"Não vai laquear as trompas aqui nem em nenhum hospital público”. Terá sido com estas palavras que a 21 de agosto de 2024 a chefe do serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Tomar (Unidade Local de Saúde Médio Tejo) recusou o pedido de laqueação de trompas de Maria, então com 32 anos. Sabendo que tinha direito legal àquele procedimento, Maria apresentou queixa à Entidade Reguladora da Saúde (ERS). Em resposta datada de 11 de setembro último, este órgão fiscalizador deu-lhe razão, frisando que, nos termos da lei vigente, qualquer maior de 25 anos capaz de prestar consentimento informado tem direito de acesso à esterilização voluntária."Aceder à cirurgia em apreço configurava um direito da utente -- direito que a Unidade Local de Saúde Médio Tejo, por intermédio da [médica em causa] manifestamente violou, não tendo validado a respetiva proposta cirúrgica, inviabilizando que o registo provisório em LIC [lista de inscritos em cirurgia] se convertesse em definitivo, o que, por seu turno, culminou com o cancelamento da inscrição de [Maria] naquela LIC", lê-se na deliberação da ERS, que conclui: "[Maria] viu-se forçada a regressar à estaca zero".O hospital foi assim instado a “garantir, em permanência, o cumprimento do direito de acesso, tempestivo e adequado, a cuidados de saúde dos utentes, nomeadamente à esterilização voluntária”, certificando que os seus profissionais estão devidamente informados sobre a matéria. Esta deliberação da ERS será a primeira sobre o direito à esterilização voluntária, já que, segundo foi comunicado ao DN pelo regulador, antes da queixa de Maria nenhuma ali dera entrada sobre recusa de acesso. Porém, como o jornal reportou na sequência da notícia, publicada a 27 de agosto de 2024, sobre o caso de Maria, a recusa infundada de esterilização não é incomum no Serviço Nacional de Saúde. Só que, como se conclui dos testemunhos prestados ao DN por várias mulheres objeto dessa recusa, a maioria não está ciente da letra da lei. Esta — a lei — data de 1984 e impõe apenas, para além da idade mínima de 25 anos, a existência de uma “declaração escrita devidamente assinada, contendo a inequívoca manifestação de vontade de que desejam submeter-se à necessária intervenção e a menção de que foram informados sobre as consequências da mesma, bem como a identidade e a assinatura do médico solicitado a intervir.” Está assegurado o direito dos médicos à objeção de consciência — mas nem no caso de Maria nem em qualquer outro daqueles de que o DN teve conhecimento houve invocação desse direito: apenas uma recusa liminar, geralmente invocando ou a ausência de filhos, ou o facto de os terem, ou serem “demasiado novas” ou “demasiado velhas”.O que sucedeu com Maria, segundo esta narrou ao DN e à ERS, foi que, num telefonema, a diretora de serviço de ginecologia e obstetrícia do hospital lhe disse que ela não podia fazer o procedimento por ter 32 anos, um filho com menos de um ano (10 meses) e não sofrer de qualquer condição grave. Viria depois a saber que após esse telefonema a obstetra deu ordem para que a retirassem da lista de espera para cirurgia, na qual tinha sido provisoriamente colocada pela médica que a tinha atendido na consulta de planeamento familiar do hospital.Comportamento de médica foi “inaceitável”, reconhece hospitalEm resposta às perguntas do DN, em agosto de 2024, o hospital assegurou que a recusa se fundara em “critérios única e exclusivamente clínicos”, a saber, “que a realização do procedimento cirúrgico, exclusivamente para a realização de uma laqueação de trompas, num momento de pós-parto/puerpério da utente, envolveria riscos para a sua saúde que são desproporcionais.” Esta garantia (invocando erroneamente o puerpério, período de até seis semanas após o parto) seria porém abandonada nas conclusões do processo disciplinar que, na sequência de uma queixa de Maria e do noticiário do DN, o hospital instaurou à diretora do serviço de obstetrícia, e no qual a obstetra apresentou outro motivo para a recusa. Disse então a médica em sede de procedimento disciplinar, e segundo o que o hospital transmitiu à ERS, que, "contactada a utente, por via telefónica, foi-lhe transmitido que a proposta seria por ora retirada da lista para cirurgia, tendo em conta o facto de estar a amamentar, pois que o procedimento teria, com toda a probabilidade, um impacto negativo sobre a continuidade da amamentação, podendo inviabilizá-la de todo". Uma justificação que o hospital não acolheu, já que, ainda de acordo com o esclarecimento enviado pelo hospital à ERS, Maria “efetivamente preenchia todos os critérios legais para exercer o seu direito à escolha da esterilização voluntária”, concluindo-se que “a profissional médica, diretora do serviço de obstetrícia, competente para validar a proposta cirúrgica emitida (…) não fundou a sua decisão de recusa em qualquer legítima justificação, dado que inexistia qualquer fundamento legal ou clínico para o efeito”. Tal comportamento, considerou o hospital, mesmo se “a profissional médica agiu com a convicção de melhor salvaguardar os interesses da utente”, “é inaceitável”. A sanção decidida (em janeiro de 2025) foi uma repreensão escrita suspensa por seis meses, mantendo-se a obstetra diretora de serviço até ao presente. Em informação prestada então ao DN, o hospital asseverou que iria determinar “a realização de uma ação de sensibilização aos profissionais do Serviço de Ginecologia-Obstetrícia sobre o acesso ao disposto no normativo legal que rege a opção de escolha da utente pelo procedimento de esterilização voluntária”.Contudo, atendendo à resposta que a unidade de saúde deu à ERS, tal ação só terá tido lugar em agosto de 2025, constando de uma “circular normativa” na qual, entre outras advertências, se encontra esta: “No que conceme a orientações clínicas, os profissionais devem assegurar que seja respeitado sem reservas o direito a opção pela esterilização voluntária, quando inexista motivo clínico para a recusa e estejam preenchidos os pressupostos legais para tanto (…).”“O cumprimento desta circular”, avisa o documento, “poderá ser objeto de auditoria interna. O não cumprimento das orientações poderá implicar medidas corretivas, nos termos do disposto no Regulamento Interno e da legislação aplicável em matéria disciplinar laborar”.Das três queixas apresentadas por Maria, apenas uma aguarda resposta: a que enviou à Ordem dos Médicos. Está, informaram-na em dezembro de 2024 e de novo em março de 2025, em instrução.A 3 de setembro de 2024, o DN questionou o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos sobre em que circunstâncias, para além da invocação de objeção de consciência (que implica remissão para outro profissional), considera aquele órgão que um médico pode recusar a laqueação de trompas perante pedido, devidamente formalizado, de mulher maior de 25 anos, e se não é obrigatório, do ponto de vista deontológico, que uma recusa seja formalmente fundamentada. Um ano depois, e apesar da insistência do jornal, não houve resposta.Quanto à laqueação solicitada por Maria, ainda não aconteceu. Após a recusa do Hospital de Tomar, o médico de família referenciou-a para outro hospital, onde teve de, como escreve a ERS, “voltar à estaca zero”. Continua em lista de espera para a cirurgia. .“Não vai laquear as trompas aqui nem em nenhum hospital público”.Recusa liminar de laqueação de trompas é comum no SNS. Hospital de Tomar abre inquérito.Obstetra sancionada por recusar esterilização voluntária .Laqueações diminuem para um quarto e vasectomias quase triplicam desde 2014