Escuta “indigna” leva Sócrates a admitir: "Perdi todo o respeito pelo Ministério Público"

No início do terceiro dia de julgamento (o segundo a ser ouvido pelo tribunal), havia um José Sócrates diferente: mais calmo, contendo-se de forma visível para não entrar em confronto direto com a juíza Susana Seca, que preside ao coletivo, e procurando acatar as recomendações feitas pela magistrada (incluindo a de não adjetivar as perguntas que lhe viriam a ser colocadas).Apesar do recato que tentou ter em relação às perguntas da juíza-presidente, que procurou esclarecer relações, nomeadamente entre José Sócrates e o antigo CEO da PT, Zeinal Bava, também ele arguido neste processo. Sobre isso, Sócrates voltou à tese que apresentara na véspera: encontraram-se “uma ou duas vezes” em “eventos tecnológicos” e o gestor “nunca integrou” qualquer comitiva nacional a uma cimeira luso-brasileira realizada em São Salvador da Bahia. “A PT mandava quem queria para assinar esses atos paralelos à margem dessas cimeiras. É um bom exemplo dos tais ‘encontros sociais’ onde eu tropecei em Zeinal Bava”, disse..Bava, Salgado, Salazar e uma pergunta "idiota": José Sócrates até começou calmo, mas acabou a criticar o MP.Mas foi a propósito do escalpelizar da relação Sócrates-Henrique Granadeiro que a contenção até aí mantida foi por água abaixo. Quando o Ministério Público (MP), que tem colocado questões a Sócrates por intermédio do procurador Rui Real, tentou justificar a sua versão dos factos - de que o antigo primeiro-ministro e o ex-chairman da PT seriam amigos - ao pedir a reprodução de quatro escutas telefónicas (e um SMS). Na primeira conversa reproduzida na sala, ouviu-se um telefonema com vários temas, incluindo as relações Portugal-Brasil.No sistema de som da sala de audiências, ouviu-se o antigo primeiro-ministro a dizer que Granadeiro “tem um lugar especial” entre os seus conhecidos. Sócrates pergunta também sobre “o Zeinal [Bava]”, ao que Granadeiro responde que “está a pegar naquilo”. Tudo corria bem até aí, mas o caldo entornou quando, na mesma escuta, o antigo primeiro-ministro relata um jantar “de duas horas” que teve com Mário Soares e António Almeida Santos, seus “amigos”, onde são reveladas conversas nesse âmbito - mas paralelas ao processo. Nomeadamente, uma história em jeito de piada sobre a vida íntima de António de Oliveira Salazar e da sua governanta, Maria, e que levou a juíza Susana Seca a pedir à funcionária que parasse de imediato a reprodução. E foi aí que a calma de Sócrates deu lugar à contestação e à agressividade que têm marcado o início do julgamento da Operação Marquês.Visivelmente irritado, disse ser “inaceitável” expor aqui dois dos seus “mais queridos amigos, entretanto até já falecidos”. Sócrates voltaria mais tarde ao assunto, dizendo que “perdeu todo o respeito” pelo MP depois deste episódio. Sobre o caso, José António Barreiros, advogado de Zeinal Bava, pediu que, a partir de então, o MP justificasse o que queria provar ao pedir a reprodução de escutas telefónicas ou de outras interceções.Sanadas as divergências, José Sócrates continuou depois confirmando que existia, sim, uma relação de amizade com Henrique Granadeiro (ao contrário do que acontecia com Ricardo Salgado de quem, como na véspera, voltou a dizer nunca ser próximo). “Sou amigo de Henrique Granadeiro desde que o conheci, há muitos anos, através da sua ex-mulher, Margarida Marante. Eu era muito amigo dela e acabei por ficar amigo de Henrique Granadeiro, muito antes de ser primeiro-ministro”, justificou. À saída para o almoço, Sócrates voltou a criticar o MP pelo “ato absolutamente indigno” que foi a reprodução da escuta telefónica, que classificou como “voyeurista”.Munindo-se deste meio de prova, o MP quis ainda esclarecer se Sócrates era ou não (como diz) amigo de Ricardo Salgado. Para isso, recorreu a uma conversa com José Maria Ricciardi, primo do ex-banqueiro, onde trocavam votos de Boas Festas. Na conversa, Sócrates endereçou ainda os votos “ao amigo Ricardo [Salgado]”. Ainda assim, reiterou: não era “amigo” do ex-banqueiro e este adjetivo é “uma forma de tratar alguém socialmente”, garante. “Repito: desde que saí do Governo em junho de 2011 até, salvo erro, novembro de 2013, numa altura em que lhe decidi ligar porque ele foi constituído arguido, nunca mais falei com ele”, rematou.Houve contudo um momento de uma possível contradição entre esta tese e a do MP, quando foram reproduzidas escutas de João Perna, seu ex-motorista, onde se ouve o funcionário a dizer que levou Sócrates “a jantar a casa do Ricardo Salgado” e que ficou com o ex-banqueiro entre as 21h00 e cerca da 01h00. Como se justifica então isto? “Essa investigação policial é interessante. Estive com o dr. Ricardo Salgado até às 22h00. Depois fui para uma outra casa também em Cascais, e por favor não me pergunte qual porque eu não vou dizer qual é, onde fiquei até à 01h00, e o pobre do João Perna teve de esperar, sim. Era tão simples, bastava perguntar.”À saída, acabaria por dizer que o MP continua sem mostrar provas da acusação, e com isso tentam “esvaziar o vazio, fingindo que faz perguntas”. Uma dessas questões (a relacionada com a putativa amizade entre Salgado e Sócrates) foi mesmo classificada como “idiota”. “Passaram quase uma hora a provar que estive em casa de Ricardo Salgado. A pergunta é tão idiota por parte do MP”, considerou utilizando a adjetivação que, na parte da manhã, a juíza lhe proibira na sala de audiências.Sócrates: separação de redes teve validação da AnacomAlém de ter tentado explicar as suas relações com os outros arguidos, José Sócrates foi ainda questionado sobre a Oferta Pública de Aquisição (OPA) da Sonae à Portugal Telecom (PT). À juíza, o arguido afirmou que Belmiro de Azevedo, à altura administrador da Sonae, se encontrou consigo, tendo-lhe comunicado a sua intenção de comprar a empresa, algo que Sócrates recebeu om “satisfação” por considerar que tal seria “muito bom” para a economia. Uma coisa é certa: “Belmiro de Azevedo entrou pelo gabinete a dizer que tinha a solução para a PT. Mas cada vez que abria a boca, o engenheiro Belmiro de Azevedo achava que tinha a solução para o país.” Além disso, garantiu, a separação de redes (que levou a criar a PT Multimédia) teve o aval da Anacom.Já sobre o grupo Lena – que foi abordado de forma muito superficial –, José Sócrates admitiu ser próximo de Carlos Santos Silva e que este último conhecia o seu “querido primo” José Paulo Pinto de Sousa. Além disso, o antigo governante admitiu ter “intercedido” junto de outros países, como a Venezuela, em nome de outras empresas, como fez com a Lena já depois da sua saída de funções a propósito de um projeto em Angola. A que empresas prestou esse serviço? Não especificou, dizendo: “Não querendo ser como o dr. Luís Montenegro [no caso Spinumviva], não posso dizer quais são. Se as empresas me autorizarem, trarei essa lista amanhã [quinta-feira, dia 10 de julho].O que disse Sócrates à juízaComo conheceu Zeinal Bava?“Encontrámo-nos uma ou duas vezes em eventos. Não me recordo de ter estado com ele depois de ter assumido funções governativas. [Bava integrou uma comitiva de Estado numa cimeira luso-brasileira onde foram assinados acordos sobre telecomunicações?] Não integrou comitiva nenhuma. Isso é um ato paralelo e a PT mandava quem bem entendia. É um bom exemplo dos tais ‘encontros sociais’ onde eu tropecei em Zeinal Bava.”Era amigo de Henrique Granadeiro?“Sou amigo de Henrique Granadeiro desde que o conheci, há muitos anos, através da sua ex-mulher, Margarida Marante. Eu era muito amigo dela e acabei por ficar amigo de Henrique Granadeiro, muito antes de ser primeiro-ministro.”Que relação têm José Paulo Pinto de Sousa e Carlos Santos Silva?“O Carlos Santos Silva é meu amigo desde o liceu da Covilhã e passávamos férias juntos. Numa dessas ocasiões o José Paulo, um dos meus primos mais queridos, juntou-se a nós e foi aí que se conheceram. Para ser completamente honesto, o meu primo disse-me que tinha negócios com Carlos Santos Silva.”Era amigo de Ricardo Salgado?“Não somos amigos, nunca fomos, nem tinha o seu número de telefone. Repito: desde que saí do Governo em junho de 2011 até, salvo erro, novembro de 2013, numa altura em que lhe decidi ligar porque ele foi constituído arguido [no caso BES/GES, que levou à queda do império Espírito Santo], nunca mais falei com ele.” .A filosofia, a ‘smoking gun’ e o embate com a acusação: o primeiro dia de Sócrates em tribunal.Operação Marquês: mais de 10 anos e 50 recursos depois, arranca o julgamento de José Sócrates

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