Temos sempre incêndios no verão, mas a ideia que dá é que este ano estão mais violentos e que queimam mais área (quase 42 mil hectares, oito vezes mais do que no ano passado), sobretudo de floresta ao invés de mato, como acontecia há alguns anos. Esta violência dos fogos é também uma consequência das alterações climáticas e de um planeta mais quente?Vamos por pontos. Para haver um incêndio, é necessário que exista uma ignição e que exista biomassa para queimar. Depois, é necessário que as condições meteorológicas sejam favoráveis à propagação desse incêndio. Ou seja, se estiver a chover pode haver biomassa, pode haver uma ignição, mas não há incêndio. Em Portugal, a grande maioria das pessoas que se debruçam sobre estes assuntos, dão como prioritário não termos material combustível nas florestas, não termos biomassa. Simplesmente, isso não se tem verificado. Este ano, por exemplo, choveu muito no inverno. Portanto, houve uma acumulação de biomassa que depois ficou muito seca. Isso são condições ideais para, quando há uma ignição, haver um incêndio. E depois, quais são as condições para que o incêndio avançar e se tornar intenso? Uma humidade relativamente baixa, de menos de 30%, que a velocidade do vento seja superior a 30 km/hora e a temperatura ser superior a 30 ºC. É a chamada regra 30-30-30. Há quem defenda que o que se deve fazer é, precisamente, queimar a biomassa com incêndios durante o inverno e a primavera, para que não exista biomassa no verão. Há quem diga que os proprietários têm de cortar a biomassa. Mas como a propriedade é muito dividida, muito fragmentada, os proprietários não têm dinheiro para cortar o mato ou os chamados 'finos'. Se não houvesse biomassa, estava o problema resolvido, de certo modo. Mas como há biomassa, têm havido ignições em quantidade muito significativa. Qual é o impacto das alterações climáticas aqui? Bom, criam as condições, os tais 30-30-30, de forma mais frequente e, portanto, agravam o risco de incêndio, porque havendo biomassa e ignição, depois as condições meteorológicas que favorecem incêndios de grandes dimensões são mais frequentes e, quer dizer, passam a existir situações extremas de temperatura, de seca e de ventos.Explica-se assim, então, que haja noutras partes da Europa, como no Reino Unido, um conjunto de tempestades? Estas disparidades tão grandes entre regiões do globo relativamente próximas são sinal de mudanças no clima?São de certo modo manifestações da mudança climática, sim. É mais difícil de explicar, mas tem a ver com o chamado jet stream, as correntes de jato, que nada mais são do que ventos muito fortes em altitude. Essas correntes estão associadas a temporais, à chuva. Esse jet stream é como se fosse um colar à volta do pescoço da terra. Só que esse colar tem ondulações maiores, e além disso também fica numa determinada posição durante mais tempo. Só que essa corrente de jato está a trazer ar muito seco do interior de Espanha e do norte de África e, portanto, causa uma onda de calor e uma secura muito grande. Mas se formos mais para norte, temos uma corrente de jato que é vista a qualquer coisa como mil e tal quilómetros daqui, onde pode chover abundantemente. O que é característico das alterações climáticas são os eventos extremos, sejam ondas de calor mais intensas e frequentes ou muito intensas em intervalos de tempo mais curtos, bem como temporais com ventos mais fortes.Isso prova que, por exemplo, a temperatura média registada em julho, de 30,9ºC (a quinta mais elevada desde 2020) é já um efeito das alterações climáticas?Penso que é evidente que isto é uma mudança climática. O clima está a mudar. Isso é uma coisa que, creio, a maior parte das pessoas também sente. Todas as pessoas têm sentido este ano, durante o verão, temperaturas muito elevadas de forma contínua. Não quer dizer que no passado não houvesse temperaturas elevadas, mas agora há um contínuo. A temperatura não baixa assim de forma significativa. E isto acontece em todo o mundo. Por outro lado, quando se mede a temperatura nas estações meteorológicas espalhadas pelo mundo e se faz a média da temperatura anual, chega-se à conclusão de que está a aumentar e atingiu um valor máximo no ano passado de 1,55ºC acima do período pré-industrial. Ou seja, desde há praticamente 300 anos até agora a temperatura do planeta aumentou de 1,55ºC e em 2023 foi um recorde, que foi batido em 2024. A alteração climática está a ocorrer e vamos ter de nos adaptar.Como nos tornar, então, mais resilientes desse ponto de vista e como enfrentar as alterações?Bom, com medidas de adaptação. No caso dos incêndios florestais e rurais que têm assolado o país, preocupando as pessoas e causando prejuízos económicos muito significativos, é diminuir a quantidade de biomassa. Isso implica que se melhore a gestão das propriedades rústicas. Temos, em Portugal, 10,5 milhões de propriedades rústicas. É necessário melhorar a gestão destas propriedades rústicas. Está muito fragmentada. É difícil, mas uma primeira adaptação é diminuirmos a biomassa. Esse é o primeiro ponto, porque com a biomassa e com as ignições temos incêndios. Depois, as alterações climáticas fazem com os incêndios se tornem muito mais fortes e afetem uma grande área”. E há também que melhorar a gestão da floresta. Mais de 90% da área florestal em Portugal é privada. Os privados têm de melhorar a gestão da floresta, mas se não conseguirem, porque não têm meios económicos para limpar a floresta, o que fazer? Há várias outras soluções, como parcelar as propriedades, como criar incentivos ou colocar o Estado, ou seja, todos nós a pagar essa limpeza da biomassa. Isto é, digamos, o primeiro passo. Enquanto não for possível, bom, é tentar reduzir as ignições. Quanto menos ignições houver, menos probabilidade temos de ter incêndios florestais perigosos.Do ponto de vista das cidades, o que pode ser feito? Pergunto porque, ainda na passada segunda-feira, o DN noticiou que Lisboa pode vir a ter 50 dias por ano acima dos 35 graus no futuro. Isto é preocupante?Sim, preocupa-me. Trabalho nestas coisas há praticamente 40 anos. Acho esse dado preocupante, o primeiro estudo que se fez em Portugal sobre os impactos das alterações climáticas e as medidas de adaptação para diminuírem esses impactos adversos foi coordenado por mim no ano 2000 e foi publicado em livro em 2002. E houve depois um segundo em 2006. Esse projeto teve o nome SIAM, porque o primeiro livro foi publicado em inglês e são as iniciais de Scenarios, Impacts and Adaptation Measures [Cenários, Impactos e Medidas de Adaptação]. Houve um SIAM 1 e um SIAM 2. Desde essa altura que - e esses livros estão acessíveis para quem tenha a oportunidade e queira consultar ou ler - nesses estudos está muito explícito quais seriam as consequências das alterações climáticas nos vários setores socioeconómicos, como sejam recursos hídricos, floresta e biodiversidade, zonas costeiras, saúde humana, por aí fora. É preocupante, sim, e estou preocupado com essa questão agora em particular das ondas de calor. A situação vai continuar a agravar-se se se mantiverem as causas do problema. Se mantivemos a causa de um problema, o problema não desaparece. As alterações climáticas só irão, digamos, enfraquecer, desaparecer, se fizermos uma transição energética para as energias renováveis. Mas não somos só nós, Portugal ou a União Europeia. É o mundo inteiro. Mas fazê-lo é extremamente difícil..Área ardida este ano já é oito vezes superior à do mesmo período de 2024. Fogos já consumiram 42 mil hectares.Combate às alterações climáticas está longe de ser uma prioridade na vida dos portugueses