Bairros Saudáveis: projetos mudaram vidas e deixaram marcas pelo país

Programa que nasceu em plena pandemia financiou 240 projetos portugueses nas áreas da saúde, economia, apoio social, ambiente e espaços públicos. Sucesso da iniciativa levou governo a torná-la permanente. DN foi conhecer três desses projetos.
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Ouguela, aldeia alentejana de Campo Maior, já teve 600 habitantes. Hoje, são apenas 60 as pessoas que moram na localidade, um antigo refúgio defensivo durante a Guerra da Restauração, a Guerra de Sucessão de Espanha e a Guerra das Laranjas. Uma importância histórica que leva, diariamente, muitos turistas a visitar a aldeia. Contudo, até à implementação do programa Bairros Saudáveis - uma iniciativa pública que arrancou em 2020 - não havia sequer "onde comprar uma garrafa de água". Por isso, os turistas "não ficavam muito tempo".

Promovido pela Associação AVOAR, em parceria com os habitantes da Aldeia de Ouguela, a Câmara Municipal de Campo Maior e a Junta de Freguesia de S. João Batista, "OUGUELA ComVida" foi um dos muitos projetos aprovados pelo Programa Bairros Saudáveis, que mudou vidas por todo o país. "Antes do Bairros Saudáveis, não havia sequer um sítio para beber uma água. Ouguela já tinha tido, no passado, seis casas comerciais e não tinha nada quando fizemos a nossa candidatura", explica ao DN Rui Andrade, presidente da AVOAR.

A aldeia estava "sem vida" e a precisar de despertar um movimento comunitário e de revitalização socioeconómica. A decisão de concorrer ao programa foi, por isso, fácil. "A iniciativa era a nossa cara. É o nosso território, uma aldeia linda, que foi perdendo vitalidade. Havia muito potencial, mas as pessoas estavam sem atividade. Surgiu esta oportunidade e nós agarrámos", conta. Numa fase inicial, a AVOAR fez um diagnóstico, mas falou com os moradores para que as mudanças se fizessem com a concordância de todos e a "participação de todos nas ideias". Decidiram avançar com a abertura de um espaço comercial e uma forte aposta na cultura e na história. "Sabíamos que tínhamos de organizar festas e fazer mexer os moradores. Primeiro tínhamos de dar-lhes força e depois soltá-los", recorda Rui Andrade.

E o plano surtiu efeito. Com a colaboração dos habitantes de Ouguela, editaram um livro com as histórias da aldeia. Os moradores fizeram as ilustrações (em parceria com um ilustrador), participaram em oito curtas-metragens, fizeram uma coleção de postais com fotografias tiradas pelos habitantes, houve festas, teatro, danças e muita música.

"Uma pessoa criou uma marca de gin, por exemplo. Com a ajuda da câmara para as obras, temos agora um centro comunitário onde a população se encontra e onde são feitas oficinas e outras atividades. Também demos vida à Casa do Governador, com exposições. Conseguimos levar um festival de cinema à aldeia e comprámos material para projeção. Conseguimos pôr a população a aprender a fazer artesanato para os turistas, como pandeiretas ou cajados. Tudo isto foi feito com o projeto Bairros Saudáveis", sublinha Rui Andrade.

A aldeia que já teve centenas de habitantes e uma escola primária já não está sem vida. De outubro de 2021 até agora, muito mudou. "Sem o apoio do programa era muito difícil conseguir tudo isto. Este programa mexeu com todos e deixou tudo mais ativo. Até a Junta ficou mais ativa. Só nós envolvemos uns 20 artistas das mais variadas áreas. Fizemos murais e transformámos a aldeia. Sentimos evolução. Já era um ponto turístico, mas agora as pessoas param", sustenta.

O movimento foi tão significativo, que a AVOAR chegou a ser contactada por uma produtora holandesa, interessada em gravar um reality show na aldeia. O programa acabou por não se fazer, por uma questão de tempo. No programa que iria ser gravado, explica Rui Andrade, a produção compra uma casa para cada casal concorrente e eles têm de criar um negócio e viver na aldeia. "Tinha sido giro, mas era difícil arranjar casas para vender num espaço de tempo curto", adianta. O reality show não avançou, mas a vida dos moradores mudou. "Ouguela passou a ser uma aldeia mais feliz".

Mais saudável ficou também o Bairro de Arroios, em Lisboa, garante a Lisbon Project, responsável pelo projeto que envolveu a comunidade de migrantes e refugiados (150 crianças, 250 jovens, 350 adultos e 10 idosos). "Candidatámo-nos porque acreditávamos no impacto que poderíamos maximizar com uma maior colaboração e apoio. Enquanto organização que trabalha de perto com a comunidade de migrantes e refugiados, conseguimos identificar as necessidades específicas do nosso contexto local e o Bairros Saudáveis deu-nos a liberdade e a capacidade de responder a essas necessidades", explica ao DN, Gabriela Faria, CEO da Lisbon Project (LP).

E as necessidades supridas passaram por várias vertentes, desde a saúde e educação a iniciativas de integração. Ao abrigo do programa, a organização recrutou um advogado para "desenvolver o departamento jurídico e apoiar os migrantes e refugiados através da capacitação do conhecimento jurídico em Portugal". O investimento passou também pelo aumento da "rede de profissionais de Saúde e parcerias com clínicas de Saúde, a fim de oferecer aos migrantes e refugiados acesso a cuidados". "Realizámos workshops sobre nutrição, cuidados infantis e desporto relacionado com a saúde. Também oferecemos cuidados diretos de terapeutas e clínicas de diferentes áreas (por exemplo, medicina dentária)", conta.

As iniciativas foram também um grande apoio para uma integração mais próxima e efetiva. Para isso muito contribuíram os eventos semanais e mensais, como jantares comunitários e Sextas-feiras em família, "onde foram recebidos doadores, parceiros, voluntários e residentes locais para visitarem a LP e construírem juntos este sentido de comunidade", conta. O mais belo, sublinha Gabriela Faria, "foi a possibilidade de realizar o Acampamento para Jovens e o Acampamento para Crianças". Estas iniciativas "tiveram um grande impacto nas nossas crianças e nas suas famílias, uma vez que sentiram o cuidado e o apoio da nossa equipa e construíram um novo sentimento de pertença à nossa comunidade. A saudade deu lugar à esperança", refere.

Com os olhos postos num futuro melhor, a LP apostou na capacitação da comunidade para entrar no mercado de trabalho, com a realização de workshops e mentoria individual sobre edição de CV, empreendedorismo, Direito Fiscal, entre outros. "Realizámos também um curso de TI denominado iconnect, cujo objetivo era ensinar aos nossos membros competências informáticas básicas, não só para fins de emprego, mas também para aceder a plataformas como a Segurança Social, online banking, idealista, etc.", avança a responsável.

O programa permitiu ainda a contratação de professores qualificados para os cursos de português A1, onde "não só as aulas eram consistentes em termos de qualidade, como os alunos tinham a oportunidade de fazer um exame e receber um certificado".

Gabriela Faria não tem dúvidas quanto ao sucesso do programa Bairros Saudáveis e faz um balanço muito positivo das iniciativas levadas a cabo pela LP. "A nossa abordagem foi muito holística, na medida em que tentámos dar o nosso melhor para apoiar os migrantes e os refugiados, desde os mais pequenos até aos mais velhos, de acordo com as suas diferentes necessidades. As famílias foram capacitadas com informação, com ferramentas e com a confiança de que a reconstrução em Portugal pode ser difícil, mas é possível. Por outro lado, conseguimos mobilizar a comunidade local através de parcerias com outras organizações, empresas, escolas, universidades e igrejas para construir uma sociedade portuguesa ancorada no amor e no respeito por todos", conclui.

Também os moradores do Bairro Cruz de Pau, Matosinhos, assistiram a um verdadeiro frenesim de atividades ao longo do último ano. O Programa Bairros Saudáveis, promovido pelo Centro Incentivar a Partilha (CIaP) permitiu abrir portas ao mundo das artes e, ainda, renovar espaços comuns, ampliar jardins e promover oficinas ocupacionais.

Dos 549 habitantes do Conjunto Habitacional da Cruz de Pau, 49 (8,9%) têm até 15 anos e 138 (25,1%) têm 65 anos ou mais, um índice de envelhecimento acima da média nacional. Esta realidade esteve na base da candidatura ao programa, numa localidade onde falta um pouco de tudo. Por isso, aquando da candidatura, Américo Mendes, presidente da direção do CIaP, propôs-se a trabalhar em todas as vertentes: "Ajuda de emergência social, animação comunitária, apoio a cuidadores informais, apoio integrado ao estudo, arquitetura inclusiva dos espaços públicos e interiores com métodos participativos, atividades artísticas, atividades e terapias ocupacionais, desenvolvimento pessoal, atividades radiofónicas, educação ambiental, educação e aconselhamento financeiro de famílias, educação parental, atividades e técnicas de Saúde e Bem-estar, mediação de conflitos, comunicação não-violenta e storytelling".

Uma vasta lista de objetivos que foram cumpridos sem falhas e com a colaboração das crianças e dos idosos da Cruz de Pau. Foram, por exemplo, as crianças que pintaram os murais da associação, fizeram um muro musical, ajudaram a ampliar o jardim e melhoraram muitos espaços do bairro de forma participativa. "Quase todos os dias acontecia alguma coisa na associação, com oficinas para idosos (manualidades, culinária, entre outras), dança, música, além outras atividades. Conseguimos também fazer a nossa rádio, a Toca a dançar", explica Américo Mendes.

O responsável salienta que o Bairros Saudáveis permitiu alargar as atividades do CIaP e intervencionar os espaços com pequenas obras, o que "não seria possível sem essa ajuda". Quem também ajudou a promover as atividades com as crianças do bairro foi a associação Arkiplay, resultando numa Menção Honrosa atribuída pela União Internacional dos Arquitetos. "O que fizemos foi trabalhar com crianças e famílias de forma a que se pudessem apropriar dos seus espaços e pudessem estar presentes desde a conceção à execução", explica Vítor Sousa, membro da Arkiplay.

Mas há mais "histórias que marcam" a Cruz de Pau. "Também trabalhámos com adultos e com a toxicodependência. Havia um jovem a enfrentar problemas graves e, com o pretexto de melhorar a habitação da família, conseguimos mudar a sua vida. Começou a frequentar as oficinas ocupacionais e artísticas e a mudar de vida", recorda Américo Mendes. Na Cruz de Pau não se reabilitaram só os espaços, "mudaram-se vidas e levou-se a música aos cantos e aos corações mais tristes do bairro".

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