Ao fim de quatro anos de investigação sobre as redes de partilha ilegal de jornais e revistas, em plataformas como o Telegram ou o Whatsapp, foram finalmente constituídos dois arguidos, apurou o DN junto de fonte judicial..Em causa estão os crimes de acesso ilegítimo e usurpação de conteúdos jornalísticos abrangidos por direitos de autor, que lesam em perto de 50 milhões de euros anuais as empresas detentoras de títulos de imprensa e, assim, todos os seus trabalhadores, subtraindo-lhes a justa remuneração pelo seu trabalho e investimento..Em Portugal, é a primeira vez que a Polícia Judiciária (PJ) teve em mãos um inquérito desta natureza, tendo conseguido chegar aos alegados distribuidores iniciais das partilhas dos ficheiros PDF e identificar um dos grupos que operavam no Telegram..O processo foi instaurado na sequência de duas queixas-crime apresentadas pelo Sindicato dos Jornalistas e pela Revista Sábado, em 2020, ao abrigo do Código dos Direitos de Autor e do Código dos Direitos Conexos ..O inquérito, que decorreu na 5ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), foi da responsabilidade da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica (UNC3T) estará concluído há cerca de cinco meses e seguiu para o Ministério Público com proposta de acusação. No entanto, ainda não foi deduzida a acusação..Questionada pelo DN sobre o andamento do processo, a Procuradoria Geral da República informou que o “inquérito prossegue a investigação, não tendo conhecido despacho final”..Da parte da PJ, a orientação é para dar prioridade a estes casos. “Temos esta questão como sendo de grande importância para a Imprensa, pelo que está a haver um grande esforço das autoridades, nomeadamente da Polícia Judiciária, para mitigar o problema, identificar os autores e alargar as investigações”, disse ao DN fonte oficial da PJ, garantindo que “isto é só o começo”..Driblar a lei.Esta prática criminosa está disseminada a nível mundial e, pelo menos até agora, parece haver sempre uma escapatória para os infratores nos sinuosos e obscuros meandros da tecnologia e das plataformas sem rosto..Com efeito, já em novembro de 2021 o Tribunal da Propriedade Intelectual, de Lisboa, tinha ordenado ao Telegram (plataforma de troca de mensagens e ficheiros online) que bloqueasse nada mais nada menos do que 17 grupos e canais de partilha ilegal de jornais, revistas e filmes, com mais de 10 milhões de utilizadores, sobretudo em Portugal e no Brasil, mas também noutros países de língua oficial portuguesa..Aquela ordem foi uma resposta - à boleia de uma decisão judicial no Brasil - ao pedido de uma providência cautelar feito pela cooperativa Visapress (Gestão de Conteúdos dos Media) e pela GEDIPE (Associação para a Gestão de Direitos de Autor, Produtores e Editores), que são as entidades responsáveis pela gestão coletiva dos direitos de autor e direitos conexos de proprietários e produtores de conteúdos audiovisuais. Foi então possível encerrar 11 canais que operavam em Portugal dentro da rede Telegram..Mas a realidade não se alterou substancialmente e “as partilhas ilegais de ficheiros com conteúdos editoriais continuaram a proliferar como cogumelos”, comentou ao DN uma fonte que acompanhou o processo..Em primeiro lugar, porque estamos a lidar com uma plataforma sem rosto, com sede no Dubai, e que nem respondeu à notificação do tribunal. Só no final do ano passado foi possível notificar o Telegram nos Emirados Árabes Unidos, soube o DN..Depois, porque existem maneiras de a atividade criminosa continuar, pela ausência de barreiras tecnológicas da Google aos grupos bloqueados, referem as mesmas fontes, mesmo que este seja um crime punível com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias..Na génese do Telegram estiveram dois indivíduos russos, conhecidos como “irmãos Pavlov”, que começaram por usar a aplicação para trocar informações críticas sobre o regime de Vladimir Putin, com maiores garantias de encriptação, tendo posteriormente ganho uma projeção mundial, como meio de troca de ficheiros com os mais diversos fins..No caso português estavam em causa, aquando da queixa-crime, oito grupos organizados ou canais de partilhas de jornais e revistas e nove grupos para partilha de conteúdos audiovisuais, música e filmes. Mais de 100 mil pessoas recebiam ou recebem de forma gratuita aqueles conteúdos..Num só grupo “Jornais e Revistas PT” estão inscritas 43 mil pessoas, entre as quais se incluem ou incluíam um conjunto alargado de figuras públicas como políticos, empresários, padres, militares e treinadores de futebol..“Quando se está também inscrito no Telegram como estive, para investigar, consegue-se ver o fluxo de visitantes, e até mesmo, em alguns casos, quem são as pessoas e a que horas estiveram ativas a ver e a descarregar os jornais e revistas partilhados”, contou ao DN uma fonte que acompanhou o processo..Jornais são isco para IPTV.“Mas que não haja dúvidas, quem organiza estas redes não está interessada na disseminação de conhecimento e cultura: os jornais servem como isco para angariar clientes para o seu negócio principal que é o IPTV”, explica o diretor-executivo da Visapress, Carlos Eugénio..No meio das mensagens de partilha surge frequentemente o aliciamento para, por uma baixa quantia, comprar o código de acesso a plataformas de streaming como a Netflix ou a HBO, a Sport TV ou a Eurosport, entre outros..Outros grupos encarregam-se, entretanto, de formar novas comunidades e partilhar estes conteúdos via Whatsapp, que acabam por chegar a quase toda a gente, através de um amigo que tem acesso à comunidade e partilha os conteúdos com os seus mais próximos, o que parece apenas um gesto generoso. Quem lê como destinatário final não incorre em crime, mas convém saber que está no extremo de uma cadeia criminosa, visto que a partilha inicial constitui crime punível com pena de prisão..No total são 88 as publicações editoriais partilhadas por dia em Portugal, que, segundo um estudo da Visapress, causam um prejuízo mensal da ordem dos 3,6 milhões de euros mensais ao setor, disse ao DN o seu diretor executivo..Esta estimativa já parte do princípio de que nem todas as pessoas que recebem as edições por esta via seriam compradoras de jornais em papel ou por assinatura digital, especifica aquele responsável..“É um volume muito significativo e um dano inegável”, diz Carlos Eugénio. E vem somar-se à crise global que a imprensa atravessa, pela concorrência desleal das plataformas tecnológicas como a Google, que difundem os seus conteúdos editoriais como se estes não tivessem um real custo de produção..Nos primórdios da era digital, os jornais de todo o mundo avaliaram mal as consequências de abrirem os seus conteúdos online, tendo acabado por criar um hábito ilusório de que o acesso à informação de qualidade é um direito grátis, admite o diretor-executivo da Visapress..É um caminho que começou, entretanto, a ser corrigido com a cobrança pelos conteúdos exclusivos - de que é também exemplo recente o DN. Mas o que os dados indicam, como concluiu um estudo do Reuters Institute, “é que o digital ainda não foi capaz de compensar a acentuada quebra de vendas dos jornais em papel, que sempre representou o grosso das suas receitas”..E, como se não bastasse, “a pirataria está a roubar-nos tanto o mercado que resta do papel como o digital”. Ou seja, “há uma parte do negócio digital que fica no mercado paralelo”, conclui o porta-voz dos editores portugueses..Os estudos indicam igualmente que “existe predisposição dos consumidores para comprar e consumir, mas o valor que estão dispostos a gastar mensalmente em assinatura digital é inferior ao que estavam dispostos a gastar em papel”..Para esta crença contribuiu igualmente a proliferação de sites que pirateiam os jornais e revistas e que vivem literalmente às suas custas, copiando notícias feitas por jornalistas especializados, às vezes mudando apenas um pouco o título ou cortando o artigo, aponta o vice-presidente da Visapress..É um esquema perverso, pois, “à luz da lei, existe proteção sobre a obra, mas basta citar o órgão, ainda que só no último parágrafo, para já não constituir uma cópia”. Exemplos nesse sentido não faltam, como é o caso do notícias ao minuto ou o ardina.news, apontou o responsável. Este último já foi inclusivamente alvo de uma intervenção judicial e o seu acesso bloqueado..Mas, mais uma vez, no “faroeste” digital em que vivemos, aquele site continua a usar o mesmo ISP (Internet Service Provider). “Será sempre uma luta, porque a pirataria nunca vai acabar totalmente”, admitem os agentes deste setor..Investigação é esperança.Seja como for, o presidente do Sindicato dos Jornalistas - autor da queixa-crime à PJ e PGR - considera que, com a investigação ao crime de usurpação de jornais “podemos estar perante a melhor notícia dos últimos tempos para a imprensa”..Luís Simões lamenta que durante todo este tempo “este roubo tenha sido tratado com displicência, como se não fosse o crime que é, mesmo com os jornais a viverem uma crise sem precedentes, que ameaça o pluralismo e a democracia”. O jornalista e investigador diz ainda que “temos andado todos muito preocupados com o financiamento do setor e subestimámos este assunto que é da maior importância”..A investigação ao crime de usurpação não será, no entanto, o bastante para resolver os problemas estruturais do setor. O que podem e devem as empresas, os governos e as entidades com competências no setor fazer?.Há quem defenda medidas de autoproteção, como deixar de partilhar PDF com as aplicações e substituí-los por um link html. O porta-voz da Visapress considera que há que ir mais longe na responsabilização das grandes plataformas tecnológicas pela ilicitude que permitem, escudando-se oportunisticamente na liberdade de expressão..“Tem de haver limites à liberdade de expressão, quando essa liberdade atenta contra os direitos de outros”, defendeu. Percebe-se que não seja do seu interesse impor barreiras a estas práticas, porque quanto maior for o tráfego das máquinas, com os PDF’s e outros conteúdos, mais visualizações e receitas geram aquelas multinacionais. Por outro lado, os hábitos de consumo e os próprios conteúdos editoriais são um valioso contributo para as ferramentas de IA (Inteligência Artificial) das mesmas plataformas, observa o responsável..Carlos Eugénio aponta igualmente baterias às empresas de clipping que fornecem jornais e revistas em formato PDF a empresas e entidades públicas, por atacado, sem que os destinatários paguem o devido valor de acesso..Tal como o Governo, a Assembleia da República é um dos clientes. E foi dali mesmo que saiu em 2021 uma recomendação ao Governo para combater a pirataria de publicações jornalísticas, propondo o lançamento de uma campanha nacional, a criação de mecanismos de proteção e fiscalização e adoção de um código de conduta de boas práticas no acesso a peças noticiosas, bem como o recurso apenas a empresas de seleção licenciadas, entre outras medidas..Mas “sem uma ética e uma consciencialização da importância de consumir e de pagar uma informação de qualidade e credível, podemos caminhar para um mundo de desinformação e empobrecimento intelectual, cívico e democrático”, concordam as fontes ouvidas pelo DN.