Ministra da Saúde aceitou demissão do presidente do CA da ULS Amadora Sintra.
Ministra da Saúde aceitou demissão do presidente do CA da ULS Amadora Sintra.

Caso da grávida que morreu. Amadora-Sintra é uma das quatro unidades do SNS sem sistema informático de partilha de dados

A morte de uma grávida de 38 semanas, na sexta-feira, no Hospital Fernando da Fonseca já levou à demissão do presidente do Conselho de Administração da ULS Amadora Sintra. Mas a razão da saída está no facto de ter havido uma falha na informação passada à ministra da Saúde, com a justificação de que o sistema informático existente no hospital e no centro de saúde são diferentes. SPMS confirma que esta ULS é das que tem sistema antigo.
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O Registo de Saúde Eletrónico (RSE) do doente é um projeto de há muitos anos, ainda do tempo em que a Troika andava por Portugal (2012). E o seu objetivo era criar uma base de dados única para os utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS) de forma a que todas as unidades pudessem ter acesso ao seu processo clínico. Aliás, na altura, a explicação dada pelo próprio Governo de Passos Coelho, era a de que o RSE serviria para que o doente não ficasse esquecido no sistema e não se perdesse o rasto de todos os passos dados no âmbito do seu processo de saúde.

Ministra da Saúde aceitou demissão do presidente do CA da ULS Amadora Sintra.
Ministra aceita demissão do presidente do Conselho de Administração da ULS Amadora-Sintra

Aliás, em 2012, foi mesmo criada a plataforma a partir da qual, através da área profissional, médicos e outros profissionais de saúde, passam a ter acesso aos dados dos utentes, mas, numa nota de esclarecimento, enviada esta segunda-feira, dia 3 de novembro, ao DN, os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS),organismo com competências nesta área, reconhece que a migração dos dados do antigo sistema informático para um novo, recolhida em unidades hospitalares ou de cuidados primários, ainda não está completa. "Ainda se está a finalizar a migração dos sistemas de cuidados hospitalares de suporte ao serviço administrativo e clínico para a Suite Hospitalar - versão 2 do SONHO e SClínico”, refere a SPMS. Ou seja, das “42 instituições do SNS, apenas quatro entidades ainda não concluíram a migração, um processo determinante para a transição digital da saúde e para o projeto do Registo de Saúde Eletrónico Único”.

A Unidade Local de Saúde Amadora Sintra, que integra o Hospital Fernando da Fonseca (HFF) é uma das unidades que ainda funciona com o sistema antigo, em que o sistema que reúne os dados clínicos da atividade hospitalar é diferente da do sistema que reúne os dados clínicos dos centros de saúde. Uma situação que, talvez possa explicar, o facto de o hospital não ter acesso completo aos dados clínicos da mulher grávida de 38 semanas, que morreu, na urgência desta unidade, sexta-feira, dia 31, um dia depois de ter ido a uma consulta hospitalar e de ter sido enviada para casa.

A polémica que envolve os dados clínicos desta mulher, de 36 anos, surge depois de a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, ter proferido no Parlamento, neste mesmo dia, que esta não era acompanhada em Portugal e que apenas teve duas consultas no HFF, uma em setembro e outra em outubro, sem acesso à história clínica.

Ana Paula Martins anunciou o que lhe foi transmitido pelo HFF, mas dois dias depois a família da grávida veio contestar as suas declarações e comprovar que a mulher era acompanhada no SNS desde julho, quando teve a primeira consulta a 14 de julho, no Centro de Saúde Agualva-Cacém, que integra também a Unidade Local de Saúde Amadora Sintra, e uma segunda a 14 de agosto, altura em que terá sido referenciada para acompanhamento no HFF, por “gravidez de risco”.

Após a referenciação teve duas consultas de rotina, uma a 17 de setembro e outra a 29 de outubro, durante a qual lhe foi diagnosticado um episódio de hipertensão ligeiro, com encaminhamento para a urgência de ginecologia-obstetrícia, para a realização de mais exames. Depois de os ter feito, foi enviada para casa com consulta marcada para daí a uma semana, que seria esta quarta-feira, dia 5 de novembro, já com 39 semanas e para preparação do parto. Só que no dia 30 de outubro, esta mulher, de 36 anos, Umo Cami, sentiu-se mal, pediu socorro ao INEM e foi levada para o hospital em paragem cardiorespiratória, foram-lhe feitas manobras de suporte vida, sem resultado, e foi realizada uma cesariana de urgência para extração do bebé, uma menina, que viria a falecer no dia seguinte, sábado, dia 1 de novembro.

No domingo, dia 2 de novembro, o hospital, em comunicado, assume ter havido uma falha na informação, e que só depois de ter passado a informação disponível à titular da pasta da Saúde é que soube que a grávida já estava a ser acompanhada nos cuidados primários da sua ULS. Situação que levou o presidente do Conselho de Administração da ULS, Carlos Sá, nomeado por Ana Paula Martins para o cargo em fevereiro deste ano, a colocar o seu lugar à disposição, o que foi aceite. “É uma falha grave na informação”, justificou a ministra, escusando-se a mais comentários - a ULSASI estava também desde o dia 8 de outubro sem diretora clínica para a área hospitalar que pediu a cessação de funções por motivos pessoais.

Em relação ao caso de sexta-feira, a família e amigos de Umo Cami, que dizem que esta já era acompanhada no SNS desde as 20 semanas de gestação, criticou o tom e a forma como a ministra abordou o caso no Parlamento, considerando que o associou a outros, cujas mulheres chegam “a Portugal só para o momento do parto”, algumas “sem falar português” e até “sem telemóvel para pedir socorro ao INEM”.

Nesta segunda-feira, dia 3, Paloma Mendes, amiga da família, voltou a reiterar, em declarações a várias estações de televisão, aguardarem ainda por um “pedido de desculpas” por parte da ministra, solicitando ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, que opte pela sua “demissão”. O marido de Umo Cami, em declarações a algumas televisões, pediu que seja feita uma investigação séria na justiça e que reponha a verdade. Neste momento, recorde-se, há processos de investigação instaurados pelo Ministério Público, Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e da Entidade Reguladora da Saúde (ERS).

Será que falha na comunicação de dados foi essencial para o desfecho deste caso?

Agora, se a falha na comunicação entre hospital e centro de saúde sobre processo clínico desta doente foi relevante ou não para o desfecho do caso, é algo que o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, diz “não se poder afirmar ainda com certezas. Há muita coisa que não sabemos, nomeadamente se a história clínica da doente esteve na base ou não do desfecho deste caso”.

O administrador considera que a partilha de dados clínicos é fundamental para o sistema de saúde, sobretudo porque tem vantagens para os utentes, pois é a única forma de se acompanhar todo o seu percurso nos serviços de saúde, mas também para o próprio SNS, e respetivas poupanças, já que evitaria, por vezes, duplicação de pedidos de exames e de consultas. No entanto, defende ao DN, ser importante que este Registo de Saúde Eletrónico (RSE) fosse único - ou seja, que envolvesse também os setores privado e social.

Ministra da Saúde aceitou demissão do presidente do CA da ULS Amadora Sintra.
Amadora-Sintra reconhece que grávida que morreu era acompanhada desde julho

Xavier Barreto reconhece que a migração dos dados de cada utente para um novo sistema informático não é tarefa fácil, mas também lembra que este é um projeto que já vem de há muitos anos e que até agora não foi finalizado. Aliás, sublinha, “o RSE é uma das medidas inscritas no PRR, que vai terminar em 2026, e espero que seja implementado como estava previsto, um RSE único para que a partilha da informação clínica possa ser feita em todos os setores da Saúde”.

Segundo afirma ao DN, o presidente da APAH diz saber que nalgumas unidades de saúde "os médicos têm acesso a uma parte importante da informação recolhida pelos centros de saúde, mas, por vezes, existem problemas. Tem de entrar noutro sistema, demora mais tempo e nem sempre funciona e, por isso, nem sempre se acede a toda a informação do doente".

Foi este caso que envolve a morte de uma grávida, que agora traz a questão do sistema de partilha de dados à tona, mas poderia ter sido outro. E explica porquê: “Quem definiu a nova organização do SNS, em Unidades Locais de Saúde, decidiu avançar com o projeto sabendo que a partilha de dados entre hospitais e centros de saúde não estava acautelada, portanto considero que não se pode imputar só responsabilidades a esta ministra”.

A SPMS, em resposta ao DN, considera que a partilha de informação entre unidades, em si, “é crítica para a prestação de cuidados com segurança e qualidade”, explicando que, neste momento, “no SNS todos os médicos podem aceder ao Processo Clínico de todos os utentes, de qualquer Unidade Local de Saúde (ULS), através do Registo de Saúde Eletrónico – Área do Profissional”.

Mais. "O RSE é constituído por dados clínicos recolhidos eletronicamente para cada cidadão, produzidos por entidades que prestam cuidados de saúde – sejam cuidados primários ou hospitalares. Permite o registo e partilha de informação clínica entre o utente, profissionais de saúde e entidades prestadoras de serviços de saúde, de acordo com os requisitos da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Os cidadãos acedem através da Área Pessoal do SNS 24 e os profissionais acedem através da Área do Profissional”.

Mas tal só é válido para 38 das 42 unidades do SNS que já completaram a migração dos dados dos utentes, para as quatro em que tal ainda não aconteceu, como a ULS Amadora-Sintra, a partilha de dados ainda não é uma realidade. Neste momento, não se sabe quanto mais tempo levará até este processo estar completo.

Do ponto de vista político, José Luís Carneiro, líder do PS, já veio reafimar a sua posição de que a ministra deveria sair. O líder parlamentar da IL, Mário Amorim Lopes, também defendeu que ministra deve ceder o lugar se não tiver capacidade para reformar.

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