Tem investigado muito a violência entre crianças e jovens. Notou alguma evolução desde que iniciou a sua investigação?Nos últimos 15 anos, de acordo com os dados dos Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI), existem em média cerca de 6000 ocorrências ilícitas nas escolas anualmente, 65% a 80% delas de índole criminal. No último ano, foram 7000. Ou seja, nos últimos 15 anos, por cada 240 alunos há um que já cometeu um ilícito e faz parte das estatísticas do RASI. Quanto aos dados em geral, vemos grandes aumentos nos últimos cinco anos. Por exemplo de 32% na delinquência juvenil; 23% nos jovens internados em centros educativos; 15% nos detidos entre os 16 e 20 anos; quase 39% nos que, segundo relatórios da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), foram sinalizados como tendo deixado de ir à escola e começado a cometer ilícitos; 23% na criminalidade grupal de jovens entre os 15 e 25 anos; 6% nas agressões e violência no namoro em jovens entre os 16 e 24 anos.O aumento do reporte de alguns delitos pode corresponder a mais ocorrências mas também pode significar uma maior atenção e mais consciencialização social. Qual dos fatores terá mais preponderância?Apesar de perceber e também identificar que há mais projetos e divulgação nas próprias escolas, mais informação das crianças e jovens e dos próprios pais, e mais sensibilização para a necessidade da denúncia, acredito que não seja tudo por aí e que os valores estão a aumentar porque também estão a acontecer mais situações. Mas ninguém sabe realmente responder a essa questão; a única coisa que se consegue ver é que os dados são alarmantes e que é preciso fazer qualquer coisa. E Infelizmente não vemos assim tanta coisa feita, principalmente na escola — porque a maioria dos jovens estão na escola até aos 18 anos, e deve ser aí que incide a intervenção.Está agora a terminar um estudo relacionado com jovens que viveram num meio com violência doméstica — chama-lhes “os filhos da violência doméstica”. Como chegou a eles?Para o meu doutoramento, entrevistei 350 mulheres vítimas de violência doméstica e depois através delas cheguei aos filhos, que têm agora, na sua maioria, entre 15 e 20 anos. É uma amostra de 1500 jovens na qual estou a analisar os impactos decorrentes de serem vítimas (na nossa lei atual, uma criança ou jovem submetido a um ambiente de violência doméstica é considerado vítima só por vivenciar esse ambiente). Analisei muitas dimensões e quanto à violência na escola, bullying e cyberbullying, tenho dados provisórios muito interessantes. Um em cada cinco dos jovens desta amostra assumiu ter cometido um ilícito no seu trajeto escolar. É uma taxa quase 50 vezes superior à dos dados oficiais. E dos que assumiram isso, só 29% a 30% disseram ter sido identificados. O que significa que 70% dos que dizem que cometeram ilícitos em meio escolar não chegaram a ser identificados.Ou seja, ninguém percebeu que tinham sido eles os autores.Sim. Isto demonstra, no meu entender, que existe um grande número de ocorrências criminais em ambiente escolar que muito dificilmente fazem parte das estatísticas porque não chegam a ser conhecidas. Também perguntei sobre bullying e cyberbullying. Perguntei se se identificavam como agressor, se já tinham sido vítimas, agressor e vítima ou só testemunhas.E?14% identificaram-se como agressores, 20% como vítimas, 6% como agressor e vítima e 24% como testemunha. Isto significa que um quarto destes 1500 jovens presenciaram na escola uma situação de bullying.São muitos. Mas voltemos um pouco atrás: de que falamos quando falamos de bullying e cyberbullying? Os termos são utilizado para referir várias realidades distintas, muitas delas tipificadas no nosso ordenamento jurídico quer como crime quer como, por exemplo no meio laboral, contraordenação. Considera que faz sentido usá-los? E se sim, como os define?Sim, considero que faz sentido usar esses termos. Aliás muitos especialistas que trabalham as matérias da violência em meio escolar consideram que quer o bullying quer o cyberbullying deviam ser criminalizados. Quanto à definição: implicam sempre reiteração e continuidade. A reiteração é a questão chave. Levando isto para o contexto escolar, entre pares, entre jovens, a situação tem que acontecer várias vezes para ser incluída no bullying, ou no cyberbullying. É essa a grande diferença. Se se tratar de algo que sucede uma vez só ou é esporádico, é outra situação.Tem um livro publicado (em 2023) sobre o tema da violência na escola. A que conclusões chegou?Para o livro entrevistei 200 atores das nossas escolas a nível nacional, incluindo Regiões Autónomas: diretores de escola, representantes da direção das associações de estudantes, professores, técnicos dos gabinetes de apoio ao aluno — o chamado psicólogo ou assistente social — e assistentes operacionais. A maior conclusão ou reflexão que retirei é de que a realidade da violência nas escolas e os dados oficiais que chegam aos nossos RASI são muito diferentes. Existem muito mais situações criminais nas nossas escolas do que as que são reportadas e chegam às estatísticas oficiais. Mas há outra conclusão importante.E qual é?No inquérito que fiz coloquei as 10 tipologias que estão, no que respeita às escolas, identificadas nos RASI: ofensas à integridade física (que é sempre a mais denunciada), furto, roubo, tráfico e consumo de estupefacientes, crimes sexuais, porte de arma, etc, e uma décima que é “outras”, que é uma resposta aberta, que podem desenvolver. E muitos responderam que o que mais sucedia na escola deles não estava nas tipologias discriminadas: era o bullying. “O bullying é o que mais presencio e o que mais tenho na minha escola”, dizem.Essas pessoas terão do bullying a noção de que tem de ser, como diz, um comportamento reiterado, ou estarão a denominar como tal um comportamento que se pode inserir noutras tipologias? Conseguiu perceber exactamente a que é que se estavam a referir?Não era possível saber a que é que estavam a referir. Mas acredito que professores, diretores, pelo menos esses, conheçam o conceito bullying e tenham noção de que tem de ser reiterado. Houve alguns que responderam: “Eu facilmente identifico dez, 15, 20 casos de bullying no ano letivo”. E estes resultados vão ao encontro de outros estudos, internacionais, da UNICEF, da Organização Mundial de Saúde. Nos últimos anos fizeram-se grandes estudos, nos quais Portugal participou, com amostras de milhares de alunos, e nos quais 10% dos jovens se assumem como agressores. Em termos internacionais, nos grandes estudos sobre bullying e cyberbullying entre crianças e jovens, Portugal tem estado a meio da escala, e um pouco mais para cima na tabela quando comparamos só com países europeus.O que contrasta com o resultado do estudo apresentado em fevereiro pelo Ministério da Educação, efectuado pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada num universo de mais de 31 mil estudantes entre 11 e 18 anos, no qual bullying e cyberbullying têm uma expressão diminuta. Como interpreta tal discrepância de resultados?Nesse estudo 0,7% assumiram ter sido, em termos de bullying, como agressores, 6,7% como vítimas, e 22,2% como testemunhas; quanto a cyberbullying, 1,3% assumiu ser agressor, 5,6% vítimas e 0.8% testemunhas. Como interpreto a discrepância? Como sabe, todos os estudos que são feitos com jovens e até com adultos, apesar de se dar a informação “ninguém saberá que foste tu que respondeste, é anónimo e confidencial”, as pessoas duvidam. E como este estudo era do ministério da Educação, pode ter levado a uma maior retração nas respostas, tanto daqueles que se identificam como agressores, como dos que se identificam como vítimas. Certo é que os valores desse estudo não batem certo com mais nenhum estudo feito em Portugal, nem em teses de mestrado, nem de doutoramento. Estamos a falar de valores 100, 200, 300, 500% a menos do que os outros estudos apresentam.Recentemente fiz para o DN uma reportagem sobre violência sexual na escola, falando com raparigas de várias idades e geografias, tendo concluído que, face àquilo que foi a minha experiência escolar muita coisa não mudou: continuam cenas no recreio com rapazes a apalpar as raparigas, a fazer comentários sobre o corpo delas, etc. E quase todas me disseram que acham que não vale a pena fazer queixa na escola, porque a escola não está atenta nem sabe como agir. Para além dos diagnósticos, parece-lhe que existe nas escolas uma pedagogia ativa em relação à violência?Há programas do ministério de Educação, da prevenção e combate ao bullying, e o próprio mistério da Administração Interna, no programa Escola Segura, da PSP e da GNR, tem um um projeto de combate ao bullying, com ações de sensibilização para identificar, prevenir e saber-se como denunciar. Mas quando nós analisamos os currículos de formação dos professores, que são aqueles que vão dirigir as escolas e dar as aulas, percebemos que não existe ainda nenhuma cadeira ou cadeiras que trabalhem efetivamente de forma completa as questões da violência em ambiente escolar. Ora isso — e essa é uma das recomendações que deixo no final do meu livro — deveria ser obrigatório, incluindo para os assistentes operacionais. Fala-se muito dos rácios de assistentes operacionais em relação ao número de alunos, e deveriam de facto ser substancialmente superiores aos que estão atualmente vinculados na lei, mas não se fala da necessidade de formação. Ora os assistentes operacionais são uma pedra basilar do ambiente escolar, mas não lhes é exigida qualquer formação específica para entrar nesta profissão, e esta deveria ser obrigatória. E em relação às próprias crianças e jovens?Todas estas questões deviam ser obrigatoriamente incluídas no currículo das crianças e dos jovens desde o primeiro ciclo. Alguns especialistas até referem que deve suceder desde o pré-escolar, mas podemos avançar desde o primeiro ciclo, onde já há uma maior noção e perceção do que se está a falar, pelo desenvolvimento educativo das crianças dessas idades. Devia haver uma cadeira sobre isso em todos os anos, em que se falasse destas questões para todos perceberem o que é que está certo e errado. E deixarmos de ver, por exemplo, rapazes a correr atrás de meninas para as apalpar. Porque essas situações são graves e os próprios agressores, quando tiverem uma consciencialização maior, vão perceber que é grave para eles próprios e para as vítimas, mesmo se às vezes a própria vítima não identifica e percebe o que está a acontecer. Às vezes passa-se muito tempo até que percebam que aquilo é totalmente errado, e o impacto negativo pode começar a acontecer nesse momento: a vergonha, o sentimento de injustiça e de impunidade. Porque quem lhe fez aquilo que se calhar agora já nem está ali. .Bullying e cyberbullying. Os sinais a que deve estar atento.‘Cyberbullying’. Maioria dos jovens oculta casos por vergonha e medo de ficar sem telemóvel