Num quase impercetível milímetro cúbico de massa tumoral podem estar contidos milhares de diferentes tipos de proteínas. Identificar, no meio dessa floresta de moléculas, biomarcadores que sejam alvos relevantes no combate àquele tumor (como proteínas expressas de forma anómala em células cancerígenas) é uma tarefa gigantesca que a tecnologia veio desbloquear. Nos laboratórios do IPO do Porto, o espectrómetro de massa, uma espécie de superaparelho que permite analisar a biologia detalhada do tumor a nível molecular, “tornou-se o coração” da investigação levada a cabo pela equipa do cientista José Alexandre Ferreira, que está a entrar na fase decisiva para a validação de uma vacina contra vários tipos de cancro, o que poderá ser um avanço significativo no combate a uma das mais temidas doenças do nosso tempo.“No fundo, o espectrómetro permite-nos encontrar coordenadas de GPS mais precisas para dirigirmos a nossa terapia”, explica José Alexandre Ferreira sobre a importância deste processo de identificação de “assinaturas moleculares específicas” presentes nas células de cada tumor..Mais de 60 mil novos casos de cancro por ano. Mortes abaixo dos 70 anos são preocupação.A criação dessa base de dados de potenciais alvos é a primeira fase de todo o trabalho. Uma fase fundamental que permite aos investigadores terem a melhor informação disponível para depois passarem ao desenho, em laboratório, de uma vacina que possa ser eficaz contra os alvos identificados. “Essa é uma segunda fase em que passamos à engenharia de moléculas, ou seja, sintetizamos moléculas em laboratório, refletindo o que vemos nos tumores, e criamos, portanto, o composto molecular que é a vacina, para ativarmos o sistema imunitário face aos alvos que o espectrómetro nos ajudou a identificar”, detalha o investigador do IPO Porto.Depois dessa dimensão de bioengenharia, chegam os testes in vitro (laboratório) e in vivo (modelo animal) para pré-validar a descoberta feita, fases pelas quais já passou também, com bons resultados, o protótipo da vacina desenvolvida pela equipa de José Alexandre Ferreira, que - resume o investigador - está agora no “ponto de caramelo” para poder avançar para a fase decisiva de ensaios clínicos (em humanos), a última porta giratória que seleciona os produtos aptos a entrarem no mercado.Para aqui chegar, o processo foi, no entanto, bem mais longo do que o resumo feito até aqui. “Já lá vão quase 12 anos de trabalho neste projeto”, revela o cientista. Para que esta vacina possa chegar à prática clínica faltarão ainda mais alguns, se bem-sucedidas as etapas finais, às quais se dedica agora uma equipa de 16 elementos liderados por José Alexandre Ferreira. É assim a investigação em ciência: um longo túnel a percorrer até encontrar a luz do dia. Pelo caminho, há milhares de peças para descobrir e fazer encaixar na posição certa para completar o puzzle complexo que desbloqueia a inovação. No caso deste protótipo de vacina desenvolvido no IPO Porto, os açúcares foram as peças de partida.. O investigador de 44 anos estuda o papel dos açúcares no contexto de algumas patologias do nosso organismo desde que terminou a licenciatura em Química na Universidade de Aveiro, há quase 20 anos. Primeiro no contexto da bactéria Helicobacter pylori, conhecida por infetar grande parte da população e ser um agente promotor do cancro gástrico. “Entretanto, as semelhanças com a glicobiologia humana - porque a Helicobacter pylori expressa alguns açúcares que são muito semelhantes aos nossos, numa estratégia de camuflagem - foi-me introduzindo ao papel dos açúcares noutros contextos”, recorda. Até chegar ao papel que esses glicanos, ou conjuntos de açúcares, desempenham no universo particular dos cancros.“A ligação do Helicobacter ao desenvolvimento de cancro gástrico fez-me perguntar, então, como é que estas coisas mudam no contexto do cancro, e olhando para outros tumores, percebi que muitas das alterações de glicosilação que eu estava a estudar no cancro gástrico depois se refletiam noutros tumores”, explica.Tumor de bexiga como campo de ensaioFoi então que aceitou também o convite para integrar o Centro de Investigação do IPO-Porto, onde encontrou já “muita pesquisa desenvolvida sobre o cancro de bexiga” pela equipa de Lúcio Lara Santos, coordenador do grupo de Oncologia Molecular e Patologia Viral.“Havia muito know-how acumulado e começámos por construir o projeto em cima disso”, refere José Alexandre Ferreira. O tumor de bexiga passou assim a ser o campo de ensaio para entender os mecanismos moleculares que controlam as alterações de glicosilação de proteínas relevantes para a carcinogénese e progressão do cancro. Ou seja, primeiro “perceber como é que os açúcares que cobrem as células se alteram com o cancro e com a progressão da doença”, para de seguida “identificar que proteínas estão associadas a estes açúcares e entender a sua função biológica”.No caso do cancro, a glicosilação anómala pode criar padrões alterados de açúcares na superfície das células tumorais, permitindo que estas escapem ao sistema imunitário de várias formas. Seja por imunossupressão, pois certos glicanos “desligam” as respostas das células do sistema imunitário, impedindo-as de atacar o tumor; seja por um processo de camuflagem em que os açúcares modificados fazem com que as células cancerígenas se assemelhem a células normais, dificultando o seu reconhecimento pelo sistema imunitário; ou mesmo promovendo a progressão do tumor, já que alguns glicanos favorecem a migração das células cancerígenas, aumentando o potencial de metástases.. “Ou seja, estes açúcares não são só marcadores de doença, como têm um papel funcional na doença, são promotores da doença”, realça o investigador, acrescentando uma etapa seguinte da investigação em que “foi preciso perceber a que proteínas estes açúcares estão ligados” para procurar uma terapia direcionada.O que nos leva de volta ao papel fundamental do tal espectrómetro de massa que permite acelerar a investigação. “Se atingíssemos só os açúcares podíamos ter alguns desafios aqui, porque alguns destes açúcares, mesmo em baixas quantidades, podem estar nos tecidos saudáveis. E, portanto, nós tentamos ultrapassar isto, procurando especificidade molecular. No fundo, procuramos encontrar coordenadas de GPS mais precisas para dirigirmos a nossa terapia.” Isto é, atingir diretamente o alvo sem fazer mal ao que está em volta.Além disso, “estando ligados a diferentes proteínas e em diferentes contextos, estes açúcares têm papéis diferentes para a doença. E também nos oferecem, ao mesmo tempo, uma oportunidade para atingir, de forma diferente, diferentes doenças”, explica José Alexandre Ferreira. E aqui, quando se fala em diferentes doenças, fala-se em diferentes tipos de cancro. Segundo o investigador, cerca de 80% dos tumores sólidos, tanto em fases iniciais como muito avançadas, expressam estas alterações nas estruturas de açúcares das células, o que significa que o espetro de aplicação da vacina em desenvolvimento no IPO “é muito grande”. “Temos evidências que se pode encontrar estes padrões em tumores de bexiga, gástricos, colorretal e vários outros”.Treino do sistema imunitárioA vacina foi desenvolvida para contrariar o mecanismo de defesa dos tumores, treinando o sistema imunitário a reconhecer os glicanos alterados como alvos a serem atacados. Para isso, contém estruturas derivadas desses açúcares tumorais, associadas a moléculas que estimulam a resposta imunitária, ensinando a identificar essas estruturas como “inimigas”. E como diferentes tipos de cancro partilham padrões comuns desses glicanos alterados, a vacina pode então ter um espectro de aplicação mais amplo. Além de permitir gerar anticorpos contra as células tumorais, o protótipo desenvolvido pelo investigador do IPO Porto demonstrou também ser capaz de “criar alguma memória imunológica”, o que permite pensar também “numa proteção contra a recidiva e a metastização”, acrescentando um potencial preventivo ao terapêutico.. Mas há mais fatores de entusiasmo nesta investigação liderada por José Alexandre Ferreira, como o facto de os testes em modelo animal terem revelado “resultados muito encorajadores em modelos muito agressivos, com crescimento muito exuberante, muito rápido, tumores muito invasores que nós conseguimos de alguma forma controlar”. “E com uma particularidade”, acrescenta: “Alguns destes tumores são resistentes à maior parte das terapias que temos disponíveis, tanto a quimioterapia como também algumas das ferramentas novas de imunoterapia”.Ainda assim, sublinha o investigador, neste universo do cancro é irrealista pensar numa solução de “bala mágica” capaz de erradicar uma doença tão diversa. Apesar dos “resultados promissores”, sobram desafios. A capacidade imunossupressora (supressão da resposta imunitária) dos tumores mais agressivos é talvez o principal fator de complexidade nas terapias contra o cancro. “Os tumores não têm só um, têm múltiplos mecanismos de imunossupressão a evitar que consigamos uma erradicação completa da doença”. Daí que, aponta José Alexandre Ferreira, “não podemos entender a descoberta de uma vacina como uma arma única contra o cancro”. O caminho, diz, passa pela “combinação de terapias, e hoje em dia há todo um portfólio de diferentes tipos de terapias, dos anticorpos monoclonais à imunoterapia, que podem ser combinadas para aumentar eficácia terapêutica e contornar esses mecanismos de imunossupressão”.Se ultrapassar todas as fases, esta vacina desenvolvida no IPO Porto “será uma arma mais para o arsenal de terapias à disposição”. “E nós já sabemos, também por ensaios pré-clínicos, que em combinação com outras terapias a nossa vacina potencia o efeito”, assegura.Com a tecnologia já patenteada, os passos finais para o projeto chegar ao decisivo ensaio clínico, em humanos, trazem uma dimensão adicional a um desafio de sempre: o financiamento. “Cada vez que nós ultrapassamos uma fase, os desafios de financiamento aumentam exponencialmente. Nesta altura estamos em ponto de caramelo para nos tornarmos apetecíveis para outro tipo de financiamento. Temos todas as provas de conceito e vamos, neste momento, procurá-lo”. Um desafio de que dimensão? “Estamos a falar aqui de alguns milhões de euros para dar os próximos passos”, revela, adiantando que há já pelo menos uma empresa que se mostrou interessada em investir na tecnologia associada. Se tudo correr como previsto, José Alexandre Ferreira espera ver o seu projeto de uma vida chegar à prática clínica nos próximos cinco a dez anos e trazer um pouco mais de esperança para o combate ao cancro..As vacinas que existem e as que estão em ensaioA ideia de uma vacina que um dia permita curar o cancro, em sentido lato, continua a ser uma miragem de difícil concretização. Ao contrário do que acontece com doenças como o sarampo, varíola ou rubéola, a complexidade dos diferentes tipos de cancro não permite ainda pensar numa solução “one size fits all”, refere o investigador José Alexandre Ferreira. Não há uma solução única, mas já há no mercado algumas vacinas que ajudam a prevenir determinados tipos de cancro e outras em ensaios clínicos à espera de aprovação para entrar na prática clínica.Vacinas Preventivas ou ProfiláticasSão vacinas que ajudam a prevenir infeções causadas por vírus que podem levar ao desenvolvimento do cancro.“É o caso da vacina contra o HPV (Papilomavírus Humano)”, refere José Alexandre Ferreira. A vacina, que faz parte do plano nacional de vacinação, previne cancros do colo do útero, ânus, orofaringe e outros associados ao HPV.Também a vacina contra a Hepatite B reduz o risco de cancro do fígado, já que o vírus da hepatite B pode causar a doença.Vacinas TerapêuticasSão as vacinas usadas para estimular o sistema imunitário a atacar células cancerígenas em pacientes que já têm a doença.Há uma vacina já no mercado, a Sipuleucel-T (Provenge), “aprovada para tratar o cancro da próstata metastático”, lembra o investigador do IPO-Porto. Esta vacina usa células do próprio paciente para estimular uma resposta imune contra o tumor.De resto, há várias outras em ensaios clínicos e pré-clínicos para tentar aprovação no mercado. No Reino Unido, o serviço nacional de saúde (NHS) anunciou estar a tratar o primeiro doente com uma vacina personalizada contra o cancro colorretal e o alargamento de ensaios clínicos a pacientes de vários países europeus.Também no Reino Unido, em agosto, ganhou destaque o arranque do ensaio clínico da primeira vacina contra o cancro do pulmão. O medicamento é produzido pelo laboratório BioNTech e usa também a mesma tecnologia de mRNA que esteve na base da vacina contra a covid-19.Exemplos de avanços que indicam que, num futuro mais ou menos próximo, as vacinas podem ganhar o relevo há muito esperado no combate ao cancro.