Investigadoras Nádia Pinto e Catarina Xavier, do grupo de Genética Populacional e Evolução do i3S
Investigadoras Nádia Pinto e Catarina Xavier, do grupo de Genética Populacional e Evolução do i3SDR

Investigadoras portuguesas trabalham em nova tecnologia que promete revolucionar a investigação de crimes sexuais

Um dos maiores desafios da genética forense em crimes sexuais é distinguir o ADN de diferentes pessoas numa mesma amostra. Um novo projeto europeu com participação portuguesa procura criar tecnologia para resolver essa limitação.
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A prova biológica é decisiva em muitos casos de crimes sexuais, mas a análise de ADN pode falhar quando as células da vítima e do agressor aparecem misturadas, originando resultados confusos. Como consequência, a investigação perde força e a justiça pode ficar por fazer.

No i3S, Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, as investigadoras Catarina Xavier e Nádia Pinto, do grupo de Genética Populacional e Evolução, trabalham num novo projeto europeu que pretende resolver este que é um dos maiores desafios da genética forense: a análise de amostras de ADN que contêm material biológico misturado de vítima e agressor. O consórcio internacional que integram, chamado CapCell, acaba de receber 4.5 milhões de euros do programa Horizonte Europa, através do cluster CL3 Civil Security for Society.

O objetivo do projeto é desenvolver métodos e ferramentas que permitam separar células individuais numa amostra biológica, algo essencial quando há mistura de contribuintes. Este problema é especialmente relevante em crimes sexuais, cuja incidência tem vindo a aumentar nos últimos anos – uma em cada seis mulheres adultas na União Europeia já sofreu algum tipo de violência sexual de acordo com o inquérito da UE sobre violência de género, realizado entre 2020 e 2024 pelo Eurostat (o serviço de estatística da UE), pela Agência da UE para os Direitos Fundamentais (FRA) e pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE).

Ora, estes crimes, muitas vezes silenciosos e difíceis de provar, deixam vítimas e autoridades numa luta constante por justiça. Atualmente, a investigação criminal enfrenta limitações significativas quando tenta analisar vestígios biológicos mistos, como células de pele, saliva, sangue ou fluídos corporais deixados durante a agressão.

“Os métodos forenses ainda têm dificuldade em separar e analisar vestígios biológicos quando contêm células de vários contribuintes ou quando as provas são escassas ou degradadas”, explica a investigadora Nádia Pinto. Nestes casos, os laboratórios obtêm perfis genéticos pouco claros, que muitas vezes não podem ser apresentados em tribunal. Isso contribui para o arquivamento de processos e dificulta a identificação de agressores.

Para ultrapassar estas limitações, o projeto CapCell – que envolve 13 parceiros de oito países e é coordenado pela Universidade de Maastricht – vai recorrer a tecnologias de microfluídica, que permite manipular quantidades muito pequenas de líquido para separar células individuais, e genómica de célula única, uma técnica que analisa o ADN de cada célula em separado em vez de tratar toda a amostra como um conjunto misturado.

A combinação destas técnicas permite trabalhar com quantidades muito pequenas de ADN e analisar célula a célula, evitando a sobreposição de material genético de diferentes indivíduos. Segundo Catarina Xavier, esta abordagem poderá permitir “identificar autores de crimes em casos em que os métodos convencionais continuam a falhar”.

Mas a tecnologia precisa de protocolos próprios, adaptados ao uso forense, que garantam resultados sólidos o suficiente para serem aceites em tribunal. “Estamos a desenvolver protocolos de sequenciação, pipelines de análise de dados e diretrizes de interpretação ajustadas às especificações de célula única”, acrescenta.

Uma das metas do CapCell é criar um kit móvel capaz de capturar, separar, isolar, sequenciar e interpretar células individuais de forma integrada. De acordo com Nádia Pinto, este será “o primeiro sistema forense modular capaz de extrair e analisar células únicas a partir de provas de misturas de ADN, permitindo gerar perfis de ADN de fonte única mesmo a partir de amostras altamente complexas”. Uma vez validado, o kit poderá ser usado por institutos forenses e autoridades policiais em toda a Europa.

Dentro do consórcio internacional, a equipa do i3S irá co-liderar uma parte do trabalho, juntamente com o Instituto Forense dos Países Baixos, dedicado à análise e interpretação de dados. A vasta experiência do grupo de Genética Populacional e Evolução do i3S, em particular na “análise estatística de misturas e na conceção de pipelines bioinformáticos para a análise de dados de sequenciação de nova geração segundo critérios forenses, será uma contribuição valiosa para o consórcio”, sublinha Catarina Xavier.

Com este projeto, que correrá até setembro de 2029, os investigadores pretendem garantir que cada célula possa finalmente contar a sua própria história e que a justiça tenha, por fim, meios para a validar.

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