“O ICAD (Instituto para os Comportamentos Aditivos e Dependências) é constituído a partir do anterior SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências) mas agregando também os profissionais e as unidades que estiveram na dependência das ARS (Administrações Regionais de Saúde) durante o arranjo anterior”, começa por explicar o presidente do ICAD, João Goulão..“Essa migração aconteceu a partir do dia 1 de abril e aquilo que era expectável era que a parte correspondente aos últimos três trimestres [entre abril e dezembro de 2024] fosse transferido. Ou seja, o correspondente ao financiamento das ARS para esta área deveria ser transferido para o ICAD”, sublinha João Goulão. .Só que isso não aconteceu “pelo menos de forma clara. Aquilo que tem acontecido são transferências sucessivas, quando temos necessidade de fazer compromissos, pagar ordenados, etc. Só que nunca foi clarificado qual o montante total que teríamos até ao final do ano”, acrescenta o presidente do ICAD..“Não é uma situação dramática mas teríamos vantagem em ter uma clarificação. O ano vai passando, temos tido como que suplementos de financiamento que nos têm permitido manter a atividade. A clarificação do montante total não aconteceu e, provavelmente, já não vai acontecer. Já estamos nas tarefas de construção do orçamento para o próximo ano. E aí, as coisa têm de ficar claras”. .Apesar desta situação “aquilo que vinha de trás tem-se mantido e temos tido, também, capacidade de lançar novas atividades, como é o caso do concurso para a Unidade de Consumo Vigiado Móvel do Porto. Vamos conseguindo fazer o que estava planeado. Não há motivo para alarme, mas há algumas reivindicações por parte, nomeadamente, dos nosso parceiros do setor social e privado, relativamente, por exemplo, à remuneração das convenções para comunidades terapêuticas ou para unidades de recuperação, que pretendem, com toda a justiça, uma atualização desses valores”, prossegue João Goulão..“Passámos estas preocupações à tutela [ministério da Saúde] e está a ser considerado mas, seguramente, só em sede de orçamento de 2025 poderá haver alguma consideração sobre estas matérias”..No terreno, os meios continuam a trabalhar. O centro das Taipas, uma das Unidades de Desabituação (UD), por exemplo, passou do domínio da ARS Lisboa e Vale do Tejo, para o ICAD. “Felizmente, no governo anterior e para acabar de concretizar com o atual governo, voltou a ter-se um instituto nacional [ICAD]. É fundamental, num país pequeno, com dez milhões de habitantes, voltar a ter um serviço vertical. Anteriormente as ARS interpretavam os serviços como queriam, como podiam e como sabiam. A resposta aos problemas era assimétrica. O novo serviço ainda não está a funcionar em pleno, porque ainda não temos orçamento, não temos lei orgânica, mas há uns balões de oxigénio e vai-se mantendo”, avança o psiquiatra Miguel Vasconcelos, coordenador da UD das Taipas..Na UD das Taipas fazem-se consultas, há um serviço de internamento para desabituação das drogas, um centro de dia e um ginásio. “Normalmente, o tratamento é feito em ambulatório, em 90% dos casos. O internamento acontece, geralmente, quando há uma rede social frágil que não permite fazer a desabituação em casa”, avança Miguel Vasconcelos..Para aceder à UD Taipas não é preciso ultrapassar burocracias. “Quem quiser, basta telefonar para marcar uma consulta. O primeiro contacto é aquilo que chamamos de ‘acolhimento’, que recolhemos dos dados do doente, explicamos o que é o serviço, e ele também pode explorar e perceber se é isto que quer. Todos os doentes têm um psiquiatra, um psicólogo e uma assistente social”..Após isto, passa-se, normalmente, ao tratamento. “Entendemos uma substância de consumo como um sintoma de uma doença, que é a dependência. Trabalha-se, com a pessoa, no sentido de estar abstinente”..Alguns doentes passam da UD para uma comunidade terapêutica. Há três comunidades terapêuticas públicas em Portugal: em Lisboa, no Porto e no Algarve..O DN visitou a comunidade terapêutica do Restelo, em Lisboa, onde estão, neste momento, 17 utentes, 14 homens e três mulheres. Paulo, 52 anos, é um dos internados. Foi consumidor de heroína durante mais de 25 anos. “Conheci a minha companheira e, se queríamos continuar a relação, teria de ter um caminho diferente”, afiança. .O tempo mínimo de permanência na comunidade terapêutica é de um ano e a entrada tem de ser voluntária. “A comunidade não tem staff, por exemplo na cozinha, porque são os utentes que fazem as coisas. Tudo o que acontece na comunidade é numa lógica de capacitá-los, de lhes dar treino de competências e responsabilidade”, avança Maria Cristina Mesquita, psicóloga e coordenadora da comunidade. “Este modelo supõe a desintoxicação física prévia”, acrescenta. “Isso é feito nas Taipas, por exemplo”..Além destes dois serviços, diretamente orientados pelo ICAD, existem outros serviços, financiados a 80% por esta entidade e que trabalham numa primeira abordagem aos toxicodependentes. É o caso das equipas de rua, que em Lisboa estão atribuídas à Associação Crescer. “Vamos ao encontro das pessoas nos principais locais de consumo de substâncias psicoativas de Lisboa, em contexto de vulnerabilidade. Pode ser a céu aberto, rua, ou com fraca assepsia, como casas abandonadas, ou fábricas devolutas”, conta Solange Ascensão, coordenadora das duas equipas de rua que trabalham, diariamente, em Lisboa: uma na zona Oriental, outra na zona Ocidental da cidade..As equipas de rua trabalham a redução de riscos e minimização de danos durante o consumo de drogas, distribuindo kits de consumo fumado ou injetado e outros materiais, como preservativos, para prevenir as infeções sexualmente transmitidas. “O nosso atendimento é psicossocial. Aproximamo-nos das pessoas, perguntamos se pudemos ajudar, como é que estão... Estabelecemos uma relação, essa é a parte mais importante do nosso trabalho: ganhar confiança”..As equipas de rua distribuem, ainda, entre os dependentes de droga, o medicamento naloxona, capaz de reverter overdoses de opiáceos. “Fazemos também formação para que as pessoas saibam como identificar uma overdose, seja de opiáceos, seja de estimulantes, e como atuar no caso de encontrar uma overdose”, acrescenta Solange Ascensão. .Américo Nave, psicólogo, diretor e fundador da Crescer, alerta para a importância do ICAD. “Não é só financeira mas também do pode de vista do conhecimento. Haver um instituto só dedicado a esta área dos comportamentos aditivos faz com que se desbrave um certo caminho ao nível do conhecimento cientifico e que é uma área muito específica. Há uma área de investigação e um saber nesta área”. Porém, garante que “houve um desinvestimento nesta área nos últimos 15 anos. Ao haver um desinvestimento não se pode esperar que a situação, na rua, esteja melhor”..As carrinhas de distribuição de metadona são outro apoio para os toxicodependentes. A metadona é um substituto opiáceo que “permite que estas pessoas façam a sua vida normal”, sublina Hugo Faria, psicólogo e um dos coordenadores da IPSS Ares do Pinhal, também responsável pela Sala de Consumo Assistido. Isto se não houver outros consumos associados. “Venho aqui, já não consumo heroína, mas fumo cocaína”, revela Tiago Praça, 52 anos, na droga desde os 16. “Parei com a heroína há quatro anos e isto permitiu-me ter uma vida minimamente normal”. .Há duas carrinhas a parar, todas as manhãs, em cinco pontos de Lisboa, financiadas a 80% pelo ICAD..A Sala de Consumo Assistido, localizada na Quinta do Loureiro, em Lisboa, é única no país. “A partir de 2016 começaram a aumentar os consumos visíveis, a céu aberto. Isto já estava previsto desde 2001 mas a sala só abriu em 2021. Esteve dois anos como projeto-piloto e, em 2023, passou a projeto público. É financiada em 80% pelo ICAD”, recorda Hugo Faria, psicólogo e um dos coordenadores da Ares do Pinhal.. “Não queríamos que isto fosse apenas um sítio onde as pessoas vêm consumir droga. Queríamos que fosse um serviço de apoio integrado, que providenciasse serviços de higiene básica, alimentação, cuidado de roupa, serviço social, apoio psicológico, serviços de enfermagem e cuidados médicos”. Os frequentadores “são as pessoas que não têm condições de higiene e segurança, que de outro modo consomem na rua, num buraco qualquer”. .A intervenção vai mais longe: “Aqui é uma porta de entrada. O nosso modelo de intervenção é esse: promover a autonomia das pessoas e ligá-las, de novo ao sistema de saúde, social, jurídico, etc”.