O Hospital de Tomar/Unidade Local de Saúde Médio Tejo decidiu, após inquérito disciplinar, aplicar uma sanção, por “violação dos deveres laborais”, à diretora do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia, Ivone Caçador. De acordo com informação enviada por esta unidade de saúde ao DN, o inquérito instaurado a partir da queixa de uma utente - a quem o jornal deu o nome de Maria quando em agosto de 2024 noticiou o caso - “veio a apurar que a utente preenchia todos os critérios legais para exercer o seu direito à escolha do método contracetivo de laqueação das trompas, e que a trabalhadora visada não agiu com zelo, justificando a aplicação de uma sanção de repreensão escrita”.Os critérios para aceder a uma laqueação de trompas (ou a uma vasectomia) estão definidos há 41 anos, na lei 3/84 de 24 de março: ser maior de 25 e requerer formalmente, com consentimento informado, o procedimento.Na sua resposta ao jornal, o hospital informa que “a administração determinou também a realização de uma ação de sensibilização aos profissionais do Serviço de Ginecologia-Obstetrícia sobre o acesso ao disposto no normativo legal que rege a opção de escolha da utente pelo procedimento de esterilização voluntária, no âmbito da promoção dos direitos reprodutivos das/ dos utentes na esfera do Serviço Nacional de Saúde”.É igualmente comunicado que foi determinada “a reinscrição da utente em lista de espera para o procedimento cirúrgico” (lista de espera da qual tinha sido retirada por ordem da diretora do serviço alvo da sanção disciplinar).Uma informação que só chega a Maria por via do DN. Na verdade, a comunicação que lhe foi endereçada pelo hospital sobre o término do processo, que lhe chegou no dia 21 de janeiro, é lacónica: informa que foi decidia uma sanção disciplinar, mas não é dito a quem ou que sanção, nem especificado em que consistiu a falta punida, ou apresentadas desculpas. “Posso considerar isto uma pequena vitória, simplesmente por saber que algo aconteceu”, comenta. “Mas, na verdade, não faço ideia de que tipo de sanção será aplicada, ou se alguma coisa vai mudar na forma como neste hospital lidam com pedidos como o meu. Durante todo este processo andei sempre atrás da informação, com muito pouca ou quase nenhuma iniciativa por parte do hospital. E em momento nenhum - nem mesmo agora, que parecem dar-me razão - tive apoio por parte do hospital para efetuar a laqueação, sendo por exemplo reencaminhada para outra unidade. Tive que fazer um novo pedido noutro hospital, ainda por cima fora do meu distrito, e recomeçar do zero.”A repreensão escrita é, do cardápio das sanções previstas no Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, a mais leve, consistindo em “mero reparo pela irregularidade praticada”. De acordo com o que comunicado ao DN, Ivone Caçador permanece diretora de serviço. Retirada da lista de espera sem justificação clínicaMas regressemos a 21 de agosto de 2024, quando, como o DN noticiou na altura, a médica ligou a Maria para lhe comunicar que recusava liminarmente o pedido de laqueação de trompas que esta, então com 32 anos, fizera na consulta de planeamento familiar do hospital. De acordo com Maria, quando perguntou à obstetra se ia ser encaminhada para outro hospital, esta respondeu: “Não vai laquear as trompas aqui nem em nenhum hospital público”. Ao jornal, Ivone Caçador não negou os termos da conversa.Maria viria subsequentemente a ser notificada, por carta, de que a sua inscrição na lista de espera da cirurgia fora anulada naquele mesmo dia. Nunca recebeu - embora a tenha formalmente pedido - qualquer justificação clínica da decisão. Ao DN, que na preparação da primeira notícia sobre o caso questionou o hospital sobre o motivo da recusa, perguntando se esteve em causa objeção de consciência (admitida pela lei para este procedimento, implicando porém encaminhamento para outro médico), a justificação apresentada, atribuída à direção do serviço de Ivone Caçador, foi o facto de Maria ser “puérpera” e ter um bebé: “Esta decisão (...) foi tomada após uma cuidadosa avaliação do estado de saúde reprodutiva da mesma – puérpera, com um filho de idade inferior a um ano – e das suas necessidades contracetivas (…) e de forma alguma baseada em qualquer convicção pessoal.” No momento do pedido, o filho de Maria tinha 10 meses; o puerpério é, como certificou ao jornal o presidente do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia, José Furtado Preso, o período de seis semanas após o parto.No esclarecimento enviado a 26 de agosto ao DN, a médica recusava “veementemente quaisquer suspeitas sobre a sua actuação clínica, ética e deontológica”, reforçando que “o critério que levou à decisão tomada de não elegibilidade a este procedimento [a laqueação] foi exclusivamente clínico, como, aliás, são avaliadas todas e quaisquer decisões que envolvam procedimentos ou tratamentos a realizar aos utentes pelos especialistas médicos, no âmbito de uma prática responsável do exercício da profissão”. No entanto, dias depois, a 29 de agosto, após rececionar a queixa de Maria, o hospital abriu um inquérito e - segundo esclarece agora - recolocou-a em lista de espera. “Dizer que não e pronto não é admissível”O ocorrido no Hospital de Tomar está longe de ser uma exceção, quer em Portugal quer noutros países onde a esterilização voluntária é permitida. Numa investigação posterior sobre o acesso a este procedimento, publicada a 22 de setembro, o DN ouviu várias mulheres a quem sucedeu o mesmo - recusas sem qualquer justificação clínica nem invocação de objeção de consciência. Por exemplo a Joana, residente no Alentejo, foi em janeiro de 2023 dito por um médico, na consulta de interrupção de gravidez (com dois filhos, decidira não ter um terceiro), quando perguntou se podia fazer uma laqueação: “Estou a ver que ainda tem 30 anos e apenas dois filhos. Ninguém lhe faz uma laqueação nessas circunstâncias” Este desassombro na negação de um direito garantido pela lei, tão assertivamente assumido por médicos do SNS, só poderá explicar-se com ignorância das normas legais. Ou com aquilo a que o recente relatório do parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre objeção de consciência em saúde descreve como formas ilegítimas deste direito outorgado aos profissionais de saúde - tanto mais que em nenhum dos casos conhecidos pelo DN o clínico em causa se assumiu objetor.Como referido, este exorbitar da função do médico não é exclusiva dos clínicos portugueses. No diário francês Le Monde, em janeiro de 2024, uma reportagem sobre a esterilização voluntária antes dos 30 anos chegava à conclusão de que “para os jovens adultos sem filhos, e que não os querem ter, conseguir aceder a uma laqueação de trompas ou a uma vasectomia de objetivo contracetivo é ainda uma corrida de obstáculos”. E já em 2017 o Journal of Obstetrics and Gynaecology publicara um artigo no qual se comprovava que no Canadá várias mulheres com menos de 30 anos tinham, entre setembro de 2013 e março de 2017 - e malgrado o consenso da Sociedade de Obstetras e Ginecologistas do país determinar que a contraceção definitiva deve estar disponível às mulheres (adultas) independentemente da idade ou do número de filhos -, encontrado dificuldades semelhantes à de Maria. A conclusão do artigo é de que recusar pedidos de esterilização definitiva por parte de pessoas convenientemente informadas é uma forma de objeção de consciência e não uma decisão clínica. Quiçá tal visão equivocada possa dever-se, em Portugal, também ao facto de até 2009 o Estatuto/Código Deontológico dos Médicos ter determinado, em contravenção do legalmente disposto, no artigo 54º (Esterilização): “A esterilização irreversível só é permitida quando se produza como consequência inevitável de uma terapêutica destinada a tratar ou evitar um estado patológico grave dos progenitores ou dos filhos”. Impunha-se como “particularmente necessário” que “se tenha demonstrado a sua necessidade” e “que outros meios reversíveis não sejam possíveis”.A maioria das mulheres a quem foi recusada uma laqueação e que falaram com o jornal não conheciam a lei, pelo que não sabiam estar ante uma violação dos seus direitos. Nisso, Maria é uma exceção. Consciente de estar ante um abuso de poder, quis lutar por si e por todas: “Gostaria que mais ninguém tivesse de ouvir o que ouvi daquela médica. Ela podia ter dito por exemplo que a lista de espera era muito longa, que tentasse noutro sítio. Ou que é contra a laqueação, que é objetora, e reencaminhar-me para outro médico. Mas dizer que não e pronto? Não é admissível”.Além de apresentar queixa no hospital, Maria fê-lo também na Ordem dos Médicos (OM) e na Entidade Reguladora da Saúde (ERS). Até agora não teve feedback destas duas instituições. No caso da ERS, a sua queixa será a primeira sobre recusa de esterilização, já que até agosto de 2024, segundo foi comunicado ao DN, não haviam ali entrado reclamações sobre a matéria. Já a OM, questionada pelo DN, a 3 de setembro último, sobre as circunstâncias em que pode ser recusada uma laqueação, a forma correta de recusa, e a legitimidade de uma diretora de serviço a efetuar em nome do hospital, está para responder até agora.Em 2023 houve, de acordo com a Administração Central do Sistema de Saúde, 899 laqueações e 689 vasectomias com objetivo contraceptivo em Portugal. .“Não vai laquear as trompas aqui nem em nenhum hospital público”.Recusa liminar de laqueação de trompas é comum no SNS. Hospital de Tomar abre inquérito.Laqueações diminuem para um quarto e vasectomias quase triplicam desde 2014.Conselho de Ética quer lei sobre objeção de consciência