Garrafa com cartas de dois soldados da I Guerra Mundial chega às famílias mais de 100 anos depois
D.R. Debra Brown

Garrafa com cartas de dois soldados da I Guerra Mundial chega às famílias mais de 100 anos depois

As cartas dos soldados australianos Malcolm Alexander Neville e William Kirk Harley foram encontradas dentro de uma garrafa de Schweppes com mais de um século numa praia australiana. Mas agora, mais de 100 anos depois, chegaram às suas famílias.
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Quando Deb e Peter Brown, um casal de australianos que passeava com a filha pela praia de Wharton no dia 9 de outubro, apanharam da areia um estranha garrafa de Schweppes estavam longe de imaginar as viagens que o seu gesto desencadearia. E o sentimento de união que dele resultaria.

Para os dois australianos, na verdade, os passeios com a filha Felicity na praia de Wharton (perto de Esperance, na costa Ocidental da Austrália) até fazem parte de um hábito: passeio para recolher lixo deixado pelos banhistas.

Mas a garrafa apanhada no dia 9 de outubro não era lixo. Era uma cápsula do tempo, em viagem há mais de um século, com muita história para e por contar, como se verá. Dentro da garrafa de vidro espesso e transparente estavam duas cartas, escritas a lápis, pelos soldados Malcolm Neville, de 27 anos, e William Harley, de 37. Ambas estavam datadas de 15 de agosto de… 1916. 

O soldado Malcolm Alexander Neville
O soldado Malcolm Alexander NevilleVirtual War Memorial Australia/Sue Urban

Uma pesquisa aos nomes dos soldados indica que partiram de Adelaide num navio de transporte de tropas, o HMAT [His Magesty’s Australian Transport] A70 Ballarat, em 12 agosto de 1916, com destino ao outro lado do mundo, às trincheiras da Frente Ocidental da I Grande Guerra Mundial. A força em transporte iria reforçar o 48º Batalhão de Infantaria australiano.

O soldado Neville nunca regressou a casa. Foi morto em combate um ano depois. Tinha 28 anos.

o soldado Harley foi ferido duas vezes, mas sobreviveu à Guerra. Morreu em Adelaide poucos anos depois, em 1934, com um cancro. A família sempre acreditou que a doença lhe chegou por efeito do gás [provavelmente gás mostarda] que inalou num ataque alemão nas trincheiras.

Apesar de estarem a caminho de uma das mais mortíferas guerras jamais vistas, Malcolm Neville e William Harley mostram-se bem humorados nas cartas enviadas à família. Talvez não os quisessem preocupar ou então estariam a exibir o desprendimento face às dificuldades de que os australianos tanto se orgulham. Certo é que Neville relata à mãe estar a “passar um bom bocado” e que até “a comida tem sido realmente ótima até ao momento”. “Com exceção de uma refeição a que demos um funeral no mar”, escreve, com aparente boa disposição. 

D.R. Debra Brown

As próprias expressões usadas pelos dois soldados atestam a antiguidade das missivas. “O navio ondula e abana por todos os lados, mas estamos tão felizes como o Larry [happy as Larry]”, escreveu Malcolm Neville, usando um coloquialismo australiano que há muito desapareceu do uso corrente.

Neville também pede, na carta, que esta seja entregue – caso seja encontrada – à sua mãe, Robertina Neville, em Wilkawatt, que desde então se transformou numa cidade fantasma no Sul da Austrália. Já Harley, cuja mãe já tinha morrido em 1916, dava-se por satisfeito que a pessoa que encontrasse a garrafa ficasse com a mensagem. “Que a pessoa que encontre [esta mensagem] fique tão bem como nós nos encontramos presentemente”.

O casal que encontrou a garrafa, Deb e Peter Brown, suspeitam que esta terá ficado mais de uma década presa na areia das dunas. A grave erosão que se tem verificado nos últimos meses nas dunas da praia de Wharton – causados por ondas enormes – terá desalojado a garrafa do seu sono descansado. O papel das cartas estava molhado, mas as partes escritas continuavam bem legíveis.

“A garrafa está numa condição quase imaculada. Não tem quaisquer crustáceos [como pequenas lapas ou cracas] agarrados a ela. Acredito que se tivesse estado no mar ou exposta durante todo este tempo, o papel ter-se-ia desintegrado com a luz do sol. Não teríamos conseguido lê-la”, disse Deb Brown, citada pela Associated Press.

E foi assim, por ter conseguido ler as cartas, que Deb Brown se lançou numa missão para encontrar os familiares dos dois soldados.

A campa do soldado Neville, no cemitério de Longuval, França.
A campa do soldado Neville, no cemitério de Longuval, França.D.R. Maureen Steinborner

A neta de William Harley, Ann Turner, disse que a sua família ficou “absolutamente em choque” com a descoberta. “Não conseguimos acreditar. Parece mesmo um milagre e sentimos que o nosso avô nos contactou a partir da cova”, disse Ann Turner à ABC news (Australian Broadcasting Corp).

Já Herbie Neville, o bisneto de Malcolm Neville, disse que a família se reuniu, aproximou-se, pela “incrível” descoberta.

“Parece que ele estava bastante feliz por ir para a guerra. É muito triste o que aconteceu. É muito triste ele ter perdido lá a vida”, sublinhou. “Mas UAU! Que grande homem ele era!”, concluiu, sem esconder o orgulho.

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