Hans Melo tem 38 anos e abandonou o Brasil em meados de 2022. Estabeleceu-se em Coimbra na esperança de melhorar a situação económica que tinha lá onde nasceu: em Maceió, no estado de Alagoas. Em Portugal trabalha hoje como estafeta das plataformas Glovo e Bolt e por vezes chega a estar 18 horas por dia na rua, à porta dos estabelecimentos ou a caminho de casa dos clientes que pedem entregas de comida. Ao frio, à chuva, ao sol, sempre ao volante de uma mota e com uma mochila enorme às costas, a subir e a descer escadas os dias inteiros..O DN contactou-o ontem por telefone para lhe perguntar se já tinha ouvido falar da notícia conhecida este fim de semana, segundo a qual o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa reconheceu há dias a existência de um contrato de trabalho sem termo, e com retroativos, a um estafeta que trabalha para Uber Eats -- o que está a ser descrito como a primeira decisão judicial em Portugal a aplicar a presunção de vínculo laboral efetivo entre estafetas e plataformas digitais..Hans Melo já estava a par. No entanto, torceu o nariz à decisão. “Parece positivo, mas pode não ser”, resumiu o brasileiro, que no ano passado ganhou protagonismo ao dinamizar um grupo de WhatsApp, entretanto extinto, onde estafetas de norte a sul do país discutiam direitos laborais. “Se passarmos a ser trabalhadores das plataformas, vamos ganhar menos do que atualmente”, explicou. Segundo Hans Melo, muitos estafetas não têm ligação direta às plataformas, antes são prestadores de serviços de empresas que designa como “frotas”. E são estas entidades que se inscrevem na Glovo ou na Uber Eats, cobrando 5 a 10% aos estafetas. Muitos dos profissionais da área, considerando-se explorados e mal pagos, acabam por passar recibos verdes às “frotas” nos quais inscrevem valores inferiores aos que realmente receberam, assim contornando o pagamento de impostos e amealhando mais algum dinheiro ao fim do mês. Um esquema alegadamente propiciado pela informalidade de muitas destas transações..“Só será positivo sermos trabalhadores das plataformas se elas aceitarem dar regalias e salários decentes. Caso contrário, vamos andar nos 820 euros do salário mínimo e com isso ninguém vai querer continuar a fazer entregas”, comentou Hans Melo, o que significa que a decisão judicial em Lisboa não é para já especialmente acolhidas por estafetas..O mesmo profissional explicou ao DN que num “bom dia”, em Coimbra, faz 20 a 30 entregas. O pagamento é calculado com base no número de entregas mais os quilómetros percorridos entre o restaurante e a casa do cliente. A Bolt, por exemplo, paga 24 cêntimos por quilómetro e cerca de 1,40 euros por entrega. Mas as mochilas térmicas de transporte de comida têm de ser compradas pelos próprios, rondando 40 euros, e desgastam-se ao fim de dois ou três meses de utilização diária. Além disso, os estafetas têm de ter motorizada própria e pagar do seu bolso o combustível e a roupa, nomeadamente botas resistentes, já que o calçado leve fica inutilizado ao fim de pouco tempo de uso..A decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa só foi possível devido às alterações ao Código do Trabalho que entraram em vigor em maio do ano passado. A lei já antes contemplava situações em que se presumia a existência de um contrato de trabalho em casos de precariedade no vínculo. Mas desde maio -- além de novidades sobre as baixas por doença, o alargamento das licenças por falecimento ou a possibilidade de cuidadores informais terem horário a tempo parcial, entre outras -- a lei adaptou-se à existência de plataformas na internet..Abriu-se a porta a que os estafetas da Uber Ests ou da Glovo sejam considerados trabalhadores das plataformas desde que se verifiquem indícios de subordinação hierárquica. Por exemplo, se for a plataforma digital a fixar a retribuição para o trabalho ou estabelecer limites máximos e mínimos, a exercer poder de direção e a determinar regras ou restringir a autonomia do prestador de atividade quanto ao horário de trabalho, entre outras condições..Os estafetas que consideram ter um contrato de trabalho passaram a poder avançar para tribunal com pedidos de reconhecimento desse vínculo ou a pedir à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) que atue e eventualmente notifique as plataformas para que reconheçam a existência de um contrato. No caso de Md Zaber Ahmed, o estafeta que o tribunal veio agora reconhecer como trabalhador efetivo da Uber Eats, a ação foi intentada pelo Ministério Público na sequência de uma inspeção da ACT, noticiou a agência Lusa..“Os políticos estão muitas vezes a regulamentar uma profissão que não conhecem”, disse Hans Melo. “Penso que o ponto de vista do Estado é arrecadar mais impostos através dos contratos dos estafetas com as plataformas, mas não está necessariamente a fazer com que eles ganhem melhor”.