Como os pais contra a educação sexual estão a perder a guerra no Tribunal Europeu

Os Estados não podem usar o ensino público para endoutrinar, mas tal não implica que os pais tenham o direito de impedir que os filhos sejam confrontados com ideias contrárias às suas convicções, diz o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que defende a educação sexual e tem recusado condenar países que a impõem.
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Dirk e Petra Wunderlich tinham acabado de preparar os filhos para a primeira aula de ensino doméstico do ano. De repente, sem aviso, o governo alemão apareceu para lhes tirar as crianças. 33 polícias e sete assistentes sociais cercaram a casa e ameaçaram mandar a porta abaixo. Os quatro filhos de Dirk e Petra, com entre 7 e 14 anos, gritaram de terror quando os polícias invadiram a casa. (...) Seguiram-se os assistentes sociais, que agarraram os miúdos e os levaram com a ajuda da polícia. (...) Naquele momento, os Wunderlich descobriram que poucos direitos parentais subsistem na Alemanha para as pessoas de fé."

Esta descrição do ocorrido no dia 29 de agosto de 2013 em Darmstadt, na Alemanha, encontra-se no site da Alliance Defending Freedom (ADF), uma organização cristã conservadora norte-americana que se define como defensora da liberdade religiosa, mas é conhecida sobretudo pela sua luta contra os direitos LGBT e para impedir o acesso à contraceção e interrupção voluntária da gravidez, sendo identificada como extremista e aliada da extrema-direita pelo Global Project Against Hate and Extremism (Projeto Global Contra o Ódio e o Extremismo).

"Foram precisas três semanas", prossegue o relato, "para os Wunderlich conseguirem reaver os filhos e, mesmo então, só com custódia parcial dependendo de as crianças irem às aulas na escola pública. O governo também tomou posse dos passaportes da família para a impedir de sair do país. (...) Claramente, o governo alemão está determinado a ter a última palavra sobre quem treina as mentes das crianças Wunderlich. (...) Em vez de permitir a pais extremosos como estes fazer o que acreditam ser o melhor para o desenvolvimento dos seus filhos, transmitindo a sua fé e valores, o governo questiona se eles estão aptos a manter a custódia das crianças."

Informando ter ajudado a família a lutar contra o Estado alemão e aquilo que descreve como "um crescente controlo dos Estados sobre as famílias e a promoção de conformidade ideológica", a ADF dá como exemplos dessa "conformidade" e "controlo" "a lecionação de educação sexual na escola básica/primária" e "leitura pelos professores, perante os alunos, de livros que promovem "ideologia de género"".

A luta, porém, não foi bem sucedida, denuncia a organização: "A família Wunderlich só quer poder fazer o que milhões de famílias americanas fazem, educar os filhos em casa, ensinando-os da forma que pensam ser a mais adequada. Mas tribunal após tribunal rejeitou este direito fundamental de Dirk e Petra. Uma decisão devastadora chegou em janeiro, quando o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos [TEDH] se colocou do lado da Alemanha, decidindo que as ações do país não violaram os direitos da família de acordo com a lei internacional. Os Wunderlich apelaram ao plenário do TEDH, a mais alta instância deste órgão, mas este, num ato chocante, recusou rever o caso."

O texto, datado de julho de 2019, na sequência da recusa do tribunal de rever a sua decisão de janeiro do mesmo ano, termina com um pedido de doações para "uma defesa forte e em todo o mundo dos cristãos que - como os Wunderlich - estão a ser punidos pela sua fé", colocando esta família no centro de uma guerra global.

Uma guerra da qual Portugal é agora também palco, com o caso da família Mesquita Guimarães, de Famalicão, cuja mãe e pai pertencem à organização conservadora católica Opus Dei, e que recusa aos filhos adolescentes a frequência das aulas obrigatórias de Cidadania por nelas se incluírem conteúdos relacionados com a sexualidade.

"Não aceito que digam, na escola, que somos uma folha em branco e que um homem e uma mulher juntos são uma construção social. (...) Não aceito que impinjam uma sexualidade ao desbarato porque é enganar as pessoas. Impinjam aos filhos deles, mas nunca aos meus", diz, numa entrevista recente, o progenitor, que desde 2018 recusa todas as tentativas de conciliação propostas pelo Ministério da Educação, o qual tem permitindo que os jovens, apesar de estarem a faltar a uma disciplina obrigatória, transitem de ano de forma condicionada até que exista uma decisão final na justiça.

Atualmente, o caso está no Tribunal de Família e Menores de Famalicão, onde decorre um processo de promoção e proteção dos dois adolescentes, no âmbito do qual o Ministério Público pediu a retirada parcial da custódia dos filhos aos pais, passando aqueles a ficar à guarda da escola durante o período escolar. Os pais já manifestaram a intenção de levar o assunto ao TEDH.

A jurisprudência deste tribunal não tem, no entanto, sido favorável às pretensões daqueles que, como esta família portuguesa, exigem para os pais o direito de recusar que os filhos sejam confrontados com situações, ideias e temas que veem como pondo em causa as suas convicções.

Se a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como aliás a Constituição Portuguesa, estabelece no artigo 2º (Direito à Instrução) do seu protocolo nº 1 que "o Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da Educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas", o TEDH não tem interpretado esse princípio como significando um direito absoluto dos progenitores.

Aliás, pelo contrário: em vários acórdãos sustenta que o superior interesse das crianças e jovens pode colidir com a mundividência da sua família.

Como quando em 1999 não deu razão a uma família de origem portuguesa residente no Luxemburgo que, por ser seguidora da Igreja Adventista do Sétimo Dia, queria dispensa para o filho das aulas ao sábado, por se tratar do dia sagrado no seu culto (Martins Casimiro e Cerveira Ferreira contra o Luxemburgo). Ou quando em 2017 justificou as multas impostas pelo Estado suíço a um casal muçulmano que não permitia, invocando motivos religiosos, que as filhas participassem em aulas de natação com rapazes (Osmanoglu e Kocabas contra a Suíça).

E se frisa que o ensino público não pode ser usado para "endoutrinar", o tribunal tem sistematicamente recusado fazer aquilo que em vários processos os requerentes lhe pedem - considerar educação sexual obrigatória como endoutrinação.

Chega até a aceitar consequências drásticas para a desobediência às determinações dos Estados em matéria de frequência de escolaridade e disciplinas obrigatórias. Como nos casos, dos quais se falará neste texto: da jovem espanhola que teve de repetir o ano por ter faltado às aulas de educação sexual; dos pais alemães que, por terem impedido os filhos de irem às aulas de educação sexual, acabaram a cumprir prisão; e da família Wunderlich, que viu ser-lhe parcialmente retirada a custódia dos filhos.

Voltemos desde já a este último, cujos factos, como será expectável num texto abertamente militante, não são como a ADF (que patrocinou o processo respetivo no TEDH) os descreve.

É verdade que duas decisões do TEDH, a última das quais em julho de 2019, foram contrárias às pretensões da família. É ainda verdade que a polícia alemã foi a casa dos Wunderlich buscar as crianças e que estas ficaram três semanas à guarda do Estado.

Mas está longe de ser verdade que esta intervenção dramática tenha surgido "sem aviso" ou tentativas de resolução por outras vias.

O conflito dos Wunderlich com o Estado alemão, sumariamente descrito no acórdão do TEDH de janeiro de 2019, teve início em 2005, oito anos antes da citada retirada temporária dos quatro filhos, quando os Wunderlich recusaram colocar Machsejah, a mais velha, nascida em 1999, na escola, invocando o facto de esta poder, mesmo se frequentando escolas privadas cristãs, ser submetida a "influências não-desejadas".

O acórdão do TEDH não permite perceber a que tipo de "influências indesejadas" os Wunderlich se referiam, mas em 2014 Dirk disse a jornalistas que "na escola os filhos não aprendiam nada, eram submetidos a uma lavagem ao cérebro sobre a realidade e aprendiam maus comportamentos". Pelo que ele e a mulher tinham decidido que a solução era o ensino doméstico, ministrado pela mãe.

Apesar de na Alemanha a frequência da escola ser compulsória, admitindo raras exceções - doenças graves, filhos de diplomatas e pouco mais -, os Wunderlich reincidiram na conduta em relação aos outros filhos (nascidos em 2000, 2002 e 2005). Foram sujeitos a multas progressivamente mais elevadas e até a procedimentos criminais; pagaram as multas e continuaram a instruir os filhos em casa.

O processo ficou suspenso entre 2008 e 2011, quando residiram fora do país. Ao regressarem, e visto manterem a mesma determinação, não registando os filhos na escola, são chamados ao Tribunal de Família, perante o qual asseguram que a única forma de os seus filhos frequentarem a escola é serem-lhes retirados.

A 6 de setembro de 2012, o tribunal age em conformidade: retira-lhes o direito a decidir o local de morada dos filhos, a tomar decisões relativas a assuntos escolares e a representá-los junto das autoridades, transferindo essas responsabilidades para o Jungendamt (Gabinete da Juventude, equivalente alemão à nossa Comissão de Proteção de Menores). Ordena-lhes também que entreguem as crianças ao Jungendamt, para que este possa certificar-se de que elas frequentam a escola, argumentando que, mesmo caso estivessem a ser convenientemente instruídas em casa, a não-frequência do ensino institucional as impedia de fazer parte da comunidade e de aprender competências sociais, como a tolerância e a capacidade de sustentarem as suas convicções face a opiniões maioritárias de sentido contrário, assim como de lidar com influências que não as dos pais.

Não se tratava assim, estabeleceu o tribunal, apenas de uma desobediência à lei; estava em causa um abuso da autoridade parental, com o risco de prejudicar o superior interesse das crianças.

Os Wunderlich recorreram da decisão, tendo Dirk dito que acreditava residir apenas nele a autoridade para decidir se os filhos podiam frequentar a escola; afirmou até considerar que "os filhos são propriedade dos pais".

O tribunal superior rejeitou o recurso, reiterando as razões da instância inferior e notando também que a atitude dos pais transmitia aos filhos a convicção de que podiam não aceitar as regras da comunidade se as achassem desagradáveis. E assim os Wunderlich chegaram à última instância do país, o Tribunal Constitucional Federal, que não aceitou examinar o caso.

É no fim deste longo processo, e depois de o casal recusar repetidamente que as crianças fossem submetidas a uma avaliação do seu nível de instrução, que surge a intervenção policial de 29 de agosto de 2013, retirando os filhos da casa da família. Regressam a 19 de setembro, após efetuada a citada avaliação e depois de os pais concordarem em colocá-los na escola.

A aquiescência dura pouco tempo, porém: em junho de 2014 o casal volta à sua, levando as autoridades escolares a reiniciar o processo. Entretanto, em agosto de 2014 um tribunal superior confere-lhe de novo a custódia plena, considerando que a avaliação das crianças permite concluir que não estavam em risco físico e que separá-las dos pais, única forma de garantir que frequentassem a escola, lhes causaria mais dano do que serem ensinadas em casa. Ao mesmo tempo, o tribunal frisa que tal decisão não significa que esteja a autorizar o ensino em casa, e refere o facto de estar (na altura) em curso um processo criminal contra os Wunderlich por recusarem aos filhos a frequência escolar, no qual, se condenados, podiam ter de cumprir até seis meses de prisão.

A queixa dos Wunderlich chega ao TEDH em 2015. A decisão, de 2019, estabelece que sendo sem dúvida, a retirada parcial da autoridade parental e a colocação das crianças num centro de acolhimento, interferências no direito, consagrado no artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ao respeito pela vida privada e familiar, essas medidas prosseguiram fins legítimos de proteção da saúde e da moralidade e dos direitos e liberdade de outros (neste caso, os filhos), e foram aplicadas de modo proporcionado.

Isto porque, explicam os juízes, a jurisprudência anterior do tribunal considera a obrigatoriedade de frequência da escola, imposta pelo Estado alemão, compatível com os princípios da Convenção e pertencendo à "margem de apreciação" dos Estados. Por outro lado, ainda segundo o acórdão, o consagrado no artigo 8.º da mesma Convenção implica um equilíbrio entre o interesse da criança e o interesse dos pais; nesse equilíbrio deve ser dada particular importância ao interesse da criança, o qual, dependendo da natureza e gravidade do caso, pode sobrepor-se ao dos pais.

Assim, o TEDH conclui, relevando, por exemplo, a afirmação do pai de que os filhos lhe pertenciam e considerando que esta era de molde a fazer as autoridades temer pela sua integridade, que havia "razões relevantes e suficientes para a retirada de uma parte da autoridade parental e para a remoção temporária das crianças da casa da família", tendo as autoridades alemãs agido de forma proporcionada, logrando um equilíbrio entre os interesses das crianças e do casal que não ultrapassou os limites da margem de apreciação concedida aos estados, pelo que não houve violação do artigo 8.º.

Como vimos, ainda que a ADF relacione o caso dos Wunderlich com a respetiva fé cristã e com uma oposição à educação sexual (obrigatória na escola alemã) e àquilo a que a organização denomina de "ideologia de género" - apresentada pelas correntes ideológicas a que a ADF pertence como estando relacionada com feminismo e a igualdade de dignidade e direitos das pessoas LGBT -, o casal nunca invocou uma objeção específica contra a mesma.

Tal pode relacionar-se com o facto de num processo anterior relativo à Alemanha o TEDH se ter debruçado especificamente sobre a questão da educação sexual obrigatória e o potencial conflito desta com as convicções dos pais, considerando que não havia violação da Convenção.

Trata-se de uma decisão de 2011, relativa a cinco casais membros da Igreja Cristã Evangélica Batista cujos filhos frequentavam a mesma escola primária na Renânia do Norte-Vestefália e que entre 2005 e 2007 objetaram contra aulas de educação sexual, contra um workshop teatral escolar para prevenir o abuso sexual e uma celebração carnavalesca, alegando que tudo isso conflituava com as suas convicções religiosas e morais e pedindo escusa de tais atividades.

Os pais em questão argumentaram que os seus filhos "tinham sido educados sem a influência negativa dos media", "estando habituados a um comportamento sexual modesto e casto em casa" (relembre-se que se tratava de crianças que frequentavam a primária) e "consequentemente não tinham a maturidade necessária para receber a dita educação sexual".

Os encarregados de educação insurgiam-se também contra o manual que ia ser usado nas aulas de educação sexual e que, na sua opinião, era parcialmente "pornográfico" e "contrário à ética sexual cristã", a qual, no seu entender, prescreve o sexo como sendo limitado ao matrimónio. Isto porque do seu ponto de vista o dito manual apresentava uma imagem liberal e emancipatória da sexualidade, não se coadunando com as suas convicções morais e religiosas e, defendiam, conduzindo a uma sexualização precoce das crianças.

Não tendo a escola aceitado o pedido dos encarregados de educação, uma parte deles tentou evitar que os filhos frequentassem as atividades ou não os deixou ir à escola quando estas decorriam. Em resultado, os pais que assim agiram foram multados. Alguns recusaram pagar, contestando a legitimidade das multas; tendo esta sido reiterada pelos tribunais, os que continuavam a recusar pagar foram condenados a penas de prisão.

O caso, Dojan e outros contra a Alemanha, passou por todas as instâncias jurisdicionais alemãs, incluindo o Tribunal Constitucional Federal, que recusou apreciá-lo, che- gando ao TEDH em 2008.

Os queixosos alegaram perante o tribunal europeu que a recusa de dispensa das atividades descritas e as decisões dos diversos tribunais alemães tinham violado o artigo 2.º do Protocolo n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (citado acima).

Afirmando não se oporem por princípio à educação sexual na escola, os queixosos disseram que a obrigatoriedade de frequência daquelas aulas em específico, assim como das outras atividades em causa, ao promoverem "uma visão liberal da sexualidade", correspondia a endoutrinação dos seus filhos, infringindo os direitos garantidos pelo artigo 9.º da Convenção (Direito à liberdade de pensamento, consciência e religião) e artigo 8.º (Direito ao respeito pela vida privada e familiar).

Na sua decisão, o TEDH argumenta que estes direitos não impedem os Estados de disseminar, nas escolas públicas, através do que ali se ensina, informação objetiva ou educativa no currículo escolar, porque de outro modo todo o ensino institucionalizado correria o risco de ser impraticável.

De facto, diz o tribunal, "é muito difícil que certos temas ensinados na escola não tenham, em maior ou menor grau, aspetos e implicações filosóficos. O mesmo é verdade para as afinidades religiosas, se se tiver em conta que há religiões que formam um sistema dogmático e moral muito extenso que tem ou pode ter respostas para qualquer questão de natureza filosófica, cosmológica ou moral."

Por outro lado, o TEDH observa que as aulas de educação sexual em causa tinham como objetivo, frisado pelos tribunais alemães, a transmissão neutral de conhecimento respeitando à procriação, contraceção, gravidez e nascimento de acordo com as provisões legais e o currículo, visando providenciar aos alunos conhecimento de aspetos biológicos, éticos, sociais e culturais da sexualidade adequados à sua idade e maturidade, de modo a que pudessem desenvolver a sua perspetiva moral e uma abordagem independente à sua própria sexualidade. "Educação sexual deve encorajar tolerância"

Mas o TEDH vai mais longe, prescrevendo que a educação sexual "deve encorajar tolerância entre os seres humanos, independentemente da sua orientação sexual e identidade".

E reconhece estar tal objetivo refletido nas decisões dos tribunais alemães sobre o caso, ao estabelecerem "que a educação sexual naquele grupo etário é necessária para possibilitar às crianças que lidem criticamente com as influências vindas da sociedade em vez de as evitarem, e está pensada para educar cidadãos responsáveis e emancipados, capazes de participar nos processos democráticos de uma sociedade pluralista - em particular, com vista a integrar minorias e evitar a formação de sociedades paralelas religiosa ou ideologicamente motivadas".

Aliás, o TEDH reitera - fazendo alusão a um acórdão de 2009, o do caso Appel-Irrgang e outros contra a Alemanha, dizendo respeito à introdução de aulas obrigatórias de Ética, do sétimo ao 10º anos de escolaridade, nas escolas públicas alemãs - que "a Convenção não garante o direito a não se ser confrontado com opiniões que são opostas às convicções de cada um".

Nota ainda que, como referido pelos tribunais alemães, as famílias em causa tinham a liberdade de educar os filhos depois da escola e nos fins de semana e portanto o seu direito a educá-los em conformidade com as suas convicções religiosas não estava restringido de forma desproporcionada. Considerou ainda não existir desproporção na forma como as autoridades e tribunais alemães tinham tratado o assunto, já que à recusa de deixar os filhos frequentar as atividades obrigatórias correspondia uma contravenção administrativa, que podia ser punida com multa, sendo a recusa de pagar as multas, ofensa criminal, a fazê-los incorrer em penas de prisão. Assim, decidiu, por unanimidade, recusar as queixas.

No mesmo sentido vai uma decisão bem mais recente do TEDH, de dezembro de 2017, igualmente dizendo respeito a um pedido de dispensa de aulas de educação sexual na escola primária.

Trata-se do caso AR e LR contra a Suíça, cujas requerentes, mãe e filha, o tribunal mantém no anonimato a seu pedido. Em causa estão de novo os artigos 8.º e 9.º da Convenção, que a encarregada de educação considera terem sido violados. Isto porque o seu pedido, apresentado em 2011 à escola, para que a filha de sete anos não frequentasse as aulas de educação sexual, foi rejeitado pela diretora (alegando não poder efetuar tal dispensa pois não existiam aulas de educação sexual enquanto tal, sendo o tema abordado junto dos alunos quando os professores considerassem oportuno).

Seguiu-se recurso para o diretor do departamento de educação da região (cantão) a que pertence a escola, no qual a mãe dizia temer consequências negativas para a saúde física e psíquica da criança, e que a existência de aulas de educação sexual na escola a privava de abordar ela mesma o "assunto sensível da sexualidade" com a sua filha.

O recurso foi recusado pelo responsável, argumentando que existia uma ingerência ligeira no exercício do direito ao respeito pela vida privada, mas tal ingerência tinha base legal, e que a educação sexual não tinha como objetivo propagar uma certa moral sexual junto dos alunos, mas prosseguia um fim legítimo, o da proteção das crianças contra violências sexuais e do reforço de uma relação positiva com o seu corpo. Além disso, acrescentava, os professores ministravam os tais conteúdos não de uma forma sistemática mas em resposta a questões dos alunos e sempre de modo apropriado à sua idade.

O processo seguiu para o tribunal administrativo do cantão, que rejeitou o recurso, e daí para o tribunal federal, que, resumidamente, considerou não poderem alunos da primária ser dispensados da educação sexual.

O caso chega então ao TEDH, ante o qual as requerentes declaram, como os pais do caso Dojan, não estarem contra a educação sexual na escola pública, mas não verem utilidade para a mesma no jardim-de-infância e nos dois primeiros anos da primária. A encarregada de educação considera que a sua filha sofreu uma ingerência injustificada no exercício do seu direito ao respeito pela vida privada (artigo 8.º), invocando também uma violação da proibição de discriminação e um ataque à sua liberdade de religião e consciência (artigo 9.º).

Ante a afirmação da encarregada de educação de que as autoridades suíças não podem invocar um fim legítimo para as suas ações, porque a criação de condições para uma sexualidade autodeterminada e a proteção contra as doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez involuntária não se aplicam a crianças de quatro a oito anos, o TEDH admite que a aplicação de alguns destes objetivos a crianças daquelas idades pode ser controversa. Mas, sublinha, o segundo parágrafo do artigo 8.º faz menção expressa à proteção da saúde, e, de acordo com a diretiva suíça, um dos fins da educação sexual é a prevenção das violências e abusos sexuais.

Considerando que esses abusos representam uma ameaça real para a saúde física e moral das crianças, da qual devem ser protegidas em qualquer idade, o TEDH conclui que a sociedade tem, inegavelmente, um interesse em que as crianças muito jovens recebam uma educação sexual. E que existe um outro aspeto intrinsecamente ligado à tarefa da educação pública, o de preparar as crianças para as realidade sociais, que favorece a existência de educação sexual para as crianças muito pequenas que frequentam os jardins-escola e a primária.

Assim é porque, prossegue o tribunal, as crianças não vivem isoladas, são expostas a uma multitude de influências e de informações exteriores - incluindo por parte dos media - que podem suscitar-lhes questões legítimas e que tornam necessário um enquadramento dos assuntos. Por consequência, existem vários fins legítimos para a educação sexual em idades tão precoces.

Aliás o tribunal chama a atenção para o facto de, necessitando a natureza da ligação entre os pais e crianças tão pequenas de uma proteção particular, a proteção da educação parental prevista no artigo 5.º da Convenção Sobre os Direitos da Criança, e invocada pelas requerentes, não ser um fim em si, devendo sempre servir o superior interesse da criança.

Essa constatação, diz o TEDH, decorre do próprio texto da dita Convenção, que no seu artigo 29º, alínea d, estabelece que os estados acordam em que a educação deve ter em vista a "preparar a criança a assumir as suas responsabilidades numa sociedade livre" (a alínea d completa lê-se: "Preparar a criança para assumir as responsabilidades da vida numa sociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e com pessoas de origem indígena").

E no artigo 19.º, sublinha ainda o tribunal, obrigam-se os estados a tomar todas as medidas, nomeadamente educativas, para proteger a criança contra toda a forma de violência, de atentado ou de brutalidades físicas ou mentais (...), incluindo a violência sexual. Afirmando o TEDH que a educação sexual escolar, como a que é praticada nas escolas do cantão suíço em causa, prossegue esses objetivos.

Por fim, os juízes abordam a pretensa violação, pelo Estado suíço, do direito à liberdade de pensamento, consciência e religião das requerentes, consagrado no artigo 9.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. E estipulam não ter de examinar a questão por a queixa se limitar a citar, de forma abstrata, "valores fundamentais, éticos e morais da pessoa humana" que "estariam ligados à educação sexual", sem explicar concretamente quais e como seriam afetados pela participação em lições de educação sexual. Frisa ainda o TEDH que o artigo 9.º não outorga a um adepto de uma certa religião ou filosofia o direito de recusar a participação do seu filho num ensino público que pode ser contrário às suas ideias; limita-se a proibir o Estado de endoutrinar as crianças e jovens através desse ensino.

A este propósito, o acórdão faz referência a um outro de 2000, do caso Jiménez Alonso e Jiménez Merino contra Espanha, que versa também sobre a oposição de um encarregado de educação à educação sexual.

Esteve nesse processo em causa o facto de uma jovem de 14 anos ter chumbado na disciplina de Ciências Naturais do 8º ano de escolaridade devido a ter faltado, por decisão do encarregado de educação (o pai), às aulas da disciplina nas quais o professor abordou a sexualidade humana, assim como ter recusado responder a perguntas sobre o tema quando foi a exame. Em consequência, teve de repetir o ano.

O pai, ele próprio professor e vice-presidente da Associação Católica de Professores, recorreu para o ministério, que recusou o recurso, numa decisão da então ministra da Educação Esperanza Aguirre (do governo de José Maria Aznar), em março de 1997, e depois para o tribunal de justiça, que o rejeitou igualmente, considerando que a decisão do ministério estava de acordo com os princípios fundamentais da Constituição. "O direito dos pais a dar aos seus filhos uma educação em consonância com as suas convicções pessoais pressupõe, numa sociedade pluralista, o direito de escolher, estando esse direito ligado à liberdade de estabelecimento de escolas de modo a que os pais possam escolher uma adaptada às suas crenças e ideias", disse o tribunal. Mas, advertiu, "tal não pressupõe o direito a impor as convicções pessoais de cada um aos outros ou exigir tratamento diferente à medida das suas convicções. (...) Em conclusão, o direito dos pais a educar os filhos de acordo com as suas convicções (...) não é um direito absoluto, mas deve ser determinado em relação com as garantias constitucionais de outros membros da comunidade educativa, não sendo justo tentar impor uma diferença de tratamento ou uma discriminação positiva com base nas ideias de cada um, ou escolher ou predeterminar, com base nas ideias particulares, o conteúdo do currículo escolar num estabelecimento de ensino público (...)."

Acolhendo esta argumentação do tribunal espanhol, o TEDH frisou que em Espanha há muitas escolas privadas, possibilitando aos pais a liberdade de matricular os filhos nos estabelecimentos que considerem mais adequados, e que os requerentes não apresentaram qualquer razão para não terem optado por uma escola não pública.

Tendo examinado os conteúdos de educação sexual em questão - que incluíam contraceção e aborto e doenças sexualmente transmissíveis como o HIV - o tribunal concluiu que "haviam sido desenhados de forma a fornecer aos alunos informação objetiva e científica sobre a vida sexual dos humanos, doenças venéreas e SIDA (...), e que de nenhuma forma constituíam uma tentativa de endoutrinação no sentido de advogar um qualquer comportamento sexual". Além disso, acrescentou, "essa informação não afetava o direito dos pais a esclarecer e aconselhar os seus filhos (...) ou guiá-los de acordo com as suas convicções religiosas". Assim, também neste caso não deu razão aos queixosos.

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