A realidade da objeção nos serviços de saúde é pouco conhecida e nada fiscalizada. Primeira contabilidade de objetores para a interrupção de gravidez foi efetuada em 2023, na sequência de uma investigação do DN sobre a dificuldade de acesso a esse cuidado de saúde.
A realidade da objeção nos serviços de saúde é pouco conhecida e nada fiscalizada. Primeira contabilidade de objetores para a interrupção de gravidez foi efetuada em 2023, na sequência de uma investigação do DN sobre a dificuldade de acesso a esse cuidado de saúde. AFP

“Hospitais devem poder contratar médicos não objetores”, diz Conselho de Ética

É necessária “regulamentação homogénea” da objeção de consciência por parte do poder legislativo, diz órgão consultivo do parlamento no seu primeiro parecer sobre o assunto, no qual alerta para o perigo de discriminação dos cidadãos, nomeadamente das mulheres que querem abortar, e defende registo obrigatório dos objetores no SNS e nas ordens profissionais.   
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“O conhecimento prévio e rigoroso da realidade em relação ao número de objetores é fundamental”, diz Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), no seu primeiro parecer sobre objeção de consciência (OC). No qual defende que a comunicação prévia e “geral” da objeção na instituição de saúde na qual o profissional presta serviço deve ser condição para o exercício da mesma, propondo igualmente a obrigatoriedade da comunicação às ordens (o que já sucede no caso dos enfermeiros e dos farmacêuticos, mas não no dos médicos). 

Neste documento, aprovado por maioria a 17 de janeiro, o CNECV também defende que as instituições de saúde devem “poder contratar profissionais que afirmem não ser objetores de consciência para o procedimento que seja necessário garantir” - ou seja, que possam usar esse critério para contratação - e que o poder legislativo “deve elaborar regulamentação homogénea da OC que permita tanto o respeito pela sua invocação, como a defesa dos direitos dos cidadãos”.

Quase 41 anos depois de a objeção de consciência em saúde ter sido consagrada no ordenamento jurídico português - foi pela primeira vez expressamente admitida em 1984, para a esterilização voluntária e para a interrupção de gravidez não punível - este parecer, cujos relatores foram Margarida Godinho Costa (jurista), Maria de Lurdes Martins (enfermeira), Miguel Ricou (psicólogo) e Rosalvo Almeida (médico neurologista), surge após vários grupos parlamentares, nomeadamente o do PS e o do BE, proporem a regulamentação da OC no âmbito da interrupção de gravidez, precisamente no sentido de que aquela não obstaculize o acesso àquele cuidado de saúde. 

Recorde-se que cerca de um terço dos hospitais portugueses não têm consulta de interrupção de gravidez (IG) devido à alegada declaração de objeção de todo o corpo médico. E que a primeira contabilização de objetores para a IG no SNS, efetuada em 2023 pela Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) - na sequência de uma investigação do DN sobre a violação da lei do aborto no SNS -, concluía (ERS) que apenas 81 médicos obstetras e ginecologistas (ou 13% do total) aceitam efetuar esse procedimento no caso da interrupção até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher e que (IGAS) 533 clínicos da especialidade tinham declarado OC para o mesmo procedimento. Por outro lado, e malgrado a lei desde 2007 estabelecer, em relação à objeção para a IG, que os profissionais têm de a declarar em documento assinado e entregue à direção clínica da unidade onde trabalham, a ERS constatou, a partir ”das respostas remetidas pelos prestadores", a "inexistência" de "um registo completo e atualizado de todos os profissionais de saúde objetores de consciência, tanto nos cuidados hospitalares como nos cuidados primários", e decorrentemente "a impossibilidade de estabelecer uma relação entre a disponibilidade de médicos não objetores de consciência com contrato de trabalho e a capacidade de resposta em matéria de IVG."

A objeção como fautor de desigualdade e discriminação

Note-se que a objeção de consciência, que em saúde, como se lê neste parecer, “se traduz na recusa de um profissional intervir num determinado procedimento quando este ofende ou viola as suas convicções religiosas, morais, filosóficas ou ideológicas”, e que como já referido foi introduzida no ordenamento jurídico português em 1984 - sendo posteriormente também prevista no caso da procriação assistida (lei de 2006), de novo na interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher (2007) e morte medicamente assistida (2023) -, nunca foi até hoje objeto de regulamentação específica, sendo, como reconheceu ao DN em novembro de 2023 a ex-ministra da Saúde Marta Temido, “uma realidade pouco estudada e pouco aprofundada”

Assumindo que “na prática quotidiana a invocação de OC pode constituir um obstáculo ao direito à saúde, bem como uma discriminação no acesso que poderá prejudicar determinadas minorias e agudizar as desigualdades existentes na sociedade”, o CNECV aponta como exemplo dessa desigualdade e discriminação “as mulheres que solicitam a interrupção voluntária da gravidez (IVG), principalmente até às 10 semanas, sendo este um dos procedimentos alvo mais comuns da OC por profissionais de saúde, cuja omissão poderá ter consequências negativas reais para a saúde reprodutiva e para a vida da mulher”. 

O parecer advoga ainda que a objeção não se pode exercer “como um juízo moral do profissional de saúde sobre a pessoa que o procura ou como um instrumento de discriminação ou de violação de direitos fundamentais das outras pessoas (…)”, nem “como pressão para a mudança de normas em vigor”

Adverte também para o facto de que a invocação de objeção “pode provocar desigualdade entre profissionais, ou por benefício dos objetores e/ou prejuízo dos restantes, decorrente do alívio da carga laboral (…). Importará, pois, que a recusa em relação à prática de certos atos não provoque uma sobrecarga sobre os outros profissionais podendo, no limite, constituir-se como uma motivação para a OC.” 

A esta ideia, que tem sido referida na literatura científica e em algumas investigações jornalísticas, de que haverá profissionais de saúde que se assumem como objetores por “objeção ao trabalho” ou porque consideram a interrupção de gravidez um procedimento “desinteressante” associa-se a da pressão dos pares, das instituições ou do meio, naquilo que o CNECV designa de “objeção social” (OS). Esta constituirá a “recusa de determinados procedimentos motivada pela pressão social dos pares (colegas de trabalho ou hierarquias) ou da comunidade onde o profissional exerce”. O qual invocará objeção “não por o procedimento em causa ofender alguns dos seus valores, mas pelo desconforto que sente em o realizar num contexto profissional ou social em que é visto predominantemente como criticável”. Ora, vinca o parecer, este tipo de recusa “é totalmente desprovido de legitimidade ética e legal”. E põe a hipótese de ser este tipo falseado de objeção “um dos motivos para que, em Portugal, apenas 13% dos médicos especialistas em Ginecologia-Obstetrícia realizem IVG”.

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