É mais um episódio da “pescadinha de rabo na boca” em Portugal: imigrantes que chegam ao país com visto de nómadas digitais esbarram na burocracia e na falta de informação dos serviços públicos. Com o fim das Manifestações de Interesse, a Segurança Social mudou as regras para o pedido de inscrição, impedindo que nómadas digitais com o respetivo visto possam obter o título de residência. Foi o que aconteceu com o brasileiro Alexandre Autran, de 30 anos, que chegou a Portugal no dia 2 de junho com visto de nómada digital. Quase três meses depois, o gestor de produtos e a esposa andam de um serviço público para o outro em busca de conseguir efetivar a moradia do país, com a troca do visto no passaporte pelo título de residência . “Dizem precisar do Número de Identificação da Segurança Social (NISS) para dar entrada com a Autorização de Residência, mas, para obter o NISS, é preciso ter dado entrada na Autorização de Residência, é um looping eterno”, diz ao DN o jovem, que começou o plano de emigrar para Portugal desde 2019 e pagou mais de 4 mil euros na mudança com os pedidos de visto ainda no Brasil. O impedimento surge após as mudanças que a Segurança Social (SS) realizou no sistema de inscrições depois do fim das Manifestações de Interesse. Até então, era possível pedir o número da SS no portal online, mas, agora, é preciso ter já o título de residência antes do pedido. A medida foi implementada para impedir que pessoas sem visto efetuassem a solicitação, como ocorria antes. No entanto, imigrantes com visto de nómadas digitais ficaram de fora dessa solução. Alexandre trabalha para uma empresa de Londres e já teve outras experiências de trabalho e estudo na Europa. As dificuldades começaram ainda antes da chegada ao novo país, escolhido por estar perto de familiares do casal, que moram na Bélgica e Portugal. Contrariando o que determina a lei de junho de 2022, não receberam previamente o número NISS, nem o NIF (Identificação Fiscal), nem o de utente do SNS. O incumprimento tornou-se comum há meses. Também não foi efetuada uma marcação prévia para serem atendidos na Agência de Integração, Migrações e Asilo (AIMA) na chegada a Portugal. Foi preciso ligar milhares de vezes até conseguir uma chamada e ouvir “não há vagas”. Alexandre também tentou consultar o site da AIMA, mas não há nenhuma informação no portal sobre esse tipo de visto. Então, decidiu ir presencialmente à loja da AIMA em Lisboa, chegando às 2.00 horas da madrugada, quando cerca de 30 pessoas já estavam na fila. Teve a sorte de conseguir uma das 30 senhas distribuídas e foi atendido às 12.00 horas. “Foi quando me disseram que não conheciam o meu tipo de visto, mesmo impresso no meu passaporte”, explica. Sem desistir, foi até à sede da Segurança Social, em busca de informações do NISS. Lá, a resposta foi: é preciso arranjar um trabalho em Portugal para ter a inscrição na Segurança Social e depois trocar o visto no passaporte pela Autorização de Residência. O problema é que a orientação dada pela funcionária da Segurança Social é ilegal na modalidade de visto de nómada digital. “Para retirar o visto, preciso comprovar Residência Fiscal fora de Portugal e o NISS exige contrato de trabalho em Portugal, o que é expressamente proibido para mim, na minha modalidade de visto. Não posso trabalhar no país”, argumenta o brasileiro.O imigrante relata ao DN que não imaginava passar por esta situação. “Cobram-me pelo processo de solicitação de visto, acatam o meu pedido, viajo e, após chegar ninguém nem sabe o que devo fazer. Meu visto é de nómada digital e ninguém, nem na AIMA, nem na SS sabe o que é, ficam a dizer que preciso encontrar emprego”, lamenta. A situação prejudica não só Alexandre, mas também a esposa, que veio com visto de reagrupamento familiar. Sem a documentação, o casal fica impedido de abrir uma conta no banco e arrendar imóveis com contrato, por exemplo. “Já tive visto de residência para a Bélgica e para a Espanha e nunca passei por nada parecido, mesmo já tendo experienciado típicas dificuldades burocráticas”, destaca. Segundo o nómada, é difícil compreender por que alguns funcionários públicos em Portugal não conhecem a própria legislação. “Como é possível que os funcionários públicos que recebem os imigrantes na AIMA não conheçam a própria lei de imigração? Como um funcionário público da Segurança Social nos manda embora do país quando exigimos um direito garantido pela lei local?”, desabafa. .O que a AIMA e a Segurança Social dizem.Questionada pelo Diário de Notícias, fonte oficial da Segurança Social informa que é possível solicitar o NISS anexando no portal a cópia “do contrato de trabalho ou contrato de prestação de serviços com entidade sediada fora de Portugal”. A resposta dada ao DN não consta no portal, nem foi dita ao imigrante nas vezes em que buscou a informação na entidade.Sobre o facto de a funcionária ter mandado o imigrante embora do país, a SS apenas respondeu que “os trabalhadores do Instituto de Segurança Social devem sempre pautar a sua atuação pelo cumprimento estrito do Código de Ética e Conduta existente na instituição que, entre outros aspetos, orienta os trabalhadores para a prestação de um serviço público com elevados padrões de qualidade, transparência, rigor e imparcialidade, visando um serviço público executado com competência, proporcionalidade e cortesia, com respeito pelos princípios administrativos da legalidade, que garanta os direitos e interesses legítimos dos cidadãos”. Já a AIMA respondeu ao DN que reconhece a falta de informação no site e que está a trabalhar na “correção de lacunas” sobre o assunto. A respeito de a funcionária dizer ao imigrante que desconhece esse tipo de visto e de mandar o imigrante sair do país, a AIMA não respondeu. amanda.lima@dn.pt