Queria ser mais feliz, mais solidária, viver mais devagar. E conseguiu. Para Sara Dinis, 41 anos, “está a chegar a época mais bonita do ano”. Porque, acrescenta, “o Natal é presença, não é presentes”. Antes de 2017, o ano em que, devido a um problema de saúde, decidiu mudar “radicalmente” de vida, a pressão das oferendas começava no “horror” da Black Friday e mantinha-se até 24 de dezembro. “Compras desenfreadas”, que rendiam a Sara stress, consumindo tempo e dinheiro. Agora, a enfermeira usufrui de “uma imensa tranquilidade”. E de muito mais tempo disponível para a família. A ceia é celebrada com calma, a antecipar o recolhimento da Missa do Galo, prazer roubado durante anos pela distribuição dos presentes..O Dia Mundial Sem Compras (originalmente conhecido como Buy Nothing Day), é comemorado fora dos Estados Unidos e do Canadá no último sábado de novembro. É dia internacional de protesto contra o consumismo, celebrado em mais de 65 países com ações simbólicas, desde a destruição de cartões de crédito a desfiles de carros de compras vazios, em grandes armazéns ou supermercados. E insere-se num movimento com cada vez mais seguidores nas redes sociais: o consumo minimalista ou “núcleo de subconsumo” (underconsumption core), hashtag com que usuários do TikTok demonstram como estão a comprar menos e melhor - ténis velhos, pares de óculos de sol com décadas ou produtos de beleza usados até à última gota a merecerem milhões de visualizações..Subconsumo significa usar o que se tem, rejeitar as tendências, adotar um comportamento sustentável. Sem privação..“Nunca o Natal nos soube tão bem”, retoma Sara. Não tem filhos, mas as crianças da família entendem. Em 2017, o marido, Paulo Dinis, aderiu sem hesitar ao desafio lançado pela mulher. A grande transformação começou pela cozinha..Grão a grão.Os Dinis passaram a comprar à medida. “Descobrimos uma loja que vende a granel e nunca mais quisemos outra coisa”, diz Sara. Grão, feijão ou frutos secos são colocados em frascos de vidro transparente de modo a serem reabastecidos apenas quando fizer sentido. “Comprar à nossa medida reduziu, em muito, o desperdício e em dois, três anos construímos novos hábitos. Tudo é aproveitado”. De Leiria, onde tem raízes familiares, trazem vegetais e azeite. De uma quinta próxima de Lisboa, as frutas. Das grandes superfícies apenas arroz e massas, produtos que não podem ser vendidos a granel..“Enjoados” com a quantidade de embalagens que enchem prateleiras e prateleiras de supermercados, a seguir aos alimentos, Sara e Paulo passaram aos detergentes. Na casa deles, usa-se permanganato de sódio, bicarbonato de sódio ou vinagres, igualmente comprados a granel, de marca ecológica, patenteada pela Universidade de Coimbra. Mais caros, mas mais polivalente..Consumo minimalista, nem sempre quer dizer gastar menos. Trata-se de comprar menor quantidade e, em simultâneo, maior qualidade. A preferência vai para produtos nacionais, também eles mais caros. “Por exemplo, somos fiéis à pasta de dentes Couto, mas que é usada até à última porção”, diz Sara. As embalagens são enxertadas de forma a que todo o produto possa ser retirado. “Se bem que a grande tendência são os detergentes e os produtos de banho na versão sólida”, lembra Sara..As preocupações ambientais são outro pilar do movimento: “Procuramos produtos com fabrico sustentável e que sejam 100% recicláveis”. Traduzidas num lema: desperdício zero, lixo zero. “Desde que adotámos estes hábitos, a nossa reciclagem passou a ser muito pequena. Vamos aos ecopontos apenas de 3 em 3 semanas, dantes a viagem era muito mais frequente. Isso ajuda a perceber que estamos no bom caminho.”.Estamos a falar com uma ex-consumista. “Não havia semana em que não fosse ao centro comercial fazer umas desgraças. Sobretudo de vestuário. E essa foi a parte mais difícil: a indústria da moda leva-nos a isso. As ‘sextas-feiras negras’ são mesmo negras”, diz..Roupeiro unissexo.Partilham a roupa. “Há umas semanas fui a Leiria, à casa da família, e trouxe cinco pares de calças com 40 anos. Peças de fato que estão novas, com uma qualidade que não se encontra. Hoje existem as imitações, eu tenho os originais”, diz Paulo. Tem 41 anos e é team leader na Vodafone. “A verdade é que as pessoas elogiam-me e dizem que estou sempre bem-vestido”. De resto, “continuo a ser vaidoso e a ter muito orgulho no que visto”..As visitas a Leiria e a amigos são a época de saldos desta família. O que recolhem serve aos dois. Poupam dinheiro e, com um único armário, ganharam espaço. Compram sobretudo básicos em segunda mão. T-shirts e camisas pretas, brancas, beges, cinzentas. Os vestidos - “também uso”, diz Sara - resultam de trocas ou de reabilitação. “De uma capa de edredão fiz três peças”, conta. Blusas puídas tornam-se panos do pó. Antigos lençóis de linho ganham vida nova em camisas e calças..“O linho é fantástico”, diz. Que tinge, em casa, recorrendo a pigmentos naturais. “Cascas de cebola, cascas de romã. Flores campestres, espirulina, moringa”. Chás fora de prazo. Tentações? “Raramente.” Uma das primeiras medidas foi desinstalar as aplicações. “Um descanso. Aconselho vivamente. Experimentem e sentirão um enorme alívio”, assevera Sara, recor- dando “a pegada ecológica que as compras online deixam no planeta”..Paulo reforça a ideia, avançando críticas aos influencers: “As redes sociais pressionam muito; o influenciador é um incentivo ao consumo. Sempre que vejo que estão a tentar impingir-me um produto, passo à frente, ou deixo mesmo de seguir essa pessoa.” Em 2017, Paulo Dinis, filho de uma esteticista e de um metalúrgico, era “viciado em relógios”. Hoje, é acessório que não usa. “Vivo com muito menos stress e mais feliz, sabendo que abrandar também significa ter muito menos impacto ambiental”..Sara casou-se em 2019 com um vestido de uma tia. Feito em 1977, já tinha servido para o casamento da mãe, em 1982. “O meu foi um casamento de baixo impacto ambiental. Nada se desperdiçou”, diz, ciente de que o desperdício é um clássico dos casamentos. Troca de roupa com amigas. Desapego é a palavra de ordem. “Não digo que no início não custe, mas depois é muito gratificante”..Pouco se maquilha. “O tempo que passava a pintar-me é agora ‘usado’ num pequeno-almoço relaxado, na companhia do Paulo. O que é ótimo para a pele”..Uma questão de ativismo.O minimalismo, em oposição à vulgaridade, é muitas vezes associado a luxo e grande poder de compra. Não serão apenas essas as razões por que está agora em alta. As gerações mais jovens enfrentam pressões financeiras e económicas severas. A que se juntam preocupações ambientais assumidas particularmente pela Geração Z e pelos Millennials mais jovens. Semelhante à tendência de ‘desinfluenciar’, o minimalismo combate a normalização do sobreconsumo, rejeitando e resistindo à “cultura do influenciador”..Luísa Barateiro tem 24 anos e vive no Porto. É biológa.Iniciou a “transição”, cortando no consumo de proteína animal e no “roupeiro”. Vendeu e ofereceu grande parte da roupa que raramente usava. “Não me custou, confesso. Nunca fui de modas.” Gosta de peças simples, confortáveis e práticas. Da roupa, aos móveis..À medida que os consumidores mais jovens se tornam conscientes do impacto ambiental das decisões de compra, são cada vez mais atraídos por conteúdo de moda sustentável. O minimalismo é, assim, uma forma de ativismo. Luísa pertence a uma organização ambiental. Sabe que o consumismo em massa criou pro- blemas significativos. No deserto do Atacama, no Chile, estima-se que 11 000 a 59 000 toneladas de roupas usadas estejam num aterro sanitário. Este é apenas um exemplo de como o consumo excessivo está a poluir o meio ambiente. .Mais dados retirados da net: um relatório da ThredUp (2023), plataforma online de revenda de artigos vintage, descobriu que 65% dos entrevistados da Geração Z queriam comprar de forma mais sustentável. No entanto, um terço declarou-se viciado em fast fashion. “Se entrar três vezes por ano num centro comercial é muito”, diz Luísa. A bióloga leva as roupas até ao fim. Depois, deposita-as num ponto de recolha..Evita comprar embalagens individuais. Um corredor de uma grande superfície é “um pesadelo de plástico”. A ânsia muitas vezes refletida no rosto dos consumidores da Black Friday, “uma visão muito desagradável”. Dá um conselho: “Comprem apenas o que comprariam se não houvesse a Black Friday. E atenção - há preços e descontos que são muito desvantajosos”..O que ganhou com o minimalismo? “Poupança, menos stress, mais espaço, para mim e para a Lua, a cadela com quem partilho a casa.”.Desde logo uma embirração e a normalidade.“As minhas embirrações com os excessos do consumo radicam em causas antigas e outras mais próximas” começa por dizer Ana Paula Martins, 68 anos, de Aveiro, oriunda de duas famílias da pequena burguesia, “cujos proveitos sempre tiveram origem no trabalho e em que tudo tinha de ser bem ponderado antes de compras ou prendas”..Estávamos em finais dos anos 50. A engenheira civil lembra-se: as roupas, os livros e os materiais escolares passavam de mão em mão, não por miserabilismo, mas porque era “considerado giro”. As roupas ou sapatos novos “altamente incómodos e desconfortáveis eram preteridos pelos usados”. Costureiras adaptavam a roupa. “A mãe e as avós conservavam religiosamente os paninhos e as toalhas de mesa em renda das suas antecessoras.”.Ana Paula Martins, engenharia civil, vive em Aveiro.A viver na casa que pertenceu aos avós há mais de 100 anos, a escolha não foi apenas romântica: “Há 40 e tal anos não tinha simplesmente dinheiro para pagar uma renda, mesmo estando já a trabalhar, e sempre rejeitei liminarmente as soluções de “crédito” ou “empréstimo”. “Com as técnicas e a ciência adquirida na minha profissão (reutilizar, reciclar, reduzir) fui com a minha família, e aos poucos, tornando a casa e a quinta cada vez mais agradável e funcional”..Orgulha-se, hoje, de viver entre madeiras, móveis, pedras e paredes que assistiram à passagem do tempo. Proprietária de um Alojamento Local, aposta na sustentabilidade: “Tudo o que se põe à disposição dos turistas ou já existe (as camas dos filhos, a mobília dos quartos, as nossas bicicletas) ou só se compra depois da safra do ano completa. E é assim, a pouco a pouco, que não há grande stress.”.De uma terra com tradição na reutilização - “os ovos moles feitos das gemas que sobravam do tratamento que as freiras davam, com as claras, às suas próprias roupas, o moliço da Ria que era arrancado para adubar as terras, o sal feito a partir das águas estuarinas...” -, lamenta a “ transformação do tecido comercial, a invasão dos shoppings, a criação artificial da necessidade de consumir mais e mais rápido, que destroem e uniformizam lugares e pessoas e tudo fica mais pobre, ainda que mais atafulhado de supostos “bens” de consumo”, lamenta..Muito lixo e dívidas.Para Ana Paula, “hoje, operações mundiais de convencimento ao consumo são tidas como normais e, até necessárias, os Natais, as Black Fridays, os saldos, etc.” Porém, “são compulsões artificiais que, desde bem cedo, até nas crianças pequeninas se alojam”. O resultado, diz “é sinistro”: “Toneladas e toneladas de resíduos abandonados, famílias endividadas e, até, sentimento de culpa agravado.”.Para a aveirense, “as pessoas passaram a acreditar que são impotentes para quebrar o ciclo, inventam justificações para o não fazer, desligam os poucos alertas mentais que lhes sobram e que, em vão, lhes dizem que deviam mudar as suas vidas para um formato mais simples, mais contido, mais frugal e que, assim, seriam por mais tempo felizes e tranquilas.”.Os críticos do movimento foram rápidos em destacar que os princípios não são novidade. Em vez de glamorizar um certo modo de vida, o subconsumo está a normalizar apenas o modo como muitas pessoas já vivem. Em resposta à tendência, há quem lembre que essa é, há muitos anos, a vida comum à classe trabalhadora.