Desde o início da pandemia de covid-19 que o governo decretou o trabalho à distância como preferencial para todas as profissões compatíveis com este regime. Se a maioria de nós não tem dificuldade em imaginar contabilistas, juristas ou professores em teletrabalho, já é mais difícil imaginar profissionais de saúde ou atores nesse regime..Filipa Mendes, atriz-palhaça e doutora de nariz vermelho há cinco anos, "nunca imaginou" vir a exercer a sua profissão em casa, frente a um ecrã.."Se me tivessem perguntado se isso ia acontecer eu ia dizer que não. No início da pandemia as pessoas duvidavam como é que iam conseguir fazer o trabalho como faziam. E, para nós, isso é possível atualmente.".O nós a que Filipa se refere é a equipa da Operação Nariz Vermelho que, sem poder entrar no hospital, teve de se reinventar para continuar a chegar às crianças que visitavam. Saíram das enfermarias para abrir consultório no YouTube, onde criaram o canal TV ONV..Quando os hospitais fecharam as portas, "nós ficámos um bocadinho à toa", admite Andreas Piper que encarna o Doutor Félix Férias desde 2003. "Caímos ali num buraco a pensar: o que vai ser de nós? Como é que vamos continuar a fazer o nosso trabalho? Era assim um bocadinho uma sensação de desespero. E a primeira ideia que surgiu foi fazer a TV ONV", descreve o ator-palhaço..A maioria dos palhaços não sabia filmar nem editar vídeo, mas a necessidade de continuar a missão de levar alegria às crianças hospitalizadas aguçou o engenho. "Começámos a fazer pequenos vídeos em casa. Cada um fazia com o seu telemóvel, em casa, um videozinho por semana de três minutos, para ser divulgado no YouTube", detalha Andreas..Milhares de visualizações depois e já com mais de 300 vídeos publicados, os doutores-palhaços decidiram arranjar uma forma de regressar ao hospital para "assegurar um contacto mais direto entre os doutores-palhaços e as crianças, que não estivesse dependente do regresso das visitas presenciais aos hospitais", explica Fernando Escrich, diretor artístico da Operação Nariz Vermelho.."Faltava o contacto, esta coisa do olho a olho, em tempo real. Sentimos que faltava o contacto direto com o hospital", reconhece Andreas Piper..Com a experiência acumulada com o lançamento da TV ONV, os doutores-palhaços passaram das gravações aos diretos com as "teleconsultas" no âmbito do projeto Palhaços na Linha..A Doutora Aurora Benvinda e o Doutor Félix Férias são uma das 14 duplas de palhaços profissionais que semanalmente voltaram a entrar em 13 dos 17 hospitais com os quais colaboram. Não chegam "ao vivo e a cores" mas através de tablets doados por uma empresa que circulam pelos hospitais apoiados em carrinhos de soro puxados pelos profissionais de saúde.."É incrível podermos continuar a nossa missão através de um tablet, de uma videochamada diretamente com as crianças", afirma Filipa Mendes, visivelmente satisfeita. "Não estamos presencialmente mas esse momento de interação é possível.".A forma de interagir com as crianças hospitalizadas mudou, bem como a forma de trabalhar da dupla de palhaços. Habituados a dar consultas lado a lado e agora cada um em sua casa, a Doutora Benvinda e o Doutor Férias tiveram de reaprender a fazer palhaçadas juntos, separados pelo ecrã..Uma nova forma de trabalhar que Filipa e Andreas consideram que lhes permitiu dar "rédea solta à criatividade" apesar dos limites da distância e do retângulo da tela.."Há muito movimento, muita fisicalidade, que podemos fazer acontecer dentro dessa janela", explica a Doutora Benvinda exemplificando os movimentos que pode fazer agora - saltar para cima do sofá, afastar-se da câmara e "desaparecer" ou tocar viola - e que nunca faria no hospital.."Lembro-me sempre de que é uma espécie de um teatro de fantoches, que é uma caixinha onde acontece a história e tudo o resto é tapado à volta", compara Andreas.."Podemos ter montes de tralha à volta que é invisível no momento da atuação e que podemos fazer aparecer de surpresa e fazer desaparecer - e antes não tínhamos esta oportunidade. Só podíamos levar aquilo que cabia nos bolsos", explica o ator-palhaço..Em casa, os bolsos das batas brancas estão vazios e os adereços invadiram as mesas e as estantes. Mas apesar de o décor ser diferente, esta nova forma de ser palhaço em teletrabalho não é menos exigente. "É um trabalho que pede muito mais atenção, muito mais escuta, muito mais ligação", distingue Filipa..Apesar das novas competências que a dupla adquiriu desde que iniciou o trabalho à distância, ambos sentem a falta dos corredores dos hospitais e de levar alegria às crianças "estando lá".."Desejo voltar ao hospital, estar lá presencialmente e fazer o trabalho pessoal com as crianças", frisa Andreas.."Acredito que quando voltarmos aos hospitais - um dia, quando for possível - vamos levar esta experiência como algo que nos enriqueceu", acrescenta Filipa..E quando a pandemia terminar, será que o teletrabalho irá continuar a fazer parte do dia-a-dia de Filipa e Andreas? A Doutora Benvinda não quer fechar a "janela do ecrã" que agora se abriu, mas lembra que o trabalho do palhaço vive muito das "pistas não verbais" e precisa da proximidade física com as crianças..O Doutor Félix frisa que, embora prefira "dar consultas" ao vivo, tudo o que aprendeu entretanto "irá sempre ter o seu uso". "Não sabemos quando vem a próxima crise. É sempre bom ter esses recursos para estar armado seja para o que for", remata..dnot@dn.pt