Se as árvores tivessem esqueletos, talvez fossem assim, como estão agora à volta da aldeia de Piódão, em Arganil, onde entre os dias 15 e 17 de agosto, um incêndio, com várias réplicas ou sucedâneos, devastou a região. A poucas dezenas de quilómetros, na Lousã, o cenário de cadáveres vegetais não era muito diferente, com encostas, outrora verdes, agora pintadas de cinzento escuro. Já o cheiro, nas duas regiões, no mesmo período, era o mesmo, tal como o fumo, que nunca deixou de existir, mesmo depois do fogo estar extinto. No meio disto, há histórias de resiliência e algumas de resistência. Até há quem já esteja habituado. “É só mais uma verão.”Piódão estava intacta, mas o fogo andou ali à volta. A poucos quilómetros, nas imediações da Aldeia das Dez, Carlos Pires tentava arranjar um pouco da casa que sobreviveu ao incêndio. Não é onde ele mora, mas é onde mantém os animais. O seu cão, inquieto, não sofreu com o incêndio, mas a devastação andou por ali.Ao DN, Carlos Pires, enquanto arranja o portão daquele terreno diminuto, revela uma tentativa de dar sentido ao que aconteceu ali neste fim de semana.“Foi no dia 15”, explica, aludindo, em simultâneo a outro dia 15, em outubro de 2017.“Só que em 2017 foi à noite, e este ano foi de dia”, lembra, enquanto traz uma outra hipótese, mais mística: “Isto parecia o Diabo. Parecia que o Diabo andava por aqui”, diz, sem falar em labaredas, mas sem evitar criar um cenário de fogo.“Se o vento soprasse mais forte, teria sido pior”, analisa, enquanto explica que “muitas coisas não arderam”.E tudo teria sido pior “se o vento estivesse de feição. “Ardia isto tudo.”.Carlos Pires mora a escassos metros daquele local, na “povoação”, como ele chama à Aldeia das Dez. Entre os dois locais, há troncos retorcidos de árvores e alguns postes em madeira, que antes serviam o propósito de sustentar os cabos elétricos, agora, são restos fumegantes à beira da estrada. Alguns ainda têm chamas presas, mas não representam perigo, porque à sua volta está tudo queimado, sem possibilidade de arder mais.Na noite de 15 de agosto, sexta-feira, os sinos da igreja, na Aldeia das Dez, tocaram a rebate. Indicavam a necessidade de fazer alguma coisa, dada a proximidade do fogo. Algumas pessoas escolheram fugir como puderam, tal como aconteceu no hotel rural da Quinta da Geia. Os hóspedes, perante o aviso que emanava da igreja, deixaram a sua noite descansada para trás e puseram-se a salvo.O fogo não chegou à “povoação”, mas quase.O percurso à volta de Piódão, muito perto dali, não deixa margem para dúvidas sobre o que aconteceu ali. São quilómetros de cinzas e pequenas colunas de fumo que vão acabar por se consumir, sem infligir mais danos.Em Piódão, porém, reina uma calmaria que contrasta com tudo o resto. Ontem, já havia turistas, curiosos, habitantes, que, impávidos, observavam as montanhas negras, que voltarão a ser verdes.No entanto, os avisos da Proteção Civil, replicados pela rádio, garantiam que a zona à volta de Piódão, ao meio-dia, era a que aglutinava mais operacionais, entre bombeiros, militares da GNR e elementos da Proteção Civil, no combate às chamas. Eram, naquele exato momento, 846 homens e mulheres que lutavam para que o fogo não crescesse..De acordo com os dados divulgados pelo Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR), entre os dias 15 e 17 de agosto deste ano, arderam, apenas na região Centro, 10.381 hectares de terreno, por causa de 38 incêndios. Na região Norte, no mesmo período, 164 incêndios reduziram a cinzas 9610 hectares de terreno.Para já, as causas destes fogos não estão apuradas, de acordo com o SGIFR.A noite como “boa conselheira”Na Lousã, a algumas dezenas de quilómetros de Arganil, o fogo deu que fazer a vários bombeiros, até porque, no sábado, 16 de agosto, acabou por ser o incêndio que mais meios aéreos mobilizou.Com um ar exausto, nessa noite, o vereador da Câmara da Lousã, Ricardo Fernandes, eleito pelo PS, detentor do pelouro da Proteção Civil, depositou na noite, com a sua natural descida de temperatura e aumento da humidade, a esperança de que as coisas melhorassem.“Esperemos que a noite seja boa conselheira”, desabafou ao DN, enquanto integrava uma milícia contra os incêndios, temporariamente instalada no “posto de comando” - como o autarca chama ao centro nevrálgico de operações - instalado em Vilarinho, no aeródromo local.Sobre a origem dos incêndios, explicou que as causas estão a ser investigadas pela GNR e pela Polícia Judiciária, que também está no terreno.No entanto, Ricardo Fernandes revela que “no início deste incêndio, ocorreu um outro, simultâneo, o que diminuiu a capacidade de resposta numa primeira instância”.O autarca agradece a todos os operacionais, mas garantiu que a noite seria longa, até porque havia “pontos quentes” na zona de Ribeira de São João, onde estão algumas das aldeias de xisto, que Ricardo Fernandes admitiu ser uma preocupação..A cerca de um quilómetro do “posto de comando”, estão as instalações da Associação de Defesa do Idoso e da Criança (ADIC), que congrega no mesmo local um lar de idosos, um jardim de infância e um centro de dia. Na noite de sexta-feira, alguns idosos foram retirados das casas onde moram e acabaram refugiados nas instalações da ADIC. O fogo acabou por não chegar a Vilarinho, mas foi garantido que ninguém ficava para trás, revelou ao DN uma funcionária da instituição, contente por tudo ter corrido bem.Numa estrada ladeada por fumo, que liga Vilarinho a Góis, onde os tais “pontos quentes” estão ativos, uma mulher para um carro à beira da estrada, e, empunhando um garrafão de água, tenta combater as chamas, que não se escondem. Pouco depois, aparece um carro com quatro bombeiros voluntários das Lousã que rendem a mulher. Depois de derrotarem aquela labareda, continuam o seu caminho, à procura de outros “pontos quentes”. E há muitos.À volta, a floresta é cinzenta e já desistiu destas chamas em concreto. Há fumo e esperança de que as coisas renasçam.Mas a noite não trouxe muitas tréguas. As chamas eram visíveis nas encostas da Lousã. E nem as estradas cortadas pela GNR impediam que aquele espetáculo devastador chegasse visualmente a vários curiosos.Nas povoações à volta de Vilarinho, muitas pessoas estão na rua, à porta de casa, em silêncio, atentas à progressão das labaredas, e com a mesma esperança que Ricardo Fernandes depositou na noite.Ao fim da tarde do dia 16 de agosto, uma coluna de veículos de várias corporações de bombeiros da Área Metropolitana de Lisboa chegou a Vilarinho. Os muitos operacionais, de várias corporações - como os Bombeiros Voluntários de Alcabideche ou os Bombeiros Voluntários do Beato e Penha de França - ficaram instalados no “posto de comando” improvisado.Apesar do fogo ter sido combatido avidamente por muitos bombeiros nessa noite, no dia seguinte, ao final da tarde, junto aos veículos muitos operacionais estavam parados, à espera de ter oportunidade de intervir.Várias colunas de fumo, visíveis a vários quilómetros de distância, saíam das entranhas da Lousã.Os bombeiros da região de Lisboa instalados em Vilarinho, questionados pelo DN sobre como é que tinha sido o combate às chamas, disseram apenas que ainda não tinha acontecido para eles. Estavam ainda à espera desse momento desde a noite anterior. .Alerta prolongado no dia em que um bombeiro morreu e Carneiro pediu uma Comissão Nacional de Proteção Civil.Paulo Fernandes: “As condições meteorológicas já não justificam o estado de alerta”