De 2022 a 2024, 2719 médicos solicitaram à Ordem certidões de Good Standing - ou seja, certidões que comprovam as suas competências - para poderem exercer no estrangeiro. O número tem vindo a aumentar, rondando quase sempre os mil médicos por ano. Em 2024, foram registados 972 pedidos de certidões para emigrar, em 2023, 944, e em 2022, quando ainda havia limitações a estes pedidos, devido ao estado de emergência do país, provocado pela pandemia da Covid-19, foram 803. A Secção Regional do Sul é a que tem recebido maior número de pedidos para saídas, 519, no ano passado, 497, em 2023, e 426, em 2022, o que representa um total de 1042 médicos nestes últimos três anos, sendo esta a região do país com maior carência de recursos humanos. Segue-se a Secção Regional do Norte, com 405 pedidos, em 2024, que se juntam a 401, de 2023, e a 343, de 2022, totalizando 1149 pedidos. A Secção Regional do Centro é a que gere menos pedidos, não tendo chegado sequer à meia centena em que cada um destes anos. Em 2024, foram 48 médicos a pedir certidões para emigrar, em 2023, 46, e, em 2022, 34, o que dá 128. Seja como for, o bastonário alerta: “O impacto desta emigração é brutal para o Serviço Nacional de Saúde (SNS)” e para “os utentes”. “São quase mil médicos a sair todos os anos do país, já viu o que é para especialidades como Medicina Geral e Familiar e Medicina Interna, que são pilares nos hospitais e nos cuidados primários?” Para Carlos Cortes “o fenómeno da emigração é uma tendência crescente que está a preocupar, e muito, a Ordem”. E conta: “No último concurso de colocação para especialistas, a Ordem lançou um questionário aos médicos que não escolheram especialidade e percebemos, naquele momento, que muitos deles iam emigrar. E esta intenção tem a ver com a falta de atratividade das remunerações no SNS, nas condições de trabalho e, no que respeita aos médicos internos, até já na formação”. .Bastonário diz que nada foi feito para evitar saída de médicos do SNS . O representante da classe diz ainda que a preocupação da Ordem é de tal forma em relação a este fenómeno que “está a ser criar um gabinete de apoio a médicos emigrantes que queiram regressar ao país”. Remunerações e condições de trabalho levam às saídasOs dirigentes dos dois sindicatos da classe médica sustentam que o “número de saídas é elevado”, mas “não surpreende” e as razões “são sempre as mesmas”, dizem. “São consequência das remunerações praticadas em Portugal” e das “condições de trabalho no SNS”. Para ambos os dirigentes, se nada for feito pelo poder político, “o número continuará a crescer. Não tenhamos dúvidas, os jovens médicos encontram facilmente lá fora condições melhores do que as que existem no país”, destaca Joana Bordalo e Sá da Federação Nacional dos Médicos (Fnam). Nuno Rodrigues, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), argumenta: “Não adianta o poder político avançar com medidas punitivas que impliquem a obrigatoriedade de os médicos ficarem mais dez anos, após a sua formação, no SNS. Isso só vai fazer com que cada vez mais cedo as novas gerações procurem a formação fora do país.” O bastonário concorda, acrescentando que “a formação médica em Portugal é muito valorizada e reconhecida noutros países, sendo mais fácil aos médicos portugueses emigrar e encontrarem melhores alternativas do que, por exemplo, aos franceses”. Carlos Cortes assume que o tema da “emigração e o que deve ser feito para conseguir manter os médicos em Portugal e no SNS continua a ser uma prioridade, porque é preciso corrigir remunerações, mas também as carreiras e as condições de trabalho”. “Médicos não recuperaram poder de compra perdido” Haver 2719 médicos a querer emigrar nos últimos três anos não surpreende Joana Bordalo e Sá. E se dúvidas houvesse sobre as razões, o último estudo do economista da área da Saúde, Eugénio Rosa, que analisou os aumentos salariais dos médicos na última década, comparativamente com os aumentos do ordenado mínimo, desfazia-las. “Em 2012, a média do salário de todos os médicos representava 6,8 vezes o salário mínimo da altura. Em 2025, essa média caiu para 4,3 vezes do salário mínimo”. Ou seja, reforça, “isto representa que o salário mínimo aumentou, e bem, cerca de 80%, e o que salário dos médicos aumentou entre 15% a 19%. O que faz com que os médicos não tenham conseguido recuperar cerca de 20% do poder de compra que perderam na última década”, sublinhando: “Os médicos portugueses continuam a ser dos mais mal pagos a nível europeu.” .Nos últimos seis anos, saíram mais de seis mil médicos do SNS. Joana Bordalo e Sá destaca ainda que a grande desmotivação da classe também surge pelas condições de trabalho. “Em países como França, Bélgica, Alemanha, Holanda e Dinamarca, ou na Escandinávia, em geral, os médicos encontram horários de trabalho de 30 horas a 32, não sendo obrigados ao número interminável de horas que têm de fazer no SNS, sobretudo nos serviços de urgência, onde, muitas vezes, é preciso fazer duas a três jornadas por semana de 24 horas. Os médicos, sobretudo os mais jovens, sabem que conseguem, quer seja no estrangeiro, ou até no setor privado, um maior equilíbrio da sua vida profissional com a pessoal e assim que acabam os cursos acabam por procurar essas opções”.Por isto, reforça, “estes números não nos surpreendem. São uma consequência das condições existentes no SNS, que continuam a não ser atrativas”. A dirigente da Fnam diz que o poder político deveria fazer uma avaliação do estudo do economista Eugénio Rosa, porque, afirma, as conclusões “são extremamente revoltantes. Os médicos são uma classe altamente diferenciada e com altas responsabilidade e não são compensados por isso. É preciso não esquecer que todos os dias trabalhamos com vidas humanas, com a pressão das urgências e com cansaço acumulado. E cada vez mais tendemos a ser desvalorizados”. A médica aproveita ainda para criticar o ministério de Ana Paula Martins, que “recusou dialogar com a estrutura sindical que mais médicos representa no SNS, que é a FNAM. Mas vamos manter em cima da mesa as soluções que defendemos junto do próximo governo, qualquer que seja o ministro ou ministra, exigindo sentarmo-nos à mesa para negociar”."O que é preciso é tratar bem os médicos por cá" O secretário-geral do SIM, Nuno Rodrigues, concorda que os pedidos e saídas para emigração têm a ver com “um misto que envolve remunerações e condições de trabalho - as gerações mais novas tendem a optar por carreiras no exterior, porque sabem que terão maior capacidade financeira nesses países - mas, também, com o facto de vivermos num mundo globalizante, onde cada um tem a sua ambição, e, muitas vezes, esta tem a ver com outras experiências de formação fora do país”. Nuno Rodrigues admite que os mais de 2700 pedidos de certidões “é um número elevado, embora este não deva ser muito diferente do de outras profissões a saírem do país”. Só que, no caso dos médicos, “é mais complicado", sustenta. Para o dirigente, "a retórica negativa do SNS” pesa muito nestas decisões, reforçando o alerta ao poder político: “Não vale a pena aprovar medidas penalizadoras, individuais e de castigo, porque a medicina é um campo muito vasto, sempre com muita inovação e a qualquer momento, os médicos arranjam alternativas. O que é preciso é tratar bem os médicos por cá para que fiquem de livre vontade.”