Desinformação pela caixa do correio: o ódio, o engano e a xenofobia de grupos extremistas

Desinformação pela caixa do correio: o ódio, o engano e a xenofobia de grupos extremistas

Estão a ser distribuídos panfletos em todos os distritos, em ações de três grupos distintos, a Reconquista, Ordem Identitária e o 1143.
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Foi como receber uma suástica na época do Holocausto”. É assim que a jovem brasileira Victória Marinho descreve a sensação de ver um panfleto que está a ser distribuído por todo o país com uma mensagem xenófoba e sobre a chamada substituição populacional - tese desmentida pelas demógrafas Maria João Valente Rosa, professora doutora e Alda Botelho Moniz, investigadora universitária, doutorada em Demografia pela Universidade Autónoma de Barcelona. A imigrante estava em casa de uma amiga em Braga quando viram o panfleto, que foi entregue em diversas caixas de correio da cidade, inclusive nas residências universitárias.

Braga, uma cidade onde a comunidade brasileira é expressiva, não foi a única a receber a campanha. Aliás, nem sequer é uma campanha só. Neste momento, de acordo com a investigação do DN, três grupos de ódio distintos estão em ação com a distribuição de panfletos nas caixas de todo o país: a Reconquista, o 1143 e a Ordem Identitária. Os panfletos não são iguais, mas transmitem a mesma mensagem: a de que o povo português está a ser substituído.

As demógrafas entrevistadas pelo DN referem o mesmo dado: neste momento, cerca de 16% da população portuguesa tem uma naturalidade estrangeira, isto é, não nasceu em Portugal, mas até pode ter nacionalidade portuguesa. “Estamos muito longe de sequer chegar à metade, estamos muito longe de que possa existir uma substituição da população, este cenário não está em cima da mesa e gera uma confusão que não existe ou que não deveria existir”, explica ao jornal Maria João Valente Rosa.

Alda Botelho Azevedo afirma que tal ideia é até matematicamente impossível. “Se nós pensarmos matematicamente, tirando todas as variáveis sociais que depois acabam por determinar os padrões de fecundidade, mesmo isso seria impossível”, analisa a profissional. O argumento das investigadoras, ambas com doutoramento na área de demografia, desmonta a mensagem de um dos panfletos.

Distribuído pelos membros da Reconquista, a mensagem é a seguinte: “Portugal está a mudar imenso, estamos a ser substituídos na nossa própria terra”, acompanhado de um gráfico comparativo entre 2000 e 2024. No ano 2000, 2% da população não era portuguesa e em 2024, 25% da população não é portuguesa. No verso, há uma imagem gerada por inteligência artificial com vários imigrantes em Lisboa, sobretudo de pele de cor negra e bandeiras de vários países e duas crianças brancas na frente como se estivessem em sofrimento. A imagem acompanha a frase “É este o futuro que queres para os teus filhos?”

Panfletos estão à venda na loja online do grupo.
Panfletos estão à venda na loja online do grupo.Foto: DR

Esta iniciativa do grupo Reconquista começou a ser planeada em meados de dezembro do ano passado. Num congresso realizado em fevereiro na Assembleia Municipal de Lisboa, a campanha foi apresentada. “Esta é uma campanha ambiciosa, que vai exigir uma mobilização grande, não apenas dos membros ditos oficiais da Reconquista, mas também dos simpatizantes da Reconquista e de voluntários, vai exigir mesmo uma grande mobilização, porque é uma atividade que queremos manter, queremos que se perpetue, e que através dela possamos também produzir conteúdo para as redes sociais, portanto não é um evento de um dia, é um evento de uma semana, é um evento de meses”, explicou no evento Jorge Pinto, um dos ativistas do grupo. A meta é entregar 100 mil flyers “em todas as grandes cidades do país”.

A cidade de Braga foi a escolhida para ser a primeira onde começou a campanha, que, desde então, já percorreu pelo menos 16 cidades, entre elas, as duas maiores, Porto e Lisboa. Vários bairros lisboetas e da Invicta receberam a iniciativa, que é sempre registada nas redes sociais com fotos e vídeos. “Em breve estaremos na TUA caixa de correio”, lê-se nos posts no Twitter, Telegram e Instagram.

Mas o objetivo principal é atingir as pessoas fora das redes sociais, explicou no lançamento o membro da Reconquista. “O primeiro objetivo, o primordial, é acordar os portugueses, muitos portugueses, como vocês sabem, não têm acesso às redes sociais, porque não querem, ou pessoas com mais idade, eventualmente, é por isso que também as ações de rua, além de terem o condão de marcar a presença da Reconquista nas ruas, também têm esse aspeto de acesso às pessoas que estão fora das redes, não obstante as redes serem um pilar fundamental na transmissão da nossa mensagem, mas de facto o objetivo principal é acordar os portugueses para um flagelo que é existencial”, explanou para a plateia, formada maioritariamente por homens - o grupo é contra direitos de voto às mulheres e defende que não tenham acesso à internet, por exemplo. Depois, Jorge Pinto ressaltou que outro objetivo é “apresentar a solução, que é a remigração”.

O grupo foi de facto, o impulsionador do termo em Portugal, que agora está presente na campanha eleitoral através do Chega. Rita Matias e Pedro Frazão já têm vindo a defender a remigração publicamente. Recentemente, André Ventura respondeu sobre o assunto em entrevista ao Observador. “A remigração em situações em que a presença massiva de pessoas de outras culturas mete em causa o nosso próprio espaço cultural”. Afonso Gonçalves, líder da Reconquista, partilhou o vídeo da entrevista de Ventura com a mensagem: “A melhor forma de prever o futuro é CRIAR o futuro. É isso que fazemos na RECONQUISTA”. No vídeo, consta uma declaração de Afonso de 18 de janeiro, em que previa que o Chega falaria do tema “até o fim de abril ou até o mês de maio”.

As relações do grupo com o Chega, já relevadas pelo DN, não são segredo. Outro líder do grupo, Alexandre Gazur, está em campanha aberta pelo partido e publicou esta semana uma foto com André Ventura e outras em eventos do partido, onde escreveu “A representar a juventude do Chega!” Além da distribuição massiva dos panfletos, os flyers também estão à venda por três euros um pack com 50.

“Invasão”

A campanha do grupo 1143, liderado pelo neonazi Mário Machado - que deverá em breve dar entrada na cadeia para cumprir pena efetiva de prisão - é chamada de “SOS Portugal”. No panfleto lê-se “Portugal está a ser invadido! A imigração em massa está a destruir a nossa cultura, segurança e o futuro dos portugueses. Criminalidade, falta de habitação e um país que já não reconhecemos! Estás a ser substituído! (...) Diz não à invasão, Portugal é nosso!”.

Ao lançar a campanha nas redes sociais, o grupo explicou o objetivo: “A nossa missão é clara: alertar, despertar e mobilizar os portugueses perante a invasão e substituição do nosso povo”. Mas existe uma substituição? Para as demógrafas entrevistadas neste texto não há substituição do povo português, nem uma invasão. “Não há uma invasão no território. Há, felizmente, saldos migratórios positivos. Essa migração concentra-se sobretudo na área metropolitana de Lisboa, também na área metropolitana do Porto e do Algarve, onde as percentagens são mais altas, relativamente à população residente, são mais altas do que os 15%, que é a média nacional. Mas não há uma invasão nem sequer nessas zonas onde há uma concentração de imigrantes muito mais acentuada”, analisa Alda.

Outro aspeto referido pela demógrafa é que nem todas as pessoas deste universo são mulheres em idade reprodutiva. “É, naturalmente, um número muito mais reduzido, principalmente tratando-se de uma migração laboral bastante masculinizada”, explica. Maria João Valente Rosa lembra o mesmo. “Dificilmente houve pessoas preocupadas em falar com rigor deste tema, porque é um cenário muito diverso, não são invasores do país. Há migrantes económicos e 30% das pessoas que entraram no nosso país em 2023 são de naturalidade portuguesa, que não nasceram em Portugal, eles também são invasores?”, questiona.

“Sangue português”

Outro argumento utilizado com frequência por estes grupos - e até mesmo na política - é de que o povo português será substituído porque as mulheres estrangeiras possuem mais filhos do que as nascidas em Portugal e que isso acabará com o “sangue português”. Maria João Valente Rosa diz que tais grupos devem ter faltado na aula de história. “Estes grupos são tão virados para o passado e para estas histórias todas e deveriam saber que a origem de Portugal é a imigração, basta ir à história de alguns séculos. Nós viemos dos romanos, dos celtas e dos árabes, é preciso saber que Portugal nasceu exatamente pela imigração. E para falar de tempos mais longínquos, os nossos antepassados saíram de África, portanto, não existe a noção de pureza, a população pura é um mito”, argumenta a investigadora. Esta falsa noção de pureza está refletida nos próprios fenótipos dos cidadãos portugueses.

Em relação aos nascimento, ambas as investigadoras entrevistadas pelo DN explicam que, está comprovado em diversos estudos que as mulheres migrantes acabam por adotar o padrão de fecundidade do país que escolheram para viver. “Há vários estudos que demonstram, que as populações migrantes, ao chegarem ao país de destino, ao longo dos primeiros anos de migração, acabam por adotar os níveis de fecundidade do país que os acolhe. E, portanto, nós podemos estar a receber imigrantes de países em que os níveis de fecundidade são, por exemplo, três filhos em média por mulher em idade fértil, e a nossa fecundidade é 1.4 neste momento. Mas estas pessoas que estão a chegar, ao longo dos anos, tenderão a não manter o nível de fecundidade elevado durante toda a sua vida reprodutiva, vão adotar aquilo que são os padrões de fecundidade do país”, argumenta Alda Botelho.

A professora define a chegada de migrantes em idade reprodutiva em Portugal como “um balão de oxigénio em termos de rejuvenescer a população residente, mas têm quase um efeito paliativo”, acrescenta. Maria João Valente Rosa destaca que, mesmo entre os bebés em que a mãe não nasceu em Portugal no ano de 2024, cerca de 20% tem pai português.

Desinformação

Para a investigadora Catarina Reis, que escreve anualmente o relatório Imigração em Números, a forma como os dados são apresentados nestes panfletos “são sedutoras e enviesadas”. “A forma como está a ser mostrado é enviesado. O sedutor tem a ver com as mentiras sequenciais que são dadas. E eu acho que é importante depois perceber que quando nós estamos a falar destes números em absolutos, depois mesclamos uma grande heterogeneidade que existe dentro da população estrangeira”, analisa.

Já a ação do grupo Ordem Identitária - que começou muito recentemente a divulgar ações nas redes sociais e fazer chamadas para angariar ativistas - utiliza uma notícia do Diário de Notícias na ação. O panfleto contém e representação duma nota de 20 euros e a notícia “SEF diz que pagou a todos os refugiados acolhidos em Portugal” e o enxerto “O SEF indicou que seguiu as recomendações da auditoria do Tribunal de Contas de 2019, tendo feito o ‘pagamento integral’ de 10.000 euros a cada refugiado acolhido em Portugal no âmbito do programa de reinstalação da União Europeia”, acompanhada da mensagem “Nós acreditamos que Portugal deveria primeiro apoiar os portugueses”.

Panfleto contém desinformação, utilizando o DN.
Panfleto contém desinformação, utilizando o DN.Foto: DR

O que não está explicado no panfleto é que não são os refugiados a receber 10.000 euros cada, mas sim, o Estado português é que recebe o dinheiro da União Europeia para acolher as pessoas. O valor é utilizado em programas de acolhimento e alojamento, mas não transferido diretamente aos refugiados. O grupo diz querer, com a ação, “despertar os portugueses perante a imigração nefasta de povos terceiro mundistas e a ameaça do regime aos próprios e respetivas famílias”. O modus operandi é o mesmo: distribuir os panfletos nas caixas de correio em diversas cidades, além de entregá-los pessoalmente nas ruas. As ações são filmadas e fotografadas para posts nas redes sociais.

Crime ou liberdadede expressão?

Voltando ao momento em que a brasileira Victória Marinho viu o panfleto da Reconquista, no início riu-se, mas considera preocupante. “Começamos a rir da incredulidade daquilo no momento, mas é muito preocupante. Eu não percebo porque os órgãos públicos, os órgãos políticos não fazem nada em relação a isso”, diz ao DN a jovem, que estuda Ciência Política da Universidade do Minho. Mas o que estão a fazer é crime? Na questão da desinformação, diferente de países como França, Alemanha e Itália, não há em Portugal o delito de desinformação.

Algumas das mensagens podem ser enquadradas como discurso ódio, previsto no artigo 240.º do Código Penal, mas também podem ser vistas apenas como liberdade de expressão. “O chamado crime de “discurso de ódio” consiste na conduta punível de alguém que, através de meio de divulgação pública, provoque ou incite a prática de atos de violência, difamação, injúria, ou ameaça a pessoas ou grupos de pessoas, nomeadamente em razão da sua etnia, nacionalidade, religião, género, orientação sexual ou deficiência. É o que está a acontecer com a distribuição destes folhetos. Em suma, pode configurar a prática deste crime de incitamento ao ódio e à violência, em abstracto. Todavia, também pode caber na liberdade de expressão, porque o texto faz apologia do nacionalismo português e contra a imigração, como outros partidos políticos defendem”, analisa Nelson Tereso.

O advogado acredita que mesmo a liberdade de expressão possui limites. “A liberdade também tem limites, quer dizer, é que nós estamos a chegar a um ponto no nosso país e também a nível mundial, que querem pôr tudo dentro da liberdade de expressão, mesmo quando são coisas ofensivas. E não está bem, não está certo. Aquele folheto, o texto, e depois aquela fotografia ou aquele desenho com os muçulmanos todos atrás de dois portugueses, quer dizer, isso é claramente uma mensagem de ódio à imigração”, argumenta.

Catarina Reis, que acompanha o tema das migrações há anos, reflete que o contexto político contribui para o atual cenário em Portugal. “Efetivamente, tem aumentado a polarização em torno das questões das migrações. Portugal era considerado, normalmente, esta exceção no contexto europeu, porque havia este consenso em torno das matérias da imigração e da integração. E este consenso que se fazia, portanto, de governos de centro-direita e de centro-esquerda, acabavam por partir deste quase sentido humanista de Portugal sempre foi um país de emigração, reclamámos muito para os portugueses que estão lá fora, e, portanto, nem que seja por um princípio de integridade e reciprocidade, vamos agora pensar também nos que estão a vir para Portugal”, reflete.

E como combater este discurso? Para Catarina Reis, a chave é a integração. “A questão aqui, tem a ver com os alarmismos sociais que se geram e que têm a ver também com as características das populações locais. Quando nós falamos destes mundos e destas tendências gerais estamos sempre a falar do território como um todo, mas há contextos locais que já estavam desertificados estavam efetivamente com uma população ainda mais envelhecida. O que acaba por acontecer é que efetivamente passa muito esta imagem de invasão, pensam, ‘agora vieram para aqui, para a nossa terra, já não reconhecemos a população residente’. De facto aumentou muito o peso e de alguma forma há municípios de Portugal nomeadamente a zona algarvia e Alentejo em que efetivamente a população estrangeira já representa mais de 40% dos residentes. Aquilo que acho que é importante repensar é o investimento e a importância de integração”, defende.

O órgão responsável por cuidar da integração dos migrantes, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) foi extinto junto com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), coincidindo também com o aumento dos fluxos migratórios para Portugal, a sobrecarga na Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA) e, mais recentemente, com as migrações no centro da campanha política. Os grupos 1143, Reconquista e Ordem Identitária continuam com estas e outras campanhas ativas, tendo como alvo os imigrantes.

amanda.lima@dn.pt

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