Chegado a Évora, Lucas Andrade sabia que tinha de voltar para Lisboa de bicicleta e sozinho. Nessa altura passou-lhe tudo pela cabeça, mas avançou e terminou os 600 quilómetros em 38h30, menos uma hora e meia do que o limite de tempo estipulado pela organização da prova Alentejo no calendário de brevets dos Randonneurs Portugal, uma comunidade com cerca de 260 pessoas, que desafiam corpo e mente em provas de ciclismo de longa distância não-competitivo.“Pensei: ‘E se tiver um furo, quem me ajuda? Estou sozinho. Se tiver um acidente também ninguém vê porque estou em estradas desertas.’ A vontade de terminar fez com que o meu corpo respondesse àquilo que eu precisava fazer. Fiz os últimos 200 quilómetros sozinho e aí, acho, encontrei o meu limite físico e mental”, confessou ao DN o informático, que começou a prova com mais pessoas, mas terminou-a sozinho. O segredo, segundo ele, foi não pensar nos 600 km, mas num quilómetro a seguir ao outro. Como a prova decorreu numa semana de muito calor aproveitou o fresco da noite para ganhar terreno e chegar a Lisboa antes do tempo limite predefinido - esse é o pormenor que evita que sejam cicloturistas de circunstância -, para carimbar o brevet (cartão do percurso).Quando chegou a Lisboa e parou sentiu uma “brutal” descarga de adrenalina: “Tinha o pessoal da organização à espera para dar os parabéns e carimbar o cartão de percurso e ainda conversámos um bocado, antes de pegar na bicicleta para ir para casa. Quem fez 600Km fazia mais 15, mas eles insistiram em dar-me boleia. Assim que me sentei no carro, veio a tal descarga física.”Esse estado de “quase ultrapassar os limite da sanidade humana” faz muitos questionar se a atividade é saudável. “Sou mais saudável do que algumas pessoas que conheço. Eu adoro este país e estas voltas pelo Alentejo mostram um Portugal verdadeiro. Paramos em mercearias e cafés de aldeias e vilas, as pessoas não nos conhecem, mas apoiam-nos e dizem: ‘Força João Almeida! [ciclista português da UAE Emirates]’. É muito giro. Não consigo encontrar uma frase explicar o porquê de ser um randonneur”, diz Lucas, que há cinco anos foi “arrastado para essa loucura” de passar o fim de semana a explorar o Portugal profundo de bicicleta.A paixão pelo ciclismo e o espírito de aventura são condições básicas na construção de um randonneur. Cada um sabe de si e ninguém questiona a motivação do outro. No caso do informático, é o gosto pela bicicleta, a aventura, o ir para sítios que normalmente não passaria nem de carro e o testar do limite físico.“Não sou um ciclista rápido, mas tenho resistência. Preparo-me para dentro daquela distância predefinida, para conseguir cumprir o tempo sem extrapolar os meus limites. Tem de ser um treino muito bem pensado, planeado, mas há quem treine muito a sério para estas provas e também para os gran fondos [eventos de ciclismo de longa distância competitivos ]”, explicou Lucas Andrade, que agora persegue o objetivo de participar nos 1200 km de Paris-Brest-Paris, considerada o Santo Gral dos brevets. Para ser elegível e participar precisa de completar uma prova de 1000 quilómetros em 75 horas (mais de três dias a pedalar). Em termos comparativos, de Chaves a Faro são cerca de 650 km e uma etapa de uma grande volta ou da Volta a Portugal em bicicleta tem no máximo 250/260 km..O Audax Club Parisien é como a FIFA para o futebolA atividade, chamemos-lhe assim, não está sob a égide de nenhuma federação, mas só é permitido participar mediante inscrição na Randonneurs Portugal. E não é permitido começar logo por uma prova de 600 ou mais quilómetros. Tem de começar nos 200Km e ter um determinado número de carimbos no brevet para fazer provas cada vez mais longas. Há que acumular experiências, saber lidar com contratempos, como um furo ou o estômago vazio quando se está no meio do nada e com o sentimento de que não vai conseguir completar a volta. Em Portugal há provas dos 200 aos 1200 quilómetros, mas há percursos internacionais com mais do dobro da distância.Depois de definido o percurso com a distância exata da prova e pontos de controlo, cada ciclista procura completar a prova como pode e quer. Chegar dentro do tempo limite definido - 200Km em 13h30, 300Km em 20h00, 400Km em 27h00, 600Km em 40h00 ou 1000 em 75h00 - é a regra.Henri Desgrages, fundador do Tour, esteve envolvido no início da atividade/modalidade, que é gerida mundialmente pelo Audax Club Parisien, que organiza, desde 1951, o Paris-Brest-Paris (a prova que esteve na origem da Randonneurs Portugal). Pedro Alves e o amigo Albano Simões (acabou por não ir) precisavam de ir a uma quantidade específica de eventos em solo português para serem admitidos na prova francesa e, assim, nasceu uma associação sem fins lucrativos ou interesse em organizar eventos de massas. O número controlado de pessoas em cada prova é um dos segredos de um bom evento, segundo o presidente Pedro Alves. Não é preciso atestado médico para participar, mas os participantes estão duplamente segurados. Além do seguro da Randonneurs Portugal, quase todos têm seguros pessoais. Em 15 anos só registaram um incidente. E há um conjunto de regras escritas e outras não-escritas, como exigirem a si mesmos um comportamento de segurança. Portugal foi o primeiro país do mundo a obrigar os randonneurs a trazerem coletes refletores dia e noite. Passar um sinal vermelho numa localidade, mesmo sem haver trânsito, é penalizado até moralmente.Mas, e será saudável? “Costuma dizer-se que quem faz brevets anda à procura de uma coisa que nunca alcança. Quando fazes estas distâncias muito grandes, passas por estados emocionais diferentes e há um truque que todos usamos: quando nos estamos a sentir bem aproveitamos, porque vai haver um momento em que nos perguntamos o que é que estamos ali a fazer. É evidente que há uma gestão mental que torna a parte atlética secundária. Se me pedir uma resposta pura e dura, a resposta é não, as pessoas não foram feitas para pedalar durante 13 horas sentadas num selim de 10 centímetros, mas provavelmente também não foram feitas para correr uma maratona (mais de 40Km), nem para mergulhar a 50 metros”, respondeu o líder do Randonneurs Portugal.A motivação de um randonneur mudou muito, segundo Pedro Alves. Se em 2011 apareciam muitas pessoas “com a ideia da superação física, numa lógica mais individual, hoje uma parte substancial dos participantes fazem-no para conhecer o país de bicicleta, o que é uma motivação muito interessante”. E, por isso, os percursos são cada vez mais idílicos e instagramáveis. A próxima prova são os 200Km Évora, já no dia 29.isaura.almeid@dn.pt