Imigração e criminalidade: os factos de uma ideia fixa
"A teoria de que a imigração é responsável pelo crime, de que a mais recente vaga de imigração, qualquer que seja a sua nacionalidade, é menos desejável que as anteriores, de que todos os recém-chegados devem ser encarados com uma atitude de suspeição, é uma teoria quase tão antiga como as colónias criadas pelos ingleses na costa da Nova Inglaterra.”
A frase está no início de “O problema do crime e dos nascidos no estrangeiro”, o texto de abertura de um relatório sobre o mesmo tema apresentado por uma comissão nomeada pelo presidente americano Herbert Hoover há cerca de um século, e cuja conclusão, baseada em análise económica, aponta para a inexistência de relação, assentando no entanto na evidência de que existe uma forte convicção geral no sentido contrário. 100 anos depois, o título do texto (e do relatório) poderia perfeitamente ser usado para designar o tema da audição parlamentar do diretor da Polícia Judiciária (PJ), Luís Neves, marcada para esta quarta-feira.
Requerida pela Iniciativa Liberal (IL), o partido cuja proposta de que os Relatórios Anuais de Segurança Interna passem a indicar a nacionalidade dos suspeitos de crimes foi aprovada a 12 de fevereiro com os votos favoráveis do PSD, CDS e Chega, esta audição surge na decorrência das declarações de Neves na Conferência dos 160 anos do DN, a 17 de janeiro. Nomeadamente quando afirmou inexistir, na realidade portuguesa, uma relação entre criminalidade e imigração e que o “sentimento de insegurança” de que tanto se fala e do qual alegadamente – o próprio primeiro-ministro. Luís Montenegro, já insistiu várias vezes nessa ideia – padecem “as pessoas” é “gerado pela desinformação, manipulação e pelas fake news”.
Para consubstanciar as suas afirmações, o diretor da PJ citou números referentes à criminalidade violenta – a qual, como o DN noticiou, tem vindo a diminuir desde há 20 anos – e o facto de o rácio de estrangeiros reclusos ter evoluído na razão inversa do aumento da população imigrante. O mesmo tipo de evolução sucedeu, como demonstra uma notícia do DN de 19 de janeiro, com os detidos pela polícia que Luís Neves dirige, especializada na investigação da criminalidade grave e violenta. Assim, se em 2009, quando a população estrangeira residente somava menos de meio milhão (454 191), a PJ deteve 631 estrangeiros (correspondendo a 138,9 detidos por 100 mil imigrantes), em 2023, com o número de estrangeiros residentes mais que duplicado (1 044 605), foram 513 os detidos, correspondendo a 49,1 por 100 mil residentes.
Mas o diretor da PJ explicou mais: não só esta redução do rácio de detidos estrangeiros face ao número de residentes não portugueses foi consistente nos últimos 14 anos, como uma parte considerável dos detidos e reclusos estrangeiros, sobretudo relacionados com tráfico de estupefacientes, não são imigrantes mas elementos daquilo a que dá o nome de “criminalidade transnacional” – com relevo para as “mulas de droga”, pessoas que viajam com substâncias ilegais e são apanhadas nos aeroportos (geralmente, sublinha Luís Neves, mulheres de baixa condição sócio-económica que passam uns anos presas em Portugal e regressam aos seus países a seguir).
Dias depois da Conferência do DN o líder da IL, Rui Rocha, acusou Neves de “usar dados truncados de criminalidade para lançar a confusão” e anunciou que o seu grupo parlamentar o ia chamar ao parlamento, concluindo: “A política de segurança tem de ser construída sobre factos”.
Pode a imigração em si causar medo do crime?
Buscar factos, ou seja evidência científica, foi exatamente aquilo a que se propuseram os economistas Olivier Marie and Paolo Pinotti em Immigration and Crime: An International Perspective/Imigração e Crime: Uma Perspetiva Internacional, artigo publicado em 2024 na prestigiada revista da especialidade Journal of Economic Perspectives, e no qual se propuseram fazer uma espécie de recensão dos trabalhos económicos publicados recentemente sobre a relação entre imigração e criminalidade.
Em sintonia com o trabalho de há cem anos da economista americana Edith Abbott, que dirigiu o relatório citado no início deste texto, concluem duas coisas: que não existe realmente prova dessa relação – ainda que, e já lá iremos, se note, em muitos países, uma desproporção entre o número de detidos e reclusos estrangeiros face à dimensão da população estrangeira – e que se trata de uma ideia profundamente inculcada nas populações (ou pelo menos em certas populações, já que em Portugal surgiu há relativamente pouco tempo nas preocupações “das pessoas”).
Como se criou essa ideia? Um trabalho do argentino Nicolás Ajzenman e dos chilenos Patricio Dominguez e Raimundo Undurraga, publicado em outubro de 2023 no American Economic Journal: Applied Economics, tenta precisamente lançar luz sobre as tais “perceções” de que tanto se tem falado. Intitulado Immigration, Crime, and Crime (Mis)Perceptions (Imigração, Crime, e Perceções Erradas sobre Crime), usa aquilo a que se dá o nome científico de “experiência natural”– o facto de, em dez anos, a população estrangeira ter triplicado no Chile – para analisar o efeito desse aumento no nível de crime no país, a partir não só das estatísticas de criminalidade mas também de inquéritos de vitimação, cruzando essa evidência com outros elementos, como a evolução do discurso político e a cobertura mediática.
No resumo do artigo lê-se: “Documentámos zero efeitos [do aumento] da imigração no crime mas, em contrapartida, encontrámos uma correlação positiva e efeitos significativos nas preocupações com crime e em medidas preventivas como investimentos em mecanismo de segurança para residências.” Não sendo a mudança nas preocupações com o crime explicada por mais crime, escrevem os autores na conclusão, o que parece é que “a imigração em si desencadeia a formação de percepções erradas relacionadas com crime”.
E se for uma mistura de racismo e de preconceito contra pobres?
O estudo de Ajzenman, Dominguez e Undurraga aponta duas explicações possíveis para este desencontro: “Em primeiro lugar, os media desempenham sem dúvida um papel importante: em municípios com media locais fortes, o efeito é mais notório. Em segundo lugar, o nível de escolaridade dos imigrantes parece ser relevante. Recém-chegados pouco qualificados causam maiores aumentos na preocupação com crime (…). E, embora os nossos resultados não variem em função da diferença étnica/genética face à população chilena, notamos que a preocupação com crime e as alterações de comportamento [da população] são sobretudo desencadeadas por imigração vinda de países que estão etnicamente distantes da Europa. (…) Estas perceções equivocadas sobre crime podem não só influir na exigência de políticas anti-imigração, mas também constituir um dos fatores subjacentes ao aumento da hostilidade e preconceito em relação aos imigrantes”.
Hostilidade e preconceito que podem, por sua vez, aumentar a criminalidade – pelo aumento dos chamados “crimes de ódio” (crimes motivados pelo ódio). No domínio dos paradoxos, interessante constatar como num país da América do Sul, historicamente colonizada por imigrantes europeus (responsáveis por massacres sucessivos da população autóctone), os atuais imigrantes de etnia mais próxima dos sul-americanos “originais” (segundo dados de 2022, a esmagadora maioria dos imigrantes que residem no Chile – 59,9% – vêm de países da América do Sul, com a Venezuela à cabeça, seguida do Peru e da Colômbia) serão considerados perigosos face a imigrantes de “perfil europeu”. Uma perceção que os autores associam a dois tipos de preconceito: “A distância étnica em relação à Europa pode ser correlacionada com rendimento e, portanto, estes resultados podem ser interpretados como discriminação ou preconceito contra origens étnicas específicas ou um preconceito contra os pobres (entre outras explicações possíveis)”.
Outro paradoxo – do ponto de vista de quem considera que a imigração é um perigo e portanto deve ser dificultada ao máximo – é apontado no citado artigo de “recensão” dos trabalhos económicos sobre relação entre criminalidade e imigração. Diz respeito à relação entre estatuto legal e crime cometido por imigrantes, e é exemplificado com o efeito causado pela adesão da Roménia e Bulgária à União Europeia, em 2007. Como consequência, narra o artigo, todos os cidadãos desses países obtiveram um estatuto legal e acesso ao mercado de trabalho nos outros países da UE. Um estudo publicado em 2015 (O Estatuto Legal e a Atividade Criminal dos Imigrantes – American Economic Journal), de Giovani Mastrobuoni e Paolo Pinotti, comparou o recidivismo, antes e depois da entrada dos dois países, dos reclusos búlgaros e romenos perdoados em Itália numa lei de amnistia de 2006 com o recidivismo de reclusos, também perdoados, de outros países que não entraram na UE. Para concluir que o recidivismo dos romenos e búlgaros a viver em Itália foi, após a entrada dos seus países na UE, 50% inferior ao de reclusos de outras origens também perdoados.
Paradoxos e mais paradoxos
Citando vários outros trabalhos baseados em dados europeus que indicam o mesmo tipo de resultado, o artigo de recensão refere também Effects of Immigrant Legalization on Crime/Efeitos da Legalização de Imigrantes no Crime, de Scott Ross Baker, publicado em 2025 na American Economic Review, o qual examina o efeito da legalização extraordinária de 1986. “Encontrei diminuições persistentes de crime de 3 a 5%, sobretudo relacionada com uma queda nos crimes contra o património. Esta descida é equivalente a menos 120 a 180 mil crimes violentos e contra a propriedade cometidos a cada ano no país devido à legalização. Estes declínios no crime não podem ser explicados por tendências existentes, condições económicas, declínio nos crimes relacionados com drogas, mudanças nas forças policiais e populações prisionais, ou outras explicações comuns para mudanças de taxas de crime durante este período”, diz Ross Baker no resumo do estudo.
Claro que, lendo isto, pensa-se: ah, então sempre há crime cometido por imigrantes. Há, claro – aliás a conclusão do artigo de Pinotti e Marie chama a atenção para uma inconsistência que emerge da análise dos dados conhecidos e dos vários trabalhos económicos referidos: “Por um lado, na maioria dos países – com a notável exceção dos EUA – os imigrantes exibem um envolvimento desproporcionado na atividade criminal em comparação com os nativos, se tivermos em consideração a taxa de encarceramento relativa dos dois grupos. Acresce que certos tipos de imigrantes, incluindo homens jovens e com pouca escolaridade e os ilegais, evidenciam uma maior tendência para cometer crimes que aqueles que estão legalizados. Estes fatores sugerem uma relação positiva entre imigração e crime. Mas, por outro lado, estudos desenhados para medir o efeito dos fluxos migratórios no nível de crime não encontram, em geral, uma causa-efeito detectável”.
Os economistas avançam duas hipóteses explicativas: “Primeiro, talvez a alta taxa de detenção e encarceramento de imigrantes derive de discriminação (…) contra imigrantes da parte da polícia e das autoridades judiciárias, e não de uma mais alta taxa de crime, embora não conheçamos análises sistemáticas internacionais deste tema. Em segundo lugar, talvez os imigrantes substituam os nativos em certos mercados criminais, o que seria consistente com exibirem maiores taxas de delinquência que os nativos enquanto não se verifica uma relação entre mais imigração e mais criminalidade.”
Há ainda outra hipótese, ajuntam, a mais simples: “A quantidade de imigrantes na população – e entre os criminosos – será talvez, na maioria dos casos, demasiado baixa para causar uma alteração detectável nas taxas de crime. A percentagem de imigrantes na população global é apenas de 3,5%, e mesmo nos países europeus e da América do Norte com muita imigração, mantém-se, na maioria dos casos, entre 10 e 15%”. A conclusão é pois que, quanto a este aparente paradoxo, é necessária mais investigação.
Do que não há mesmo dúvida, como escrevia em 1931, numa recensão do relatório da Comissão nomeada pelo presidente Hoover, um articulista de nome Joseph Cohen, é de que a doutrina popular deliberou que “os estrangeiros, mais do que os nativos, tendem a violar a lei, especialmente no que respeita aos crimes mais graves”, mesmo se os criminologistas e os relatórios oficiais “encontram evidência do contrário”. E concluía: “Que uma visão adversa dos estrangeiros persista face a testemunhos imparciais e especializados é uma prova do quão fortes e profundos podem ser os estereótipos.” Há 100 anos como hoje.