Discurso de ódio na GNR e PSP: Inquérito-crime à beira de arquivamento

O inquérito criminal sobre o discurso do ódio nas polícias está num impasse. A PJ e o Ministério Público consideram que a informação obtida pelos "investigadores digitais" do Consórcio de Jornalistas configura uma ação encoberta ilegal e não pode ser considerada prova. Ainda não terão sido propostas escutas ou outras diligências.
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Quinhentos e noventa e um (591) foi o número, pesado, de polícias - 295 militares da GNR e 296 da PSP, a grande maioria no ativo - a quem a investigação de um consórcio de jornalistas portugueses atribuiu a autoria de "comportamentos contrários ao Estado de Direito, apelos à violência e à violação de mulheres, comentários racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos, simpatia pelo Chega e por outros movimentos de extrema-direita e saudosismo salazarista".

As reportagens, publicadas na Visão, Público, SIC, Expresso e no site Setenta e Quatro provocaram um terramoto a vários níveis, político, social e na segurança interna. Não por que fosse uma surpresa haver polícias com estes comportamentos - o DN já os havia noticiado - mas essencialmente pela dimensão, quase seis centenas, e pelo sentimento de impunidade que transparecia nas mensagens que a investigação jornalística transcreveu das redes sociais utilizadas por estes polícias.

Basta olhar para o Brasil e verificar o apoio ao populista Jair Bolsonaro de uma boa parte de polícias e militares, na reserva e no ativo, e o papel que desempenharam na invasão das sedes dos poderes em Brasília no início deste ano, para se ter uma boa imagem da relevância destas forças, que dispõem de armas, nos ataques às democracias, quando tal se proporciona.

Tendo essa noção clara, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro não podia desvalorizar as revelações das reportagens.

As "alegadas mensagens", declarou, são de "extrema gravidade", sublinhando que a "situação exige da nossa parte uma atitude de grande lucidez, firmeza, determinação e consequência".

Salvaguardando que importa "não confundir a parte com o todo" - ou seja, a "esmagadora maioria" dos agentes da PSP e da GNR "zela pela defesa dos valores constitucionais e pelo Estado de direito" -, impôs que quanto aos que não o fazem, "não podemos tergiversar na necessidade de apurar responsabilidades".

Consequente com as suas palavras, ordenou à IGAI (Inspeção-Geral da Administração Interna) que investigasse o caso, devendo o inquérito ter "caráter prioritário".

Ouvido, na altura, no parlamento, a pedido do PCP, BE, PAN e Livre, o ministro garantiu, ainda sem a conclusão de nenhuma investigação, que "à luz das informações" que tinha, considerava não haver "uma infiltração com caráter intencional relativamente às forças de segurança, como se tem vindo a verificar em outros países".

Nessa altura, o alarme público tinha chegado à Procuradoria-Geral da República (PGR) e, na sequência de uma queixa apresentada pela própria direção nacional da PSP, foi pela primeira vez aberto um inquérito-crime às suspeitas de incitamento ao ódio, discriminação e racismo por parte de agentes da autoridade.

O processo foi entregue à secção do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa que investiga o crime especialmente violento e os relacionados com os extremismos. A Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária (PJ) ficou à frente da investigação.

Sete meses depois, porém, o processo está à beira do arquivamento, de acordo com fontes envolvidas nesta inédita investigação.

"Neste momento estamos num impasse, mas terá de ser tomada uma decisão em breve", disse ao DN fonte judicial. Isto porque, explicou, aquilo que seria a prova material - todas as mensagens e lista de nomes associados copiadas de grupos privados de redes sociais que o consórcio de jornalistas disponibilizou numa pen às autoridades - é suscetível de enquadrar uma "ação encoberta não autorizada" e, por isso, nunca será aceite em tribunal.

Este tipo de crime não prevê a ação encoberta tipificada na lei e depende de "prévia autorização do competente magistrado do Ministério Público, sendo obrigatoriamente comunicada ao juiz de instrução".

O impasse reflete-se também no facto de, garantem as mesmas fontes, não terem ainda sido decididas diligências, como interceções telefónicas ou algumas buscas.

Quanto ao inquérito de "caráter prioritário" ordenado por José Luís Carneiro à IGAI, também não há conclusão. "O inquérito encontra-se a correr termos, com produção e análise de prova", respondeu ao DN o gabinete da inspetora-geral Anabela Cabral Ferreira.

Citaçãocitacao"Um arquivamento destas acusações representa um forte golpe na segurança pública, desacredita em absoluto a justiça criminal portuguesa, coloca em causa o Estado de Direito Democrático e envergonha-nos a todos enquanto cidadãos".

Este beco sem aparente saída à vista desaponta fortemente André Inácio, sócio-fundador do Observatório de Seguranção, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT): "A gravidade dos factos é óbvia. Trata-se de racismo estrutural e apologia da extrema-direita no seio das forças policiais, o mais boçal ataque ao Estado de Direito por parte daqueles em quem se deposita total confiança como primeiro e determinante garante da dignidade humana e, consequentemente, da promoção do Direito à Liberdade e à Segurança de todos os cidadãos. Passado quase um ano, um silêncio, que não tendo de ser cúmplice, é claramente comprometedor. Um arquivamento destas acusações representa um forte golpe na segurança pública, desacredita em absoluto a justiça criminal portuguesa, coloca em causa o Estado de Direito Democrático e envergonha-nos a todos enquanto cidadãos".

Para este ex-inspetor da PJ, pós-graduado em Criminologia e doutorado em Direito Público, "desconhecendo os motivos que possam vir a ser invocados para um arquivamento, é óbvio que de tal decisão resultam dois sinais, um dirigido aos extremistas e a todos os simpatizantes, o qual se traduz num total sentimento de impunidade. O outro é para a população em geral, e para as minorias em particular, de que a polícia não é fiável. De que aqui, como na América, a Polícia é controlada por forças radicais".

André Inácio nota que, ainda nesta semana "o Tribunal da Relação de Évora se pronunciou pela diminuição das penas dos militares da GNR que agrediram migrantes, com manifesta desadequação e desproporcionalidade, sendo as imagens absolutamente esclarecedoras. A vox populi associa estas coincidências ao facto de existir um sentimento de enorme desmobilização nas Forças de Segurança, pairando a ameaça de ser comprometida a segurança da Jornada Mundial da Juventude. Ou seja, uma perigosa negociação para apaziguar os ânimos".

Este analista destaca ainda que "um polícia é um cidadão igual aos outros mas com mais deveres: enverga uma farda, representa uma instituição com história, obriga a um código de conduta. Integrar um corpo de polícia deve ser motivo de orgulho. A opção pela carreira é voluntária e aliás, graças ao abandono por parte dos sucessivos governos, hoje padece de uma enorme falta de candidatos".

Ainda assim, assinala, "as Forças de Segurança têm sido ignoradas, abandonadas e de alguma forma desrespeitados pelos sucessivos governos, desde as condições de trabalho ao estatuto remuneratório. Porém, tal não dá o direito a que grupos manipulados por interesses externos comprometam a segurança pública, teçam comentários e ou pratiquem ações que sejam atentatórias ao Estado de Direito. A captura das forças de Segurança por tais grupos representa a maior ameaça ao Estado de Direito Democrático e não pode subsistir ao abrigo de um regime de impunidade".

Esta preocupação também transpareceu das declarações feitas, na altura da publicação das reportagens, pelos sindicatos da PSP e associações da GNR, algumas das quais viram os nomes de alguns dos seus dirigentes na lista publicada dos "malditos" e condenaram este tipo de comportamentos.

Da Associação Sindical de Profissionais de Polícia (ASPP), por exemplo, foram cinco os nomeados nas reportagens como autores de publicações consideradas discurso de ódio.

No entanto, assegura o presidente Paulo Jorge Santos, "fez-se uma pesquisa ao histórico das publicações desses dirigentes e nada desse teor foi encontrado".

Considera que "a forma como a peça foi divulgada parece ter subjacente um propósito de afetar o funcionamento do maior sindicato da PSP e maltratou dirigentes sindicais que nunca e em tempo algum traduziram comentários, opiniões e ideais racistas ou xenófobos. Abalou em muito esses dirigentes e deveria ser endereçado um pedido de desculpas pelos autores da peça e ainda uma reposição da verdade".

Paulo Jorge Santos sublinha que "a ASPP tem uma história bastante rica na defesa da democracia e atua dentro de quadros de valores e princípios conhecidos" e que, "daí a estranheza da colocação de dirigentes da ASPP na peça em questão".

Acrescenta que na PSP a peça jornalística sobre o discurso de ódio criou um estado de revolta, pela leviandade na forma como foi feita".

Recorde-se que, conforme o DN noticiou, um anterior dirigente da ASPP, Manuel Morais, acusou a direção de o afastar do sindicato por causa das suas denúncias sobre o racismo na polícia.

Em 2018, Morais dizia ao DN: "Há elementos das várias forças de segurança que exteriorizam as suas ideias racistas e xenófobas, usam tatuagens e simbologias neonazis, pertencem a grupos assumidamente racistas. Isto é do conhecimento de todos e, infelizmente, as organizações nada fazem para expurgar estes 'tumores' do seio das forças de segurança."

E concluía: "Pergunte-se à Inspeção Geral da Administração Interna, à PSP, à GNR, à Guarda Prisional ou a qualquer outra força: o que fazem quando são detetadas estas situações? Nada, não fazem nada".

A ASPP sempre negou que Morais tivesse sido afastado por isso, justificando a sua saída por ter "dado uma entrevista em nome da ASPP, sem informar a direção", lembra Paulo Jorge Santos.

Questionada pelo DN sobre medidas preventivas tomadas na sequência das revelações do consórcio de jornalistas, a direção da PSP nada respondeu.

Da Associação de Profissionais da Guarda (APG), que teve três dos seus dirigentes referidos nas peças jornalísticas, o presidente César Nogueira diz que conversou com cada um dos visados e "garantiram que os seus comentários nada tinham que promovesse o ódio contra ninguém".

Acreditou nas suas palavras e insiste que "estas situações de discurso de ódio" o "preocupam muito". "A APG jamais pactuará com esse tipo de comportamentos", assevera o presidente da APG.

Afirma que os seus dirigentes "estão atentos" em relação aos militares, "chamando a atenção quando há alguma atitude ou expressão desadequada".

Quanto a um possível arquivamento do inquérito-crime, manifesta-se desagradado. "Não ficamos satisfeitos porque pode haver, de facto, alguns elementos que tenham tido comportamentos criminosos e assim ficam impunes. Não aceitamos que se faça da árvore a floresta, mas assim também não devia ser".

Indagado também o comando-geral da GNR sobre o reflexo das reportagens na prevenção de comportamentos extremistas e discriminatórios nesta força de segurança, fonte oficial remete para a IGAI.

"A Guarda Nacional Republicana não procedeu à abertura de qualquer processo de natureza disciplinar, considerando que à data, Sua Excelência o Ministro da Administração Interna, determinou à IGAI a abertura de um inquérito para apuramento da veracidade dos indícios constantes nas redes sociais, relativamente a discurso de ódio por parte de elementos das Forças de Segurança", afirma o porta-voz oficial.

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