António Figueiredo Lopes, António Costa, Constança Urbano de Sousa. Dois homens e uma mulher, um governo do PSD e dois do PS. Foi assim nos três anos deste século — 2003, 2005 e 2017 — em que Portugal mais ardeu. Juntos, esses três anos somam 1,358 milhões de hectares ardidos, com 2017 no primeiro lugar do top: 539 921 hectares. Segue-se 2003, com 471 750, e por fim 2005, com 346 718 hectares. Quanto a vidas perdidas, 2017 foi o ano mais trágico de que há memória: 116 óbitos, divididos entre 17 de junho, o dia do massacre em Pedrógão Grande, e 15 de outubro. Em 2003 morreram 21 pessoas, e em 2005, 15. Demissões do titular da pasta com a tutela do combate ao fogo e da segurança das pessoas, só uma, a de Constança Urbano de Sousa. Ocorreria após a segunda vaga mortífera de fogos de 2017, a 15 de outubro, “ter esgotado todas as condições, políticas e pessoais” — nas palavras da própria, que por várias vezes não conteve as lágrimas ante as câmaras e garantira ter sentido o grande incêndio de Pedrógão como o pior dia da sua vida — para se manter no cargo. O primeiro-ministro a quem apresentava a demissão e que, finalmente, após um primeiro pedido recusado quatro meses antes, a aceitava, tinha sido o ministro da Administração Interna em 2005. Afirmara então: “Sou alérgico a políticos que correm para as câmaras de televisão a chorar e a rasgar as vestes perante uma tragédia”.Doze anos depois, a sua aparente incapacidade de exprimir empatia e projetar segurança face ao terror de Pedrógão valeu-lhe um puxão de orelhas de um Presidente da República ainda novinho em folha. Marcelo Rebelo de Sousa, eleito em janeiro de 2016 e apostado em ser “o presidente das emoções”, calcorrearia as áreas martirizadas deixando-se fotografar, em imagens que correram o mundo, a consolar os sobreviventes, assumindo assim o rosto compassivo do Estado ante a tragédia, em contraste com um primeiro-ministro a quem a desgraça parecia ter deixado cataléptico.Seria de resto Marcelo, numa comunicação ao país a 17 de outubro de 2017 em Oliveira do Hospital (um concelho de novo tão fustigado em 2025), a impor a saída da titular da Administração Interna, declarando que os trágicos incêndios exigiam o retirar das “necessárias consequências”, e “uma ruptura com o que não provou ou não convenceu” num "novo ciclo" para o qual era necessário o chefe do governo avaliar "o porquê, quem, como e quando melhor serve esse ciclo". Governo precisa de “tranquilidade e sossego”Começava aí efetivamente um novo ciclo — aquele em que o Presidente se habituava a exigir alterações no elenco governativo e a acenar com os seus “poderes constitucionais”, ou seja, com a possibilidade de dissolver o parlamento. Disse Marcelo Rebelo de Sousa nessa ocasião que o faria sempre que fosse necessário “garantir que as fragilidades da ação pública não colocassem em causa a segurança dos portugueses”. “O Presidente estará atento e exercerá todos os seus poderes para dizer que onde há fragilidade ela deixará de existir”, asseverou. E, em março de 2019, em entrevista à TVI, concretizava que, caso incêndios como os de 2017 se repetissem, dissolveria mesmo o parlamento. Como se sabe, Marcelo foi o Presidente que mais vezes usou esses poderes: em 2021 e 2023, com António Costa como primeiro-ministro, dissolveu o parlamento, e voltaria a fazê-lo em março de 2024, já com Luís Montenegro em São Bento. Ante a atual temporada de incêndios, porém, e a forma como o Executivo, e em especial a ministra da Administração Interna Maria Lúcia Amaral, tem comunicado e coordenado, Marcelo Rebelo de Sousa não tem apresentado críticas — chegou mesmo a assegurar, após a reunião com o primeiro-ministro no Algarve, que existe “uma coordenação espetacular no terreno”.Isto mesmo se 2025 contabiliza até agora um somatório de área ardida — mais de 155 mil hectares de floresta, matos e terrenos agrícolas — que ombreia com a registada em 2017 (164 249 hectares até 15 de agosto), posicionando o ano entre os piores desde 2015. E se perante isso da ministra da Administração Interna se ouviram -- para além da certificação, quando confrontada com a pergunta sobre onde estava o Governo quando o país ardia, que “quem decide precisa de tranquilidade e sossego” -- sobretudo leituras atrapalhadas de comunicados e respostas como “o número de aeronaves disponíveis para o combate é irrelevante”; “nestas situações os meios são sempre limitados [na verdade, Maria Lúcia Amaral disse, por lapso, “ilimitados”]”. Até chegarmos, neste domingo, no final de uma comunicação na sede da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, ao momento em que, face a questões dos jornalistas sobre as alegadas falhas do sistema SIRESP (a rede de comunicações estatal para comando e coordenação de comunicações em situações de emergência), a ministra fugiu, levantando-se e dizendo: “Vamos embora”. “Disfarçar o que correu menos bem”Claro que perante fenómenos climatéricos e meteorológicos extremos, na verdade, todos os meios, como disse Maria Lúcia Amaral, são sempre limitados, mas deverá também ser óbvio que abandonar uma comunicação sem responder a perguntas pertinentes sobre falhas de comunicações de emergência (recorde-se que essas falhas foram um dos fatores das tragédias de 2017) é no mínimo inusitado.Sendo igualmente de assinalar que, num cansativo jogo de cadeiras, a excecionalidade dos fenómenos meteorológicos e climatéricos é invariavelmente invocada por quem está no Governo e desvalorizada por quem ocupa a oposição, .É comparar aquilo que em 2002 dizia, enquanto líder da oposição, Luís Montenegro e o que diz agora, enquanto primeiro-ministro. Há três anos, acusava o governo de António Costa de “manobra de distração”, exigindo-lhe assunção de responsabilidade, comentando: “Não se tente distrair as pessoas. Não me agrada nada que nos andem a vender que estamos num ano atípico, de vagas de calor. O que não é correto é dirigir para aí e disfarçar o que correu menos bem”. Agora lamenta: “Vivemos momentos de severidade meteorológica como não há registo no país.”Ou atentar à alocução de António Figueiredo Lopes, então ministro da Administração Interna, a 14 de agosto de 2003 no parlamento, num debate de urgência (como aquele que o Chega agora exige), a propósito dos terríveis incêndios desse ano: “A partir de 20 de julho último, Portugal foi assolado por um fenómeno de características meteorológicas com tal adversidade que provocou uma vaga de incêndios florestais perfeitamente excecional, não só pelo número de ocorrências registado mas, principalmente, pela violência com que cada situação se desenvolveu, originando um rasto de destruição avassalador (…). Assistiu-se a incêndios com um comportamento extremo e errático, pulverizados por ação dos ventos fortes e instáveis, provocados em muitos casos pela ocorrência de trovoadas secas e auxiliados por temperaturas que, nos seus mínimos, foram sempre superiores a 30 graus e que, nos máximos, chegaram a atingir os 47 graus. Este fenómeno teve as consequências mais gravosas de que há memória e pôs à prova todo um trabalho desenvolvido atempadamente pelos serviços competentes (…).” E perguntava: “Como é possível prever a ocorrência e a combinação de tantos factores adversos e nunca antes vistos? Fala-se de falta de meios. Mas quem é que, tendo estado face a face com as gigantescas labaredas, acredita que era possível garantir e dispor imediatamente dos meios suficientes para vencer um inimigo poderosíssimo, que não dá tréguas?”Para ouvir da oposição, da voz do deputado socialista Fernando Serrasqueiro: “Senhor ministro, se a responsabilidade é do tempo, se a responsabilidade é dos pirómanos, o que lhe pergunto é o seguinte: e qual é a responsabilidade do Governo?” .Linha da Beira Baixa, A23 e EN18 interditadas desde as 18:00. Área ardida em Chaves já ronda os 5000 hectares.“Reflexão” com fogo sem controlo na Covilhã e “horas difíceis” em Espanha