Portugal tem feito progressos?A maior parte das pessoas não reciclam, metem tudo no contentor normal. Há uma falta de cultura de reciclagem, apesar de nós educarmos os miúdos etc, portanto não sei se estamos a ensinar bem a educação ambiental. As pessoas têm de mudar de atitudes e comportamentos. .Cidade dos 15 minutos vai ser um conceito possível em Lisboa.É possível arrefecer Lisboa? Um grupo de especialistas acredita que sim e vai propor soluções