Boaventura dá primeira entrevista sobre acusações: "Fui feminista toda a vida. Mas é preciso distinguir as lutas genuínas"

Editora Routledge suspendeu venda do livro no qual três mulheres acusam o académico de conduta inapropriada. Boaventura diz não conhecer "detalhes da decisão da editora"; uma das alegadas vítimas, porém, disse ao DN ter sido contactada por advogado "para acordo". Em entrevista, o sociólogo apresenta-se como vítima de "vingança" e da sua posição sobre guerra na Ucrânia.
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"Posso informar que o livro está suspenso, por a acusação ser tão grave. Porque é na verdade uma acusação criminal sob o disfarce de um trabalho científico. (...) Espero que a editora reconsidere. Porque publicou cinco livros da minha autoria, dois singulares e três coletivos. Eles próprios estão um pouco perplexos com a qualidade deste capítulo."

Numa entrevista tornada pública no Youtube esta terça-feira, e na qual fala longamente sobre a acusação de que foi alvo, assumindo ter cometido "erros, atos incorretos, mas nunca crimes", e estar "muito tranquilo, confiante de que a verdade triunfará", Boaventura Sousa Santos deu assim a novidade de que o livro Sexual Misconduct in Academia (Conduta Sexual Inapropriada na Academia), cujo último capítulo é uma descrição de alegados factos ocorridos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com ele próprio, sob o crisma de "Professor Estrela", como figura central, teve a sua venda suspensa pela editora Routledge dois meses após a publicação.

No site da editora, há apenas uma nota lacónica: "Este livro está temporariamente indisponível, por estar sob revisão". Ao DN, Boaventura Sousa Santos assume já saber da suspensão "há algum tempo", mas garante não conhecer detalhes da decisão, nem se a editora tenciona recolher os livros que estão à venda em várias plataformas e livrarias: "Não tenho recebido nenhuma comunicação da Routledge sobre manutenção da publicação do artigo ou se a venda será suspensa em outras plataformas."

Reconhece porém que, após ter conhecimento do capítulo no qual se viu retratado, expôs diretamente à editora - na qual tem várias obras publicadas, e que acaba de publicar, já após o rebentar do escândalo, em abril, outro livro seu, From the Pandemic to Utopia, the Future Begins Now - as suas críticas. Aliás, diz achar "natural" a decisão da Routledge, "dado que o artigo sofreu críticas bastante contundentes no meio académico em relação ao seu caráter pouco ou nada científico." E lamenta que "se tenham apercebido disso meses depois de destruírem a minha imagem e depois de me causarem irrecuperáveis prejuízos a nível pessoal e profissional. Entendo a suspensão como um reconhecimento, ainda que tardio, de que o artigo não devia ter sido publicado."

Destaquedestaque"Não posso ir para os jornais expor a minha posição, porque dizem "OK, é a sua posição mas a posição da mulher prevalece". Acho que em 90% dos casos podem estar certos, mas às vezes estão errados."

Na entrevista referida, conduzida pelo austríaco Josef Muehlbauer, que se descreve no Twitter como "anarco-sindicalista seguidor de Noam Chomsky e feminista queer", o sociólogo português nega caráter científico ao artigo publicado pela Routledge e da autoria das académicas Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom - "Não faço ideia de quem foram os revisores científicos do artigo, porque se o ler verá que a bibliografia não tem nada a ver com a parte empírica, que se baseia naquilo a que chamam "rede de murmúrios". Nunca fizeram uma entrevista..." - e descreve-o como "uma vingança" pessoal da parte da principal autora, a investigadora belga Lieselotte Viaene, que já tinha atacado duramente em abril, quando falou ao DN, na sua primeira reação pública à publicação do capítulo.

"Foi expulsa do nosso centro. Tivemos de instaurar um processo disciplinar contra esta mulher, por conduta inapropriada, e ela prometeu vingança quando se foi embora, disse isso na altura a algumas colegas. (...) E soube que uma das outras duas autoras até disse: "O artigo não era para ser contra o "Professor Estrela", porque o admiramos, mas a versão final é da belga e ela pôs tudo em cima do professor porque se queria vingar.""

A notícia da suspensão da venda do livro pela Routledge já tinha sido dada em primeira mão esta segunda-feira, numa "carta aberta" assinada pelo "coletivo de vítimas CES-UC (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) e publicada no site Buala. Na carta, a quarta publicada pelo coletivo e dirigida à editora, as signatárias, que se identificam como "sete mulheres, de nacionalidades brasileira, portuguesa, peruana e mexicana", dizem não ter conseguido esclarecimentos, junto das autoras do capítulo sobre o CES, acerca dos motivos da suspensão da venda do livro, e terem decidido então interpelar a Routledge.

Informando que "as nossas experiências permitem atestar a veracidade do padrão de comportamentos descrito no capítulo 12", e que "a publicação do livro foi determinante para que nos organizássemos em coletivo e para a decisão de juntarmos provas testemunhais e documentais que corroboram os diversos tipos de abusos descritos naquele capítulo", cumprindo "um papel essencial na elucidação do padrão de abuso de poder que sofremos e testemunhámos", as sete mulheres anunciam estar a organizar "um dossiê circunstanciado com um conjunto alargado de provas documentais e testemunhais que comprovam as ações incorretas e o padrão de assédio sexual e moral descrito pelas autoras da publicação."

A razão pela qual essas provas ainda não foram apresentadas, dizem, "é a demora do próprio CES em iniciar qualquer processo investigativo sobre as denúncias. Estamos aguardando que seja instituída a Comissão Independente do CES [anunciada pela direção do centro como a instância que vai investigar as acusações], ocasião em que apresentaremos nosso Dossiê, que pretendemos também tornar público."

Destaquedestaque"Tentei ser consistente. Mas nunca somos totalmente consistentes, já se sabe. E uma pessoa da minha geração, particularmente no passado, cometeu certos actos incorretos, erros, mas nunca crimes."

A política brasileira Isabella Gonçalves, uma das duas mulheres que em abril vieram a público assumir, com um relato detalhado, serem vítimas de assédio sexual por parte de Boaventura Sousa Santos - a outra é a ativista indígena Moira Millán -, e cujo caso é relatado no capítulo do livro como o de "uma estudante internacional de doutoramento" a quem o então diretor do CES, seu orientador de tese, teria proposto trocar intimidade por "apoio académico", disse ao DN estar associada ao coletivo. "Nos frustra o facto de que até hoje nunca fomos contactadas pelo CES e não temos informações sobre a comissão independente."

Questionada sobre o motivo pelo qual acha que Boaventura Sousa Santos nunca tentou até agora, ao contrário do que fez com Moira Millán, refutar aquilo de que ela o acusa, a deputada do Partido Socialismo e Liberdade, que na altura exigiu mudar de orientador e acabou por abandonar o CES (e que conta que algum tempo depois dos factos o académico lhe quis pedir desculpa), diz não saber: "Não sei porquê o silêncio dele sobre o meu caso". Adianta porém ter sido, já após as suas declarações públicas, contactada "por uma advogada dele", tendo preferido "não seguir o contacto".

Esse contacto, de acordo com Isabella Gonçalves, foi no sentido de "chegarem a um acordo". À pergunta do DN "pagando?", responde: "Não chegámos a debater os termos." Confrontada com a hipótese de que Boaventura Sousa Santos tenha igualmente efetuado uma démarche jurídica junto da editora, admite ser possível: "Ele mostra que já sabia da suspensão do livro, imagino que possa ter tomado alguma ação para isso."

Ao pedido de confirmação e esclarecimento sobre este contacto, Boaventura Sousa Santos responde: "Tenho um advogado para a minha defesa constituído em Portugal, que aguarda a Comissão para que possa atuar de facto no caso. Ele não fez nenhum contacto."

Na longa parte da referida entrevista em que apresenta pela primeira vez de viva voz a sua defesa - até agora limitara-se a responder por escrito a perguntas de jornalistas e a publicar comunicados - Boaventura não fala apenas das autoras do capítulo, da editora e de quem o acusa. Tem também como alvo o movimento feminista.

"Há uma divisão no movimento, uma divisão muito séria, entre os que seguem o tipo de movimento metoo, dos EUA, e a ideia é tolerância zero - uma denúncia é uma condenação", diz o sociólogo. "As feministas mais novas acham que o homem é o inimigo. E tenho de as compreender como sociólogo, até escrevi um documento de autocrítica [refere-se a um artigo publicado no Expresso em junho], admitindo que no passado cometi erros. Mas nunca fiz aquelas coisas, é absurdo. (...) Temos de distinguir lutas genuínas, sabe?"

Garantindo ter sido "um feminista toda a vida", refere o seu trabalho como prova: "É por isso que aponto o heteropatriarcado como parte do sistema de dominação. Muitas pessoas acharam que não devia colocar a dominação patriarcal no mesmo nível da classe e da raça."

Admite porém que apesar de ter tentado na prática "ser consistente" com a sua teoria, não foi. "Nunca somos totalmente consistentes, já se sabe. E uma pessoa da minha geração, particularmente no passado, cometeu certos atos incorretos, erros, mas nunca crimes. Coisas incorretas que podem ser consideradas coisas machistas e chauvinistas, como dizer "hoje está particularmente bonita" ou "muito bem vestida" - coisas que hoje não se podem dizer mas que em 2010, 2000, provavelmente podia dizer e não era ofensivo. Há realmente uma mudança na sociedade e temos de a respeitar. Temos de viver no nosso tempo. Se há desigualdades de poder? Claro, na academia e em geral, e tenho lutado contra elas. Mas no meio de uma luta justa há uma coisa muito injusta, a meu ver."

Destaquedestaque"Sou quase a única voz em Portugal contra a guerra na Ucrânia. Fui muito contra a invasão ilegal da Ucrânia pela Rússia. Mas sei que esta guerra foi provocada pelos EUA para neutralizar a Rússia - e para tentar neutralizar a China. (...) O que tenho dito causou escândalo e havia interesse em calar-me. E de facto calaram-me."

Fala também das divisões na esquerda - "É uma infelicidade e estamos num período em que há muitas divisões e usualmente são as pessoas de esquerda q são vítimas destas coisas. Estamos a destruir o pensamento crítico" -, apontando-se como um "alvo" por "razões diferentes e de forma muito injusta."

Uma das razões, diz suspeitar, é a sua posição sobre a guerra na Ucrânia. "Sou quase a única voz em Portugal contra a guerra na Ucrânia. Fui muito contra a invasão ilegal da Ucrânia pela Rússia. Mas a partir desse momento, porque vivo nos EUA há tanto tempo, sei que esta guerra foi provocada pelos EUA para neutralizar a Rússia - e para tentar neutralizar a China. (...) Sou quase a única figura pública conhecida a dizer isto nos jornais. (...) O que tenho dito causou escândalo e havia interesse em calar-me. E de facto calaram-me - publico as minhas crónicas mas não nos principais jornais, como costumava fazer."

Queixa-se até de não lhe darem sequer voz para se defender: "Não posso ir para os jornais expor a minha posição, porque dizem "OK, é a sua posição mas a posição da mulher prevalece". Acho que em 90% dos casos podem estar certos, mas às vezes estão errados."

Sublinhando que aguarda poder apresentar as provas - "hard facts", "documentos, emails, faxes" - à comissão independente que o CES anunciou para investigar o caso (e que três meses depois ainda não foi, como noticiou o Público, nomeada), exemplifica com o que considera ser "a refutação completa" que publicou das acusações que lhe foram feitas pela ativista indígena Moira Millán, através de mails que alegadamente esta trocou consigo desde 2010 (quando teria ocorrido a agressão sexual de que ela se diz vítima) e 2014, lamentando: "Um dos problemas é que as pessoas já nem leem as refutações, por se se está em "tolerância zero", o que conta é a denúncia. E não é verdade, porque temos de ver os factos."

Por fim, comenta: "Espero que a verdade triunfe. Isto faz parte da nossa vida no mundo, tenho de ser um sociólogo no meu tempo. E como não tenho um partido, uma igreja, uma sociedade secreta para me proteger, estou só em campo aberto. Nunca esperei que abordasse esta questão [dirigindo-se ao entrevistador, que se manteve calado durante toda esta parte, com cerca de 30 minutos, da entrevista], e poderia dizer "essa não, porque está sob investigação". Mas gostei de falar consigo. E assim fica a perceber o que sinto sobre isto."

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