SEF. "Já tivemos passageiros que comem lâmpadas fluorescentes para não saírem do país"
Os inspetores Bruno Valadares Sousa, Duarte Laja e Luís Filipe Silva, acusados da morte do cidadão ucraniano a 12 de março de 2020 no Centro de Instalação Temporária no aeroporto de Lisboa, começaram esta segunda-feira a ser julgados no campus de justiça, em Lisboa.
Os três prestaram declarações e apresentaram ao coletivo de juízes, presidido pelo magistrado Rui Coelho, a sua versão do que aconteceu na exígua divisão do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do SEF, designada como "sala dos Médicos do Mundo", onde morreu Ihor Homeniuk, quando estava sob custódia deste serviço de segurança.
Luís Silva - aquele que foi filmado pelas câmaras de videovigilância a entrar na sala empunhando um bastão extensível - contou que "pelas oito da manhã" recebeu "uma comunicação do seu diretor (Sérgio Henriques, Diretor de Fronteiras de Lisboa, demitido a 30 de março, depois da PJ ter detido os três inspetores e alvo de um processo disciplinar da Inspeção-Geral da Administração Interna - IGAI) a solicitar para a necessidade de uma equipa de se deslocar ao CIT para proceder à algemagem de um cidadão que estava a ter um comportamento violento e destrutivo".
Segundo este inspetor, quando chegou, com Duarte Laja e Bruno Sousa, às referidas instalações, foram "alertados pelos seguranças que o cidadão era violento, que tinha havido tentativas de fuga, que tinha atirado com um sofá contra um deles e que gostava de morder".
Perante esta descrição, frisou, "preparámo-nos para entrar na sala e precavemo-nos para uma ação violenta". Conta que "o passageiro estava atado com fita-cola de pés e mãos", afirma, acrescentando que lhe colocaram algemas metálicas, retirando a fita-cola. "Durante todo o tempo, o cidadão tentava pontapear-nos e gritava, extremamente agitado", disse.
"Temos muitas situações que podem descambar nesse tipo de procedimentos. Por exemplo os reclusos, quando ali chegam para ser expulsos e se apercebem que aquilo não é uma prisão, tentam tudo. Já tivemos passageiros que comem lâmpadas fluorescentes para não saírem do país", revelou.
Questionado pelo juiz sobre se usou o bastão para lhe bater, Luís Silva disse que "não houve necessidade" (na autópsia foram detetadas marcas no corpo de Ihor compatíveis com um bastão).
Inquirido sobre se viu sinais de que o homem tivesse sido antes alvo de agressões, Luís Filipe Silva diz que viu uma marca na testa e que Ihor Homeniuk estava exaltado e a gritar.
Nega que tenha dito aos seguranças "isto é para ninguém ver" quando entrou na sala, conforme diz a acusação do Ministério Público, com base nos testemunhos dos seguranças.
Questionado ainda pelo magistrado se não tinha reparado que Ihor teria as calças molhadas de urina e exalava esse cheiro, conforme é alegado na acusação do Ministério Público, Luís Silva negou. "Aquela sala tem um cheiro muito característico, tem uma casa de banho com um urinol, não me apercebi que esse cheiro fosse da pessoa, nem que estivesse molhado", afirmou.
Nem Duarte Laja, nem Bruno Sousa, notaram também essa situação, segundo afirmaram em tribunal.
O advogado da família de Ihor, José Gaspar Schwalbach, perguntou por que razão não foi pedido intérprete quando souberam que se tratava de um cidadão de origem ucraniana. "Naquela altura a comunicação já não era necessária, mas sim acautelar a integridade física do cidadão", respondeu.
Luís Silva acrescenta ainda que quando saíram da sala deixaram Ihor algemado e em posição lateral, deitado sobre o colchão em segurança e deixaram a chave das algemas com os seguranças "para que lhas tirassem quando ele se acalmasse".
O inspetor declarou que depois voltou ao seu posto de trabalho e que pelas 10.30 entrou em contacto com os seguranças por causa de outro assunto e perguntou como estava o passageiro, ao que responderam que estava calmo e que lhe tinham dado o pequeno-almoço. Foi para casa as 13:00 e nunca mais ouviu falar no assunto até ser chamado dia 30 para ser ouvido na Polícia Judiciária (PJ).
Bruno Valadares Sousa é o segundo inspetor do SEF a prestar declarações em tribunal esta terça-feira. "Quando chegámos ouvimos comentários dos seguranças que o passageiro era muito conflituoso, que era a pior pessoa que tinha passado pelo CIT e já lhes tinha tentado morder", contou.
Em declarações ao juiz, Bruno Sousa disse que quando se aproximou de Ihor Homeniuk, reparou que este tinha as mãos arroxeadas, que estavam atadas com fita-cola, bem como as pernas, dos tornozelos às canelas. "Ele estava a roçar os pulsos na parede a tentar libertar-se", refere o inspetor do SEF. Foi ele quem lhe pôs as algemas metálicas.
Segundo Bruno Sousa, não sabiam de nada sobre o que lhe tinha acontecido antes (a ida ao hospital). Questionado pelo juiz se lhe tinha batido, disse que "não havia necessidade de bater no homem, pois já estava numa posição de fragilidade. Não fazia sentido usar a violência. Senti que tinha forte necessidade de se fazer compreender, tentei com gestos, mas não consegui. A ideia era imobilizá-lo e deixá-lo em segurança".
A terminar, e questionado pelo advogado José Gaspar Schwalbach se quando entraram se aperceberam que Ihor Homeniuk teve medo, Bruno Sousa respondeu: "Ele não nos conhecia, nunca nos tinha visto, mas houve um sobressalto em reação à nossa entrada". Questionado pelo juiz se era normal cidadãos presos com fita adesiva, o inspetor afirmou que era a primeira vez que o via.
O último inspetor do SEF ouvido esta manhã foi Duarte Laja, que contou que foi chamado para ir ao Centro de Instalação Temporária "para resolver uma situação de urgência com um passageiro agressivo que estava a causar problemas". Diz que Luís Silva informou o então diretor de fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, que havia uma situação anómala no CIT.
Segundo Duarte Laja, "um dos seguranças disse-lhe que o passageiro era violento, agressivo e que tinha havido tentativas de fuga".
Quando entrou na sala, diz, detetou "três situações anómalas". "A primeira era que a sala não tinha nenhum mobililiário, a segunda era que o cidadão estava mais ou menos a meio da mesma, perto da casa de banho e a terceira era estava atado com fita adesiva, embora nas zonas das pernas já estivesse lassa".
Diz que viu marcas, escoriações na zona da testa e queixo, braços. Questionado pelo advogado da família de Ihor Homeniuk se disso tinha feito referência no seu relatório ao diretor, respondeu que se recorda de "ter feito referência a algumas lesões".
Todos os inspetores foram unânimes em afirmar que nunca foram informados do histórico de Ihor, nem que se encontrava no CIT há dois dias, nem que tinha ido ao hospital, ou sequer que não lhe tinha sido administrado um um medicamento prescrito pelo médico.
O juiz presidente do coletivo, Rui Coelho, deu a sessão por terminada esta terça-feira, pouco depois das 13:00, após ouvir os três inspetores acusados do homicídio de Ihor Homeniuk. Esta quarta-feira o julgamento é retomado com a audição de testemunhas - inspetores do SEF.
À chegada ao tribunal, esta terça-feira de manhã, Maria Manuel Candal, a advogada do inspetor Luís Filipe Silva disse, numa curta declaração aos jornalistas, que o seu "constituinte vai prestar declarações, à semelhança dos outros dois arguidos".
Segundo a acusação, os inspetores tiveram um comportamento desumano para com Homeniuk, provocando-lhe graves lesões corporais e psicológicas até à morte.
Os três arguidos estão em prisão domiciliária desde a sua detenção, em 30 de março de 2020, e respondem pela morte do cidadão quando este tentava entrar ilegalmente em Portugal, por via aérea, em 10 de março.
Para o Ministério Público (MP), os inspetores do SEF algemaram Homeniuk com os braços atrás do corpo e, desferindo-lhe socos, pontapés e pancadas com o bastão, atingiram-no em várias partes do corpo, designadamente, na caixa torácica, provocando a morte por asfixia mecânica.
A acusação critica os três arguidos e outros inspetores do SEF por terem feito tudo para omitir ao MP os factos que culminaram na morte do cidadão, no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, chegando ao ponto de informar o magistrado do MP que Homeniuk "foi acometido de doença súbita".
Considera o MP que as agressões provocaram a Homeniuk dores físicas, elevado sofrimento psicológico e dificuldades respiratórias, que lhe causaram a morte, em 12 de março.