Os encontros corporizaram-se na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, com moderação de João Gouveia Monteiro, professor catedrático na mesma universidade, onde leciona História Militar e História das Religiões. A visita conduzida aos últimos 50 anos contou, entre outros, com os contributos de Helena Roseta, Maria Vlachou, Joaquim Furtado, António Leuschener e Manuela Cruzeiro. O produto dos encontros verteu para o livro Portugal 50 Anos Depois do 25 de Abril (edição Manuscrito), obra com direção científica de João Gouveia Monteiro. O livro “compara o Portugal de 1973 com o Portugal de 2023 em diversos domínios, da demografia à comunicação social, dos direitos individuais ao envelhecimento e à saúde mental, da condição dos jovens à cultura e ao ensino”, sublinha o investigador integrado no Centro de História da Sociedade e da Cultura. Pretexto para uma conversa com o também diretor da Academia para o Encontro de Culturas e Religiões. Abre o livro a elencar “10 grandes conquistas do 25 de Abril”. Os 50 anos volvidos sobre a Revolução tendem a esboroar a memória destas conquistas. Os mais jovens darão, eventualmente, por adquiridas essas conquistas sem equacionarem o que representam no quotidiano. Quer recordar-nos algumas dessas conquistas?Hoje todos os cidadãos têm direitos civis, políticos, sociais e deveres iguais. E já ninguém pode ser discriminado negativamente em resultado da sua raça, sexo, credo religioso ou opção política. Todos podemos exprimir livremente as nossas opiniões sem o risco de sermos censurados. Podemos integrar partidos políticos e associações de diverso tipo. E temos direito a votar livremente para eleger os nossos governantes nacionais e locais. A escolaridade obrigatória alargou-se de seis para 12 anos e democratizou-se, pelo que o número de analfabetos é quase residual [3%, contra os mais de 25% em 1973] e temos hoje cinco vezes mais diplomados com o Ensino Superior. Há igualdade de personalidade jurídica entre homens e mulheres. Estas, só votavam se tivessem o Ensino Secundário e precisavam de autorização do marido para se deslocarem ao estrangeiro. Os cônjuges têm direitos equivalentes e já não há “filhos ilegítimos”. A jornada semanal de trabalho foi reduzida de 48 para 35 horas, passámos a ter direito a férias pagas, surgiram o Subsídio de Desemprego, o 13.º mês e o Rendimento Mínimo Garantido, e alargou-se muito a Licença de Maternidade. Criou-se o precioso Serviço Nacional de Saúde, democratizou-se o acesso à Justiça e passou a haver sindicatos livres e direito à greve. Last but not least, foi posto fim à Guerra Colonial que flagelava os nossos jovens e que conduziu à morte de quase 8300 em Angola, Guiné e Moçambique, para além dos estropiados e doentes de vária ordem. Convenhamos que não foi nada pouco..Na tertúlia que dedicaram à Demografia e Ordenamento do Território afirma: “A distribuição da população é de tal maneira desigual que cria um cenário desolador a todos os níveis. Penso que nós temos de olhar seriamente para isso e perceber como podemos homenagear o 25 de Abril.” Como podemos prestar essa homenagem quando para este tema concorrem tão diversos fatores?Em primeiro lugar, devemos trazer a questão da desertificação do interior para o primeiro plano do debate público. Temos hoje 82,5% da população a viver em perto de 20% do território. Isso acrescenta muita desigualdade às outras desigualdades. Em segundo lugar, devemos entender-nos sobre como desenvolver o território à escala nacional. De que modo? Repensando o nosso modelo económico, redefinindo a nossa política de infraestruturas e comunicações, combatendo a macrocefalia cultural e institucional, criando oportunidades de vida nas regiões mais afastadas do litoral, em vez de encerrar escolas e serviços públicos. Enfim, encontrando um modelo de regionalização que devolva coerência, solidariedade e harmonia ao todo nacional. Diversos países europeus sem frente marítima, ou quase sem esta, têm níveis de desenvolvimento altíssimos. E o congestionamento dos centros urbanos também traz problemas graves, não só em termos ambientais, mas até em matéria financeira. Já consome 1% do PIB na União Europeia. Note-se que repensar tudo isto também é “desenvolver”..Nessa mesma tertúlia abordaram a questão da imigração. Uma vez mais, estamos perante uma questão complexa. Sem lhe pedir fórmulas mágicas, qual é, em seu entender, a abordagem mais sensata ao tema?Antes de mais, reconhecer que a imigração não é um fardo. É crucial para travar o envelhecimento demográfico, contribui para a mão-de-obra ativa, sobretudo em certos setores, e para a sustentabilidade da Segurança Social. Lembro que nós estamos numa situação de desequilíbrio demográfico delicadíssima, pois neste momento Portugal já integra a lista restrita dos dez países mais envelhecidos do mundo. Temos menos de metade da percentagem de jovens que tínhamos em 1973, e o número de idosos cresceu de 9,8 para 23,7%. O índice de filhos por mulher já está abaixo do limite mínimo de 2,1 que garante o equilíbrio demográfico. Ora, lembremo-nos de que em 2022 os filhos de mãe estrangeira nascidos em Portugal representaram 17% do total de bebés. Nós precisamos da imigração, não temos futuro sem ela, como muito bem demonstraram os professores Diogo de Abreu e Eduardo Anselmo. Mas também não devemos receá-la. Na minha opinião, o segredo está em três coisas. Primeiro, em perceber que não podemos acolher toda a gente, temos de ter regras e limites para isto, de outro modo seria incomportável. Em segundo lugar, como explicou o professor Eduardo Anselmo, devemos privilegiar uma imigração qualificada nas áreas técnico-económicas onde temos mais carência, e de preferência oriunda de países latino-americanos, porque isso facilita a integração social e cultural. Em terceiro lugar, temos de garantir um acolhimento digno a essas famílias de imigrantes, ao contrário do que por vezes sucede e nos tem chocado a todos. Repare que o desenvolvimento do interior também pode beneficiar muito com a chegada de imigrantes, aliás isso já se está a notar em algumas zonas..Olhemos para a tertúlia Ser Jovem em Portugal na sua relação com a Educação e Formação. Aí ligaram o tema a duas questões prementes: a habitação e a empregabilidade. Quer, sucintamente, analisar as conclusões a que chegaram?Sim, na minha opinião os dois problemas mais graves da nossa juventude são o do acesso ao primeiro emprego e à habitação. 34% dos nossos jovens que está já a trabalhar recebe o salário mínimo. Como explicou o professor Paulo Marques, 65% dos nossos contratos de trabalho temporários são involuntários, ao contrário da média da União Europeia [28%]. O salário mensal dos nossos jovens, calibrado com o respetivo poder de compra, é apenas 33% do dos jovens suíços e 55% do da média europeia. A tentação é, pois, emigrar. Para contrariar isto será preciso corrigir o nosso modelo de desenvolvimento económico, nomeadamente alterar o perfil de especialização que temos, muito centrado em setores como o Turismo ou o Imobiliário, que pagam relativamente mal e têm baixos índices de conhecimento intensivo. Não basta aumentar as qualificações escolares e as exportações, é preciso que isso seja combinado com o crescimento dos setores económicos mais intensivos em conhecimento e com uma estratégia regulatória mais eficaz. Uma maior aposta no ambiente também pode ajudar a encontrar soluções..Falou do trabalho, falemos da habitação.Outro problema grave. Sobre este tema a arquiteta Helena Roseta falou com grande conhecimento de causa no decorrer da tertúlia. É curioso notar que, em 1974, em Portugal, faltava meio milhão de casas, tínhamos era muitas barracas e “ilhas”. Hoje temos mais de um milhão de casas a mais, muitas das quais são residências secundárias e fogos vagos ou devolutos. Portanto, o nosso problema atual é menos a construção e mais a distribuição. Também aqui notamos o contraste entre o litoral e o interior, onde há muita habitação vaga. Um dos dados mais chocantes é que temos muito pouca habitação pública [cerca de 2%], enquanto em diversos países da União Europeia esse índice ultrapassa os 30%. A globalização financeira dos mercados, como é exemplo os Vistos Gold e o Alojamento Local vieram colocar novos desafios. É preciso saber responder-lhes de forma mais incisiva e completa. Exige-se um Porta 65 Jovem mais alargado e versátil e um Programa Nacional de Alojamento para o Ensino Superior eficaz. Há igualmente que tirar partido da revolução tecnológica, reinventar o modelo cooperativo e reduzir a cultura burocrática, que complica tudo..A propósito do debate sobre Literacia, Cultura e Artes há a reter a alusão ao inquérito conduzido pela Fundação Calouste Gulbenkian que indica que dois terços, aproximadamente, dos inquiridos declaravam que já tinham aprendido tudo aquilo que precisavam de aprender na vida. Preferiam o imediatismo da informação. Que reflexão lhe trazem estes números?Os hábitos culturais mudaram muito. E não é fácil contrariar isso, numa época em que se descarregam 500 horas de vídeo por minuto no YouTube, 66 mil fotos por minuto no Instagram e 1,7 milhões de posts no Facebook. Em Portugal, 79% das fontes de notícias já são online, incluindo as redes sociais. A professora Clara Almeida Santos explicou tudo isto na tertúlia dedicada à comunicação social. Os hábitos de leitura convencional ressentiram-se, de facto. Sabemos que, no ano de 2021, 61% dos portugueses não leram um único livro. E eu, sendo professor, sei que isso acarreta consequências ao nível da expressão escrita e até oral. Se tivermos também em conta que a escola formata demasiado os jovens para a obtenção de resultados imediatos e que a programação televisiva é aquilo que é, chegamos a resultados como aquele que citou. Falta estimular a aprendizagem permanente. E reservar às artes o lugar que elas efetivamente merecem, como território de liberdade por excelência que são, como bem explicou o professor Abílio Hernandez..Na tertúlia Jornalismo, Fake News e Redes Sociais o jornalista Joaquim Furtado levou a debate uma frase do norte-americano Timothy Harbinger: “As pessoas esquecem, fingem que se esquecem, acomodam mentiras como se fossem verdades”. O direito a uma informação livre e plural foi uma das grandes conquistas de Abril. Teme que o contexto atual de desinformação nos esteja a empurrar para um abismo com consequências imprevisíveis?Há esse perigo relevante, porque a comunicação social é um esteio vital das democracias. Os progressos tecnológicos colocam novos desafios e temos de estar preparados para os enfrentar. Como também disseram o Joaquim Furtado e a Clara Almeida Santos, o desafio principal consistirá em perseguirmos sempre a verdade, mesmo que não saibamos muito bem qual é. Precisamos de saber identificar os diversos tipos de manipulações e “desordens informativas” e de aprofundar os sistemas de fact checking, que de resto já existem em alguns órgãos de comunicação social. Também é preciso sabermos ‘educar’ - e eu diria até: enganar - os algoritmos da IA, para não recebermos apenas a informação que mais nos convém, poupando-nos assim a uma visão abrangente do mundo e dos seus problemas. A valorização e diversidade dos conteúdos informativos também é importante para contrariar o fenómeno de news avoidance, que já é bem evidente no seio das gerações emergentes. Tudo isto é essencial para salvar a nossa democracia - não esqueçamos que, como disse o Joaquim Furtado, o jornalismo é a única profissão que tem por objeto a verdade..O que presidiu ao facto de juntarem na mesma tertúlia Saúde Mental e Envelhecimento?Os dois temas estão bastante interligados, e a prova disso é o curriculum de um dos nossos convidados, o professor António Leuschner. O envelhecimento potencia uma série de fatores que podem ser perturbadores da saúde mental: isolamento, solidão, sentimento de aproximação do fim, sofrimento físico ou doença, ausência de contributo social positivo, sensação de inutilidade e/ou de falta de reconhecimento pelo que se deu à sociedade, perda de amigos e familiares próximos. Precisamos de saber envelhecer. Felizmente, as pessoas vivem cada vez mais. Como lembrou a professora Margarida Pedroso de Lima, hoje, pela primeira vez na História, a maioria pode esperar viver 80 anos ou mais. Mas não basta “sobreviver”, é preciso assegurar um envelhecimento saudável. Como? Desde logo, quebrando os preconceitos relativamente ao “idadismo”, tanto mais que “envelhecer é viver” e, em boa verdade, nós começamos a envelhecer desde que nascemos. É preciso perceber que há crescimento e senescência em todas as fases da vida; que aprendemos sempre; que a felicidade, a saúde e a paixão pela vida, nos idosos, depende em 75% de fatores que podemos prevenir e só em 25% do nosso material genético. Importa, pois, ter uma visão integrada dos cuidados de saúde, e aqui devo dizer que 63% dos mais velhos não recebe ainda o apoio necessário..O termo utopia é vasto e complexo. Olhemo-lo como tendente a apontar para a sociedade ideal, consideravelmente melhor do que aquela de que fruímos. Dedicaram a última tertúlia do ciclo ao tema Utopias: A Liberdade: O Tempo. Que significado teve este encerramento?O tema que citou permitiu um grand final do nosso ciclo de tertúlias. Depois de tanta discussão em torno do tema do 25 de Abril de 1974, impunha-se refletir sobre o que é uma “revolução” e qual o seu lugar na história. E, para isso, ninguém melhor do que a dra. Manuela Cruzeiro. Por outro lado, quisemos olhar para a frente e perceber o que é que - dentro da herança espiritual do Movimento dos Capitães - nos pode ajudar a construir o futuro. E uma dessas dimensões é, certamente, a do lugar e do papel da “utopia”, como explicou o professor André Barata. Porque as utopias servem precisamente para que não deixemos de caminhar rumo a um lugar que não existe, mas que serve como horizonte a perseguir e onde possamos responder à exigente pergunta de Roland Barthes: “Como é que vamos viver juntos?” Porque é quase sempre disso, e sobretudo disso, que se trata. Ora, eu acho que esse espírito, essa ousadia, esteve muito presente na madrugada libertadora de 25 de Abril de 1974, em que os militares saíram à rua sem saberem se, nos outros quartéis, todos cumpririam a sua parte do plano. Arriscaram, com isso, as suas vidas e as suas carreiras. Fizeram-no por Portugal. Acho que nos cabe a nós fazer agora o que nos compete. Afinal, como creio ter dito um dia Winston Churchill: “We make a living by what we get, but we make a life by what we give” [“Vivemos com o que recebemos, mas marcamos a vida com o que damos”, numa tradução livre].