Comunidade escolar não concorda com alteração de calendário
Cerca de 1,2 milhões de alunos (do 1.º ao 12.º anos de escolaridade) não vão regressar às salas de aula após a interrupção letiva de Natal no dia previsto na primeira versão do calendário escolar : 3 de janeiro. As razões da medida, tomada pelo governo como forma de prevenir eventuais contágios de covid-19, é vista com bons olhos pela comunidade escolar, mas o mesmo não se aplica no que se refere à proibição de e@d [ensino à distância] ou às alterações no calendário escolar.
Arlindo Ferreira, diretor do Agrupamento de Escolas Cego do Maio (Póvoa de Varzim) e autor do blogue DeAr Lindo, onde são debatidos temas de educação, discorda "profundamente" das decisões tomadas. "A alteração do calendário escolar vai fazer com que o 2.º e o 3.º períodos sejam demasiado longos para alunos e professores. Não faz sentido a alteração. Devíamos passar a primeira semana para e@d e mantinha-se o calendário. As escolas estão preparadas para o e@d", sublinha. E alerta para a "exaustão de alunos e professores", relembrando que "as pausas são importantes para recarregar energias e equilibrar os períodos letivos". Segundo ele, "já não existe o fator surpresa como existiu no passado" e "haveria tempo suficiente para preparar tudo para a primeira semana de 2022". "As escolas já estão habituadas ao e@d e os alunos mais necessitados já têm computadores", conclui.
Marco Carvalho, diretor do Colégio Júlio Dinis, no Porto, também lamenta a proibição do e@d e pede mais autonomia para gerir o calendário escolar.
"A gestão devia ser dada às escolas, tal como no ano anterior. Com a limitação estou de acordo, mas as escolas deveriam ter autonomia e poder gerir o seu calendário escolar como achassem mais adequado. Obviamente, cumprindo o número de dias previsto no calendário. No âmbito do processo de recuperação de aprendizagens, por exemplo, poderiam ser usados esses dias. Esta situação interfere numa dinâmica já estabelecida e equilibrada em muitos estabelecimentos. Se se consegue dar uma resposta online, porque não o fazer?", questiona. Se pudesse decidir, "optaria pelo e@d". "Preferia ter estes dias trabalhados online, numa carga equilibrada, e depois poderia geri-los mais à frente. Estamos a empurrar o problema para alturas do ano em que os alunos intensificam o estudo, principalmente os que vão realizar exames", explica. Segundo o responsável, "o desgaste de alunos, professores e funcionários vai fazer-se notar".
"É importante dosear o esforço e garantir um maior equilíbrio emocional. E esta alteração ao calendário escolar significa um tempo de atividade mais contínuo." O diretor do Colégio Júlio Dinis relembra ainda que "alunos, professores e funcionários não têm o mesmo equilíbrio emocional que tinham antes da pandemia. Não temos uma estrutura de alunos com a mesma capacidade de aceitação do passado. Estamos a sofrer um impacto pandémico numa dimensão mais emocional. O que estamos a viver este ano letivo é uma fase acumuladora: a lidar com a covid e com o resultado dos confinamentos anteriores", alerta. Marco Carvalho relembra que existem constrangimentos acrescidos nas escolas que funcionam por semestres (o 1.º semestre termina a 28 de janeiro de 2022), pois "perdem uma semana que só poderá ser compensada já no decorrer do segundo semestre".
Quem também demonstra preocupação com a saúde mental de alunos e professores é Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos de Escolas Públicas (ANDAEP), embora aplauda a decisão do adiamento do regresso às aulas e a não existência de "ensino remoto de emergência".
"O facto de o governo não ter decretado o ensino remoto é positivo, porque, se assim não fosse, iríamos continuar a contribuir para o aumento das desigualdades. Ainda faltam chegar 600 mil computadores às escolas", afirma. Apesar de considerar a medida do adiamento como "prudente", o responsável não deixa de lamentar que "a escola pague a fatura pelos erros da sociedade. É bom que se note que este adiamento não tem a ver com o funcionamento das escolas, onde nos prevenimos e combatemos a propagação do vírus, mas uma fatura que a educação irá suportar porque a sociedade não tem juízo e a escola é que paga. E é por causa do comportamento da sociedade que o calendário foi alterado. O ideal era que não tivesse sido. Aquelas pausas são estratégicas e servem para os alunos ganharem oxigénio para o resto do período e para os professores fazerem trabalho burocrático".
As preocupações dos diretores de escolas públicas e privadas não diferem das manifestadas pelos professores. Luís Sottomaior Braga, professor de História do ensino básico, acredita na existência de uma "subvalorização do e@d" e afirma que "proibir é violar a autonomia das escolas". "O adiamento do regresso às aulas é uma medida sensata, mas em cada escola podia avaliar-se a capacidade e, ainda que fosse em tempo parcial e com atividades de sentido diferente de aulas, podia ser útil, onde fosse possível, manter nesses dias o laço com a escola. Tanto discurso com a recuperação de aprendizagens e perde-se essa oportunidade nos sítios onde é possível".
Para o docente, "a questão do calendário é lateral e mais um sintoma do centralismo. Porque é que ainda existe um calendário escolar anual centralizado e uniforme e não um calendário indicativo geral, precisado em cada escola?", questiona. Alertando para a questão emocional, garante que "não havendo aulas nos primeiros dias de Janeiro", cria-se "um problema em termos de acumulação de esforço. As pausas a meio do ano escolar são boas para os alunos, professores e para as aprendizagens". Na visão da "escola-depósito", "as pausas perturbarão a função de guarda de crianças, que alguns responsáveis esquecem que não é a função da escola. O tema das pausas escolares é uma das ofensas mais recorrentes aos professores: teremos, na voz pública mal informada, muitas férias. Talvez não sejam assim tantas e o trabalho não seja assim tão leve face à quantidade reduzida de pessoas que se candidatam à profissão", afirma. E acredita que "ninguém reflete que os professores (tirando as pausas) não são livres como qualquer outro trabalhador de ter férias fora do mês de agosto ou de escolher o tempo de férias".
Liliana Pinto, professora de Geografia, para quem o adiamento do regresso às aulas é uma medida acertada, pede "uma testagem massiva no momento do regresso ao ensino presencial". "É uma medida preventiva que poderá prevenir um confinamento mais prolongado ou mesmo uma situação de e@d duradoura. Para além disso, permite ao Estado e ao Ministério da Saúde preverem com maior fiabilidade as tendências da taxa de contágio e até estabelecerem novas medidas preventivas". Contudo, para a docente, "porque vivemos numa democracia, a proibição do e@d, que pode ser usado como um instrumento positivo e alternativo ao cenário sem atividades letivas, deveria poder ser considerada pelas instituições que reúnem condições tecnológicas e de recursos humanos para o fazer de forma imediata. Sempre que existe uma proibição, só porque nem todos reúnem as condições para o fazer, é perder um pouco mais de democracia e liberdade. Há tantas disparidades entre o ensino público e o privado que nem sequer faz sentido proibir o exercício de uma potencialidade a um, só porque o outro não a tem. Poderíamos transpor esta situação para a área da saúde, e logo esta questão nos pareceria ridícula. Um hospital privado deixaria de poder tratar os seus doentes em situação de pandemia só porque o sistema de saúde público não tinha condições adequadas para tratar os seus. E assim não haveria injustiça?", argumenta. Acreditando que na base da proibição está a falta de resposta para o e@d em algumas escolas públicas, refere que "uma semana não tem representatividade significativa nas aprendizagens dos alunos".
André Pestana, coordenador nacional do Sindicato de Todos Os Professores (S.T.O.P), diz compreender os motivos que levaram ao adiamento do arranque do 2.º período, mas pede, "em nome da coerência", que as reuniões de professores não sejam presenciais. "O governo deveria, desde já, também dar indicações para todas as escolas fazerem reuniões online no final do 1.° período, precisamente para minorar o risco da saúde pública. Neste momento, cada direção de escola é que decide se as reuniões (por exemplo, de avaliação) são presenciais ou online, mas se é uma questão de saúde pública, não deveria ser cada direção escolar a decidir individualmente. Por outro lado, a testagem/reforço da vacinação de todos os profissionais de educação deveria ser uma prioridade iminente", sustenta. Para ele, "a proibição do e@d precisamente quando, neste momento, muitos mais alunos têm os meios que o possibilitariam - ao contrário do que aconteceu durante os anos letivos passados - só reforça que o governo reconhece que, infelizmente, apesar do esforço/dedicação enorme dos professores, o e@d não foi propriamente bem-sucedido. O que nos preocupa mais é a manutenção do elevado número de alunos sem professor a uma ou mais disciplinas (possivelmente mais de 20 mil alunos); o número cada vez maior de alunos com "professores" sem formação adequada devido à falta de professores qualificados; o elevado número de alunos por turma em muitas escolas; a exaustão, o envelhecimento dos profissionais; o excesso de trabalho burocrático e a desmotivação que afetam cada vez mais docentes", diz.
O responsável defende não ser possível uma recuperação de aprendizagens com "tantos problemas por resolver. Tudo isto é que devia ser proibido para se ter um plano realista de recuperação para os nossos alunos, os quais foram profundamente afetados nos últimos dois anos letivos devido à pandemia. Tudo o resto, nomeadamente task forces, é apenas propaganda do governo que até poderá piorar o problema", critica. No que se refere às mudanças no calendário escolar, o S.T.O.P diz tratar-se de "paliativos face à dimensão do gravíssimo problema do estado das aprendizagens dos alunos", sendo a mudança "mais importante" a que "deveria ser feita nas políticas educativas, valorizando a profissão docente".
Na opinião de Rui Martins, presidente da CNIPE (Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregados de Educação), "não haver e@d é um mal menor", embora manifeste preocupação com "a evolução do restante ano letivo. Estávamos a pensar que as escolas estariam preparadas para assegurar o e@d, e, pelos vistos, não estão. Se não foi posta essa solução em cima da mesa, é porque não há condições para o ensino à distância. Esperemos é que não seja posto em causa o ano letivo", afirma. Já para Jorge Ascenção, dirigente da CONFAP (Confederação Nacional das Associações de Pais), a maior preocupação prende-se com a "gestão familiar". "Compreendemos o objetivo de tentar evitar contágios no período dos convívios familiares e festas. O que me pareceu é que se trata de uma almofada de segurança. Aceitamos esta medida. Falta saber que tipo de compensação haverá para as famílias. O teletrabalho não serve para todos. Haverá quem não possa ficar de todo em casa pelo tipo de trabalho que exerce e pode acontecer que nenhum dos cônjuges possa ficar em casa, e por isso deverá haver escolas abertas", refere. E afiança que "os contágios nas escolas são feitos de fora para dentro", esperando que seja "possível avançar com a vacinação para as crianças".
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