Portugal continua a enfrentar o flagelo dos incêndios florestais sem conseguir dar uma resposta plenamente eficaz. O ataque inicial tornou-se mais rápido e coordenado, mas quando as ignições se transformam em grandes incêndios, o sistema revela falhas graves. A prevenção avança devagar e a repressão judicial ainda não consegue dissuadir nem travar a reincidência. Foram estas algumas das conclusões do podcast Soberania desta semana, um episódio totalmente aos incêndios, do ponto de vista da prevenção, combate, investigação criminal e repressão. A conversa contou também com a participação do Francisco Rodrigues, presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), parceiro deste podcast sobre segurança, defesa e justiça, juntamente com o João Annes, da SEDES.. Carlos Farinha, da Polícia Judiciária, alertou para a necessidade de reforçar a investigação criminal, lembrando que “continuamos a ter incendiários socialmente desvalidos, mas também incendiários competentes, que meditam e estudam as condições para que o efeito do incêndio seja maior”. Ricardo Vaz Alves, da GNR, sublinhou que 30% das causas estão ligadas ao uso negligente do fogo, 24% ao incendiarismo e 14% a causas naturais, salientando que dos 20 maiores fogos, os sete primeiros não tiveram como causa provável o incendiarismo. Defendendeu ainda a aposta na sensibilização das populações e maior responsabilização das autarquias, que nem sempre fazem tudo o que podiam.. Já António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, foi taxativo: “O sistema falhou.” Denunciou fragilidades no apoio logístico, lembrando que em plena pandemia houve recurso às Forças Armadas para garantir eficácia, mas no dispositivo de incêndios ainda se insiste em modelos “amadores”. André Fernandes, o antigo comandante nacional de Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), completou o diagnóstico alertando para a saida de especialistas da ANEPC e de falta de investimento nos grupos de apoio à decisão operacional. No seu entender, não basta ter meios de combate, é preciso conhecimento técnico, ciência aplicada ao território e de quadros especializados. Se olharmos normal climatológica, isto mudou completamente.Só que nós não mudámos a nossa cultura e a relação que temos com o fogo, porque o fogo faz parte da nossa matriz cultural”, vincou.. Os quatro especialistas convergem num ponto: Portugal precisa de uma estratégia integrada, sustentada, com mais planeamento , comando e controle e apoio logístico menos amador.PJ: “Vemos cada vez mais incendiários mais ‘competentes’”Temos estudado ao longo destes anos a questão dos perfis dos incendiários e temos verificado que há alguma evolução, mantendo-se alguma continuidade também, mas que há alguma evolução”, começou por dizer Carlos Farinha na sua intervenção no Podcast Soberania. “Continuamos a ter incendiários que são aquelas pessoas socialmente desvalidas ou com problemas de alcoolismo ou outros tipos de adições, mas vemos cada vez mais incendiários -eu não gosto de usar a expressão, mas não encontro outra - incendiários competentes, isto é, incendiários que meditam, incendiários que estudam as condições para que o efeito do incêndio seja maior, que seja mais difícil de combater, seja mais tardio na detecção. Enfim, temos incendiários mais elaborados, temos também incendiários reincidentes e de repetição. A maior parte das pessoas que temos detido, ou pelo menos parte significativa, são detidas por vários incêndios e, portanto, é um crime e uma atividade de repetição e tem uma determinação para acontecer mimética extraordinariamente forte”.. Farinha sublinhou que “um grande fogo não é necessariamente um grande crime” e descreveu o foco técnico das equipas de investigação: “Nós concentramos e focamo-nos no ponto de início e no ponto de início precisamos de saber quem é que esteve ali a determinada hora, se é que a origem foi de natureza humana. (…) Pode haver detenções em flagrante delito. Pode haver, como tem havido, detenções na sequência de desenvolvimento de investigações da conjugação de dados e de carrear prova para um processo.”Outro vetor de reforço foram os grupos de trabalho de redução de ignições: “Começaram por ser um e este ano passaram a cinco. Ainda que estejam ainda numa fase de implementação, (…) colaboram na triagem e na investigação das causas, auxiliam a GNR (…) e transmitem situações quando se justifica para os diferentes departamentos da PJ. Tem havido uma progressão na resposta policial.”. A relação com o sistema judicial foi abordada com dados. “Estamos neste momento em cerca de uma centena de pessoas detidas” por crimes relacionados com incêndios. E, quanto às medidas de coação, “não se pode dizer também que o sistema judicial não esteja a acolher porque temos uma percentagem que anda próximo dos 60% relativamente às nossas [promoções] de aplicação de medidas privativas. (…) Há cerca de uma semana andávamos 56,5%. No ano passado chegou aos 40%”, assinalou. No fecho, deixou o diagnóstico: “Não tenho dúvidas de que houve progressos na perseguição policial deste fenómeno. Mas o problema continua a avolumar-se e não vai ser resolvido apenas no plano da intervenção policial ou no plano de intervenção das condutas, ainda que também tenha que ser resolvido.”GNR: “A causa provável dos sete maiores fogos não foi incendiarismo”Quando abordou a questão das causas dos incêndios, o oficial da GNR apresentou dados que contrariam perceções de que o incendiarismo está a ser a principal causa dos incêndios em 2025 (segundo a Agência Integrada para a Gestão dos Fogos Rurais, em 2024 foi a principal, com 42% das ocorrências cuja causa foi determinada, destacando-se como o principal fator da área ardida - 84%): “Atualmente vamos com 4000 causas investigadas. Dessas 4000, cerca de 30% são do uso negligente do fogo. Depois, 24% são de incendiarismo e 14% causas acidentais.” E acrescentou: “O aspeto do incêndio não é a causa principal. Se atendermos - e eu dei-me ao trabalho de ver as 20 ocorrências com maior área ardida até ao momento - as sete maiores não têm como causa provável o incendiarismo. Estamos a falar, por exemplo, de confeção de alimentos. (…) As estatísticas dizem-nos que é uma probabilidade de 2%. É verdade. Mas acontece, infelizmente.Ricardo Vaz Alves começou por recordar que a fiscalização não se esgota na gestão de combustível (vulgo limpeza dos terrenos), como tantas vezes é percepcionado pela opinião pública. “É um bom tópico de análise, ainda que eu ache que é bastante redutor limitar o aspecto da fiscalização à questão da ausência de gestão de combustível. Portanto, a fiscalização tem um conjunto abrangente de práticas, neste caso, desde o mau uso do fogo, queimas, queimadas, fogueiras e também a ausência de gestão de combustível.” Com base na experiência recente, deu números que considera reveladores: “Iniciámos este projecto em 2017 e sinalizámos, à data, 23.000 terrenos em potencial infração. Números deste ano cifram-se à volta de 10.000 terrenos. Ou seja, há aqui já um trabalho de consciencialização por parte da população para a necessidade deste trabalho.”. O diretor do SEPNA explicou que nesta gestão de combustível, as entidades que atuam são diversas, desde a GNR à PSP. (…) . Sublinhou ainda que” há um aspeto relevante neste processo, que é o facto de as autarquias se poderem substituir aos proprietários, e que poderia e deveria também ser melhorado, agilizado. Como eu disse no início, notificamos às autarquias quais os terrenos em potencial infração. (…) Caso se mantenha incumprimento, a autarquia pode notificar os proprietários, usufrutuários, arrendatários a fazer essa gestão de combustível, dando-lhe um prazo no mínimo dez dias. Não fazendo, podem-se substituir aos proprietários e apresentar os encargos.” Questionado sobre se as autarquias não podiam ter um papel mais empenhado, Vaz Alves respondeu: “diria que em muitos caso não. É um aspeto que merece alguma correcção”.. Ricardo Vaz Alves recordou também a evolução institucional desde 2006: “Houve uma aposta significativa não só na questão da vigilância, da prevenção, da investigação. Recordo que o antigo corpo de guardas florestais transitou para a GNR. (…) Estamos a utilizar o método das evidências físicas para identificarmos o ponto de início e com isso desenvolvermos a investigação da causa, que é bastante importante.”Sublinhou ainda o papel operacional das equipas da GNR: “Temos atualmente cerca de 93% de sucesso no ataque helitransportado, ou seja, em cerca de 2800 intervenções que nós tivemos, houve um sucesso em cerca de 93%. (…) E depois as equipas de ataque ampliado, que também atuam em complemento, que são equipas altamente motivadas, treinadas, obedecem a uma doutrina comum de atuação, o que também entendemos que é importante”.“Não temos conseguido defender o nosso território”António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP), foi claro na sua análise ao sistema de combate aos incêndios: “Infelizmente, independentemente das opiniões que temos, não temos conseguido coletivamente defender o nosso território. E isso é a falha, não do país, mas da nação”. Para este dirigente ”temos que discutir a sério o combate, porque a prevenção vai demorar dez ou 15 anos ou 20 anos a fazer. Não estou a dizer que ela não está bem planeada, que está bem organizada, não é nada disso. O que estou a dizer é que não podemos continuar a aparecer com os planos municipais de emergência quando não são testados; em municípios que só se lembram que têm aldeias a meio dos fogos e a transformar os bombeiros, muitas das vezes, no elemento mais fácil da crítica, porque não aparecem. Esquecem-se de que não temos coesão territorial, porque continuamos a ter um litoral, porventura com mais de dois terços da população. Portanto, tudo isto tem que ser pensado de outra forma”.. Ao longo da sua intervenção, deixou várias críticas à forma como o modelo tem sido construído. Desde logo, o erro de tentar importar soluções do estrangeiro: “Eu já disse várias vezes: Portugal não pode importar modelos. Esqueça lá o modelo dos Estados Unidos, do Canadá, do Chile, da Austrália. Porque Portugal, mesmo no continente, no território que tem, um combate a um incêndio florestal na zona acima do Douro, entre o Douro e o Tejo e abaixo do Tejo tem técnicas e processos completamente diferentes. (…) Nós somos um pequeno país com muitas realidades diferentes e, portanto, precisamos de olhar para estas realidades, não importando modelos.”Assinalou também a falta de liderança e de comunicação. “Fiz uma pergunta à qual certamente não me vão responder. Em qualquer guerra, em qualquer cenário, há um rosto. Eu não tenho dúvida nenhuma que o representante de uma guerra, qualquer que ela seja, é o chefe de Estado-Maior General das forças em combate. E eu gostava de saber quem é agora, porque nós temos que saber quem é para poder perguntar a essa entidade, se de facto ele teve a possibilidade e a disponibilidade para assumir aquilo que aconteceu. Porque (é difícil) quando tenho cinco ou seis agências e entre dentro das agências cinco ou seis subcategorias e depois tenho os serviços municipais, serviços distritais e um serviço nacional...Tudo isto com uma falta de informação e comunicação”.. António Nunes lembra o período da pandemia: “Goste-se ou não se goste, vejam qual é a diferença de comunicação e está tudo explicado. Portanto, nós falhámos e não vale a pena esperar”. Completa dizendo que “o sistema falhou. (...) Conseguimos quase dizer o que é que vai acontecer amanhã em qualquer ponto do país. Melhorámos imenso na investigação das ocorrências. Melhorámos imenso na vigilância. Temos boas ideias para a prevenção e continuamos a falhar no combate, porque não é possível ter um país como o nosso em que haja incêndios com 11 dias. Peço imensa desculpa, mas nós não temos território para ter incêndios”.António Nunes alerta que, em 2024, o pior mês foi o de setembro e em 2017 mais de metade das pessoas morreram em outubro, apelando a uma “discussão desapaixonada” onde cada organização defendendo os seus interesses particulares, tenha uma visão de conjunto. (…) Estamos todos ao serviço dos cidadãos. E, no fim, o que conta é se conseguimos ou não defender o território e evitar que o país viva todos os verões com a mesma aflição”.“Houve algum decréscimo de investimento em especialistas na Proteção Civil”O antigo comandante da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), André Fernandes, foi perentório ao analisar o sistema nacional de prevenção e combate a incêndios: Portugal continua a reforçar meios, mas falha naquilo que é essencial - investir em especialistas e conhecimento técnico.“Neste ano já batemos aquilo que foi a área ardida no mesmo período temporal de 2017, com menos vítimas mortais e menos, danos em habitações. Portanto nem tudo está mau. Ou seja, tem havido também aqui um sucesso naquilo que são as ações de supressão e na defesa das populações e dos seus bens. Obviamente, na área ardida mudou ou subiu muito. Isto também tem a ver com a questão da ciência e da tecnologia. Se nos últimos anos pós 2017, houve um ímpeto muito grande, um investimento na especialização, até com a criação do Grupo de Análise do Uso do Fogo na Força Especial de Bombeiros de Proteção Civil, tal como alguma especialização no Instituto de Conservação da Natureza e Florestas. No entanto, no último ano e meio, dois anos, tem-se verificado algum decréscimo neste investimento. Porquê? Porque achávamos que se calhar, em termos de sistema, já estava ganho, porque tivemos alguns resultados intercalares positivo”, afirma.André Fernandes enquadrou o problema na mudança profunda do clima em Portugal e na forma como a cultura do fogo permanece desajustada à nova realidade.. “Nós hoje estamos numa situação em que uma camada base da nossa cultura mudou. Já falámos aqui da alteração climática e o clima, de facto, faz parte da nossa cultura. (…) Só que o clima mudou e mudou muito. Foram algumas variáveis de precipitação, a temperatura, a humidade relativa do ar, os ventos. (…) Só que nós não mudámos a nossa cultura e a relação que temos com o fogo, porque o fogo faz parte da nossa matriz cultural.”Segundo André Fernandes, esta alteração implica consequências diretas no comportamento dos incêndios. “Nós até podemos ter reduzido o número de ignições, mas as características do ponto de vista da evolução dos incêndios agravaram-se. (…) Quando iniciei funções na Autoridade, em cerca de 2008, nós tínhamos dias de 400 ou quase 500 ignições. Hoje em dia podemos ter 150, mas a probabilidade de vamos ter um grande incêndio é muito maior devido a estas condições que alteraram no terreno.”. O antigo comandante nacional, que foi o rosto da ANEPC em momentos críticos, defendeu a necessidade de profissionalizar certas tarefas e criar mecanismos de fixação dos especialistas, incluindo carreiras e remunerações adequadas: “Acho que fazia todo o sentido (…) refletirmos sobre a necessidade de aumentarmos a eficácia através da profissionalização de algumas tarefas e de algumas entidades. (…) É preciso dotar os bombeiros de uma carreira. Se não houver uma carreira e também a carreira vem com o quê? Também com a remuneração.”E acrescentou: “Hoje em dia, nos bombeiros isso não existe do ponto de vista remuneratório, a não ser nalguns corpos que são sapadores. (…) 98% das ocorrências são também comandadas por bombeiros, sejam eles voluntários ou profissionais. (…) A profissionalização é necessária. Mas atenção: olhemos, por exemplo, o caso de França. (…) A base do sistema é um grupo de voluntários, mas eles têm funções que estão devidamente enquadradas, têm informação, mas depois também têm um regime próprio de voluntariado, que é preciso adequar ao nosso país.” Assista aqui ao podcast na íntegra:.Podcast Soberania: os incêndios em Portugal