O placar colado na Loja do Cidadão das Laranjeiras, em Lisboa, indica a abertura a partir das 8:30, mas o movimento em torno do edifício já é grande nas horas anteriores. Antes das 6:00 da manhã, imigrantes usam caixas de papelão como camas ao lado da porta, enquanto em alguns carros, outros utentes repousam no banco para dormitar e aproveitar os últimos momentos antes do amanhecer. No chão, uma lista de espera improvisada conta com pouco mais de duas dezenas de nomes. Ao longo da hora seguinte, já seriam mais de 100..A fama de falta de condições para atender tantas pessoas por parte da Loja do Cidadão das Laranjeiras faz com que as madrugadas e inícios de manhãs sejam sempre assim. Com receio de não serem atendidos, os utentes, em sua maioria imigrantes de países como Angola, Bangladesh, Brasil, Cabo Verde ou Paquistão, chegam de madrugada ou até no dia anterior para marcar presença nas redondezas da loja..“Todas as manhãs são assim, de segunda a sábado. E os sábados são os piores”, conta a empregada de mesa de um dos cafés do centro comercial ao lado da loja. “As pessoas estão de folga, o horário é reduzido… vira mesmo um caos, a fila dá uma volta no quarteirão”, afirma..Entre as 6:00 e às 7:00 da manhã, quando o movimento cresce exponencialmente, as pessoas começam a acordar e organizar-se. Às 7:30, a tal lista de espera começa a virar efetivamente uma fila, sem deixar de ter confusões pelo caminho. Três homens, também à espera de serem atendidos, lideram a organização..“33, Mohammed! 34, Nahid! 35, José Carlos!”, exclama Bernardin Martins, um dos utentes que ajuda a organizar a fila. Na Loja do Cidadão para emitir o registo criminal para trabalhar como condutor TVDE, Martins revelou que as filas para entrar no espaço estão a ficar cada vez maiores. Em agosto, com muitos funcionários em férias, o problema é acentuado..“Parece que está a piorar desde a pandemia. Não acho que as filas fossem assim tão caóticas alguns anos atrás, não podemos dizer que é normal uma situação dessas. Alguma coisa está a acontecer, claro que tem mais pessoas a chegarem ao país, que precisam de tratar da documentação necessária. Mas falta por parte do governo alguma organização ou mais trabalhadores: não é papel do cidadão comum organizar filas de espera como essas”, diz Martins, cabo-verdiano em Lisboa há seis anos..No dia em que a reportagem do DN esteve no local, Sikandar, do Paquistão, havia sido o primeiro a chegar à porta do órgão e um dos que dormiam numa das caixas de papelão. O paquistanês inaugurou a lista mais de 12 horas antes da Loja de Cidadão das Laranjeiras abrir as portas. Ao acordar e ser direcionado pelo trio para a frente da fila, Sikandar, falou com a reportagem do DN..“Cheguei ontem às 20:00. Vim para alterar a minha morada fiscal, ainda está em Lisboa, mas eu vivo na Zambujeira do Mar há alguns meses. Vim à tarde para Lisboa, não tinha onde dormir e já fiquei por aqui para guardar lugar. Sabia que se chegasse mais tarde hoje, seria complicado de ser atendido, e tenho que voltar ainda hoje para Zambujeira para trabalhar, portanto não podia arriscar.”, conta Sikandar..Na última vez que tinha estado em Lisboa, Sikandar não conseguiu ser atendido na Loja do Cidadão ao chegar de manhã, por volta das 7:00 e se deparar com a fila que contornava a rua. Desta vez, levou papel e caneta e colocou o nome na tal lista que mostra a autogestão feita pelos utentes antes da abertura das portas do espaço. O paquistanês entendeu que era uma prática comum de bom senso entre aqueles já acostumados com os serviços do órgão e repetiu o gesto ao chegar no dia anterior: “Primeiro da lista”, diz contente..Lista de espera feita pelos utentes da Loja de Cidadão das Laranjeiras (Carlos Pimentel/Global Imagens).O desespero de quem precisa de atendimento na loja das Laranjeiras é tanto que faz surgir personagens como João, que ali, preferia ser conhecido como Daniel. Cabo-verdiano radicado em Lisboa “há muitos anos”, como o próprio diz, João nada mais faz do que ficar a guardar o lugar na assustadora fila da Loja do Cidadão em troca de uma compensação financeira..“Estou aqui desde às 21:00 de ontem, coloquei o nome do meu amigo na lista e dormi aqui no meu carro. Ajudo quem acaba de chegar a Portugal, que ainda não tratou de nada de finanças, Segurança Social, morada. E faço isso porque eu já morei em muitos lugares do mundo, como França, Holanda e Bélgica. Além de Cabo Verde, claro. E nenhum lugar é tão complicado em questão de serviços quanto aqui. As pessoas ficam espantadas com Portugal”, explica João..Hugo, outro cabo-verdiano que ajudava a organizar a fila nos serviços, faz coro às palavras de seu conterrâneo. “Não faz sentido o que acontece no atendimento de serviços aqui em Portugal. Na AIMA, por exemplo, é a mesma coisa ou até pior. Falam que é muita demanda, então que contratem mais gente, aqui e lá. E lá seria ainda mais fácil para eles solucionarem: se contratassem 80 funcionários, para trabalhar por três meses que fosse, resolvia as pendências todas, diminuía a pressão da comunicação social também. Não percebo a falta de soluções para algumas coisas simples aqui”, afirma Hugo, que precisava resolver uma pendência com as finanças na Loja de Cidadão, balcão que costuma ser concorrido..Na fila, há até quem leve um banco de plástico para ficar à espera. Quando finalmente fica formada em ordem de chegada consoante os nomes inscritos no papel, a lista é “encerrada”. “Quem está depois desse número já não vai conseguir ser atendido, pelo menos se forem para os principais balcões”, destaca Hugo, ao apontar o número 120 da lista..Inseguros e preocupados com a regularização em Portugal, muitos abordados pela reportagem do DN preferem não dar entrevistas ou, se concedem, optam por não responder o apelido. Tirar foto, nem pensar..Balcão da Segurança Social é o mais disputado.Os utentes que precisam tratar de documentos como renovação da carta de condução ou cartão de cidadão não reclamam do atendimento no interior da Loja. “A confusão é de lá para cá. Dentro sempre consegui ter tudo resolvido, especialmente se forem assuntos menos complexos”, diz Carlos Sá, um dos poucos portugueses presentes na fila. Outros utentes afirmam que a qualidade do atendimento depende muito do serviço necessário dentro da Loja do Cidadão..“O serviço depende muito do balcão. O balcão da Segurança Social, por exemplo, costuma ser o pior. É o que tem menos senhas também e, além de ser concorrido, tenho a impressão que atendem as pessoas um bocado mal. Já presenciei, não aqui, mas na Loja de Cidadão do Saldanha, um atendimento brusco e pouco solícito, especialmente com os imigrantes”, ressalta Gabriela Rodrigues, angolana radicada em Lisboa há mais de 30 anos e que havia chegado por volta das 6h da manhã para dar entrada em documentação que garante uma ajuda de custos do Estado..Perto das 8:30, a porta da Loja do Cidadão conta com reforço de dois policiais e dos seguranças do edifício. Um ou outro utente tenta entrar de forma sorrateira na fila, sendo reprimido pelos organizadores da lista de espera e mandado para o fundo. Já depois da abertura de portas, a reportagem perguntou aos trabalhadores da Loja do Cidadão quantas senhas estavam disponíveis, tendo em vista que a fila já contava com quase 150 pessoas. Os representantes disseram que não poderiam dar tal informação..“É constrangedor. Acho que ninguém tinha que dormir na rua por medo de não ser atendido. As senhas acabam cedo e é por isso que as pessoas acabam por acampar aqui, estão com receio de no dia seguinte chegarem de manhã e não conseguirem ser atendidas. As pessoas estão a inventar um sistema (lista) que não deveria ser nossa responsabilidade. Se houvessem mais balcões, mais senhas, mais trabalhadores, não seria preciso”, completa Gabriela..Rosalina Bicas, outra angolana a viver em Lisboa, acredita que a administração poderia pensar em maneiras de melhorar a eficácia do sistema, ainda mais em agosto. Após duas tentativas fracassadas de ser atendida pelo balcão da Segurança Social ao chegar às 7:30 da manhã, esperava finalmente tratar da sua documentação. Dessa vez, chegou às 5:00..“O serviço não suporta tanta gente. Agora, não dá para culpar as pessoas, né? Eles sabem que existem muitos imigrantes em Portugal e que precisam abrir atividade na Segurança Social ou tratar de outras burocracias. Portanto, que abram mais espaços, contratem mais pessoas, especialmente nessa época de verão. Mas aqui é sempre assim: parece que até nos hospitais faltam trabalhadores nessa altura”, diz a angolana..A opção de atendimento sem marcação prévia em lojas do cidadão entrou em vigor no último mês de julho. O DN entrou em contacto com o Ministério da Justiça para entender quais as medidas que estão a ser aplicadas para melhorar o atendimento nas lojas e se houve a contratação ou realocação de funcionários para a Loja de Cidadão das Laranjeiras, uma das maiores do país. Até o fecho desta edição, não recebemos respostas..Atualização.O Instituto de Registos e Notariado (IRN) anunciou que está atrás de novas contratações para atender a alta demanda dos serviços nas Lojas de Cidadão de Lisboa e, em especial, a unidade das Laranjeiras. Em contacto com o DN, o IRN informou que “encontram-se em curso vários recrutamentos para diversas carreiras, com o objetivo de melhorar a qualidade do serviço prestado aos cidadãos”, sem entrar em mais detalhes..Ainda segundo o IRN, algumas medidas foram aplicadas na Loja de Cidadão das Laranjeiras de forma a antecipar possíveis constrangimentos por parte dos utentes durante o mês de agosto, quando grande parte dos funcionários está de férias..“Para diminuir as inconveniências para o cidadão, o IRN decidiu gerir os turnos de modo a garantir que, pelo menos durante as manhãs, há atendimento espontâneo (sem marcação). A preferência dada ao período das manhãs deve-se à preocupação de não frustrar a expectativa de atendimento do cidadão que aguarda pela abertura da Loja do Cidadão”, declarou..O órgão comunicou também que o posto de atendimento do Gabinete de Certidões da Loja de Cidadão das Laranjeiras mantém aberto o atendimento espontâneo durante as manhãs de segunda a sábado. O dia 16 de agosto é uma exceção, quando a loja estará encerrada durante todo dia. .nuno.tibirica@dn.pt